sexta-feira, 11 de novembro de 2022

O jornal P’ra cá do Marão (1933)

Em 1933, vai aparecer um novo periódico local com este título. O primeiro número surge em 9 de abril, no dia em que a Constituição, plesbicitada em março, é promulgada. Simples acaso, ou mais do que isso?
No editorial, “Ocupando um posto”, propõe-se “a paz entre todos os portugueses, esperançados em que, alguma vez, chegará o dia de todos se unirem numa mesma esperança de amor à volta dos símbolos da Pátria”.

Ponte dos Açougues

A União Nacional – que se tornou no único “partido do regime”, havia sido fundada em julho de 1930. Eram tempos em que se propagandeava o sentimento de unidade que se acreditava ser preciso forjar, para enterrar de vez o divisionismo e a conflitualidade provocados pela “partidocracia”, responsável pelo estado lastimável a que o País tinha chegado. Para unir os portugueses, era necessário “ordem e autoridade”.
Sobressai, uma vez mais, o tom lamuriento com que se reivindica o que era devido a gentes tão esquecidas pelos poderosos. Lembra-se que “p’ra cá do Marão vive um povo de heróicas legendas e de honrados timbres, esquecido quase sempre pelos poderosos, que mandam. Povo esse, valente, com direitos a fazer respeitar, que tem reivindicações a fazer valer, numa ânsia insofrida de progresso, que não podem ficar calados. Pátria! República! Província! Eis a trilogia com que galhardamente – como divisa – este jornal se apresenta, a quem o ler”.
O número três, de 30 de maio, vai renovar o desafio já lançado no número anterior. “Porque se não faz um Congresso Trasmontano?” As individualidades, “que constituem as elites da sua população”, desenvolvem atividades que “se têm estiolado em improfícuas lutas dum facciosismo político sem finalidade nacional”. “Deviam antes juntar-se em torno de objetivos comuns e de desideratos que propugnassem pela defesa dos interesses dos que vivem p’ra cá do Marão. Mas antes, deveria realizar-se um congresso do Distrito de Bragança, que “seria, assim, a antecâmara do futuro congresso trasmontano… O Distrito de Bragança, isolado pela distância, tem questões materiais a resolver dotadas de uma acuidade notável; mas acima de todas estas, e como condição primordial da sua resolução, figura a questão moral” – assina Sá Alves.


O artigo de abertura, que tem como título “Dr. Oliveira Salazar”, propala palavras que foram ditas aos governadores civis que se reuniram, na residência do Presidente, a 7 do corrente: “Não podemos dar por terminada a nossa missão. É que a Constituição foi votada mais por um ato de confiança cega nos governantes do que pela compreensão por parte dos eleitores”. “A política a seguir de futuro é conseguir que quem votou cegamente nos governantes nos siga”. Era essencial fidelizar o eleitorado: urgia “criar uma consciência plena de Estado Novo”.
Fala-se com entusiasmo de algumas obras públicas e da necessidade de melhorar a Cidade, sugerindo a resolução de várias situações. Constata-se que já se iniciaram os trabalhos de “reempedramento do troço que da estação vai ao entroncamento de Vale de Álvaro”; há que avançar “com o calcetamento das ruas principais da nossa Cidade”. Porque se ficava pelas intenções, pergunta-se depois: “afinal, para que foi feita uma planta para modificação da pavimentação da Praça da Sé?”. Bragança “é uma Cidade que precisa caminhar, embelezar-se e tornar-se agradável à vista dos que a visitam”.


Há sugestões simples e problemas que se arrastam. Na Praça do Mercado não se deviam vender produtos expostos no chão; nas “terras do nosso País, os géneros à venda nos mercados públicos estão expostos em tabuleiros apropriados. Porque não se faz, nesta Cidade, o mesmo?” Há “inúmeras ruas onde necessário se torna lhe seja aberto o coletor para esgotos”. Tais trabalhos estariam já orçamentados e a Comissão Administrativa do Município estaria empenhada na sua realização.
“A extinção dos cães” – “que atrasador espetáculo” feito “em nome da profilaxia da raiva” –, pela maneira como é executada, impressiona o “repórter”. Espetáculo “desumano”, o envenenamento dos cães “pela estricnina em pleno dia e em plena via pública!” Os bolos são ainda perigosos para os outros cães, que não os vadios, para outros animais e para as crianças. É tempo de “remodelarmos os processos bafientos dos tempos que já lá vão”.
Em “notas da quinzena”, figura uma notícia sobre o novo edifício da filial da Caixa Geral de Depósitos. O repórter visita-o, fica impressionado com as instalações e faz este comentário: de “linhas sóbrias e gosto estético invulgar no nosso País, pois a construção obedece aos traços mais avançados da arquitetura alemã, já se ergue, majestoso, na Rua Abílio Beça”.
Quase dois meses passados, em 22 julho, informa-se que a Câmara está a construir o novo Matadouro Municipal. “Em pouco mais de um ano, o vetusto pardieiro de Além do Rio encerrará as suas portas a bem da higiene e da salubridade públicas”. O Município, “fazendo desaparecer o casebre infecto da Ponte dos Açougues, dará o primeiro passo para o saneamento do populoso bairro”.
Propagandeiam-se os melhoramentos que aí vinham: regressou de Lisboa o Governador Civil – o capitão Salvador Nunes Teixeira –, depois de ter conferenciado com as mais altas individualidades, acerca dos “novos e importantes melhoramentos que vão ser feitos no nosso Distrito”.
As preocupações com o “alindamento” da urbe, para mostrar uma nova cara aos visitantes, não cessam. “Bragança, capital de Distrito” – a 30 de setembro de 1933 – para não continuar a ser apenas a sede das autoridades e do funcionalismo civil e militar, precisa “de se alindar, aformosear”. A nova Avenida João da Cruz, ainda em construção – “e quem sabe até quando” – deixa “visionar que vamos encontrar uma Cidade moderna”. E o que se vê? “As ruas calcetadas à portuguesa precisam de grandes reparações e consertos”. A Praça Almeida Garrett é a “sua sala de estar. É o ponto de reunião das suas figuras mais representativas, onde às portas dos seus estabelecimentos se cavaqueia amenamente, onde se faz um pouco de blague e onde até… se corta um pouco… na casaca dos outros. Pois bem. Aquilo como está é uma vergonha. Não queremos dizer que [Bragança] tenha ficado inativa perante este vento de renovação” que percorre o País. Tem o “lindo Jardim António José de Almeida de linhas modernas… Mas para que esta obra ficasse completa necessitava de outras, como sejam a cobertura da Ribeira do Fervença, o aformoseamento das suas entradas com motivos decorativos”.

Aspecto do Jardim Público no segundo quartel do século XX

O Fervença, que volta a ser designado por ribeira – como acontecia no século XVIII –, e um estranho projeto de cobertura! As esperanças de que as coisas andem são muitas, porque “preside à Comissão Administrativa do nosso Município o major senhor Teófilo de Morais, espírito moço, inteligente, capaz de resolver, a contento de todos, todos os problemas que têm vivido sem solução, há longo tempo”.
Ainda este lamento, que acaba por ser sintomático do atraso da urbe: “Telefones” – “Infelizmente”, não há novas “da instalação dos telefones no nosso Concelho”. “Só a nossa Cidade e a cidade da Guarda são as únicas que não foram dotadas ainda com os telefones”. Em contraponto, noticia-se o progresso: instalou-se no Hospital da Misericórdia o aparelho de “raios ultravioleta”, que já “presta serviço”...
Há outros problemas. O Tribunal de Bragança, “onde funciona a secretaria judicial”, por não ter condições, necessita de uma “limpeza radical”.
Diz-se, com um registo que se quer humorístico, mediante a dificuldade em prosseguir com a construção da Avenida João da Cruz: “vai ser contactada uma empresa americana para transportar para longe um prédio que obsta ao prosseguimento da Avenida”. O tom é o mesmo para falar da deficiente iluminação elétrica: “a empresa fornecedora de luz elétrica encomendou em Marrocos alguns quilómetros de torcida para aplicar às lâmpadas”.
Para fechar, na edição de 30 de setembro, uma informação relacionada com a “vida social”, com o “mundanismo”, que denota práticas que vinham de tempos anteriores: numa “ceia à americana”, na noite de 17 de setembro, no Centro Republicano de Bragança, foram coroadas onze rainhas. Para evitar ferir suscetibilidades, havia rainhas para todos os gostos. À cabeça, a dra. Emília Morgado, “Rainha da Elegância”; senhoras das “melhores” famílias – Direito, Teixeira, Coelho, Navarro, Borges, Pinto – completavam a lista: desde a Rainha do Salero, passando pela do Olhar, da Beleza Clássica, da Gentileza, da Vivacidade, da Graciosidade, da Compostura, da Candura, até à Rainha da Civilidade. Informação muito virada para a Cidade, que facilmente esquece o mundo rural constituído pelas freguesias do seu Município – à semelhança, aliás, de praticamente todos os jornais bragançanos.
A Bragança dos nossos dias é fruto de uma caminhada que continuou a ser feita em consonância com os tempos que vieram depois de 1933.
Muito se andou… Apesar de erros e desvios, ao longo do percurso, tem-se assistido – em especial nos últimos 30 anos – ao desenvolvimento e progresso da Cidade, conferindo-lhe uma modernidade que respeita a sua identidade. Deve dizer-se que também é diferente pelos patrimónios que ainda conserva…


Nos dias que correm, embora os tempos sejam difíceis, já não se ajusta a apreciação que da Cidade era feita, em 1910, quando o Rei se preparava para a visitar: “cidade pobre em haveres e parca em entusiasmos, que a vida torturada que sofre, no cruciante labor quotidiano, abandonada, não lhe deixa abrir a boca num sorriso franco de felicidade, mas apenas numa expressão magoada de artificial contentamento…” Felizmente, em face do percurso que foi realizado, estamos distantes deste esclarecedor e bem escrito diagnóstico. É outra Cidade. Diferente.
Porque as cidades – tal como os indivíduos – “são o que foram, são o que são, mas são, essencialmente, o que está para vir”…

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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