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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 20 de dezembro de 2014

OS FILHOS DO (IN)FORTÚNIO, de Lídia Machado dos Santos e Pedro Bessa

Tudo o que sou claramente não é daqui. Mas tudo o que sou obscuramente pertence a este chão. A minha vida é uma corda de viola esticada entre dois mundos. No outro, oiço-lhe a música; neste sinto-lhe as vibrações.
(Miguel Torga, Diário X)

A vida na cidade nunca fora apenas uma opção. Fora a opção. A única realidade que haviam conhecido até então desde os tempos das diabruras mais feias na casa de uma tia tão tia cujo nome já se tinha perdido no tempo. Por essa altura, o mês de agosto, e só esse, era passado algures num parque remoto do país que nem parecia o seu. Chamavam-lhe Montesinho e ficava a dias de viagem de Lisboa. Pelo menos para os mais jovens da família, a viagem, no início dos anos 80, parecia ter a duração de uma eternidade.
Aquela viagem tinha sabor a aventura. Chica e o irmão Rodrigo preparavam-se durante semanas para receberem o cheiro a verde e a silêncio que o campo exalava.
Aos quinze anos, e já no final daquela década, a padecer das primeiras borbulhas, Chica passara a Francisca e recusara-se a deixar o ar cada vez mais putrefacto da cidade durante o verão por não acontecer, segundo ela, nada de moderno na montanha. Lá não havia as festas da moda, as pessoas exuberantes, os lugares requintados. O irmão seguira-lhe o raciocínio, a vontade e o exemplo. Afinal, ela era a mais velha e tinha sempre todas as respostas. Instalar-se-ia uma luta entre eles, os pais e a tia Montesinho, como era conhecida na família. Vencê-la-iam os dois petizes depois de algum tempo, de resto.
Um dia, porém, a opção seria definitivamente outra e ver-se-iam obrigados a regressar munidos de armas e bagagem. Sobretudo bagagem. A montanha contemplá-los-ia do alto da sua imensa pacatez e sabedoria e ensiná-los-ia a viver de novo na simplicidade de quem tudo tem e nada anseia.

A reviravolta seria total. Sem os pais e a maior parte da família para os apoiar, ou até mesmo a tia enrugada dos prados longínquos a quem recorrer, sem os amigos íntimos, chegados, os que estavam lá em casa com convite e sem ele, sem os empregos e empregados, as lojas e os restaurantes de luxo, Rodrigo voltaria a sentir o cheiro dos prados nas suas narinas. E talvez Francisca se resignasse.
A hora havia chegado. Teriam de mudar todos os caminhos. As suas vidas teriam de ser reformuladas. Até a Delta Q imaculada, imponentemente
implantada em lugar de destaque na cozinha chique a valer e sem cujo café se haviam recusado sair de casa centenas manhãs antes, deixaria de fazer sentido e seria barbaramente substituída pela velha cafeteira sem asa da tia Montesinho, a mesma que tinham deixado para trás trinta anos antes, algures num lugar ermo do concelho de Vinhais.
E Francisca? A mana negar-se-ia com toda a garra, gritos e punhados de cabelo a aceitar a mudança, inevitável, que, de mansinho, se ia instalando nas suas vidas. Resistiria até a última gota do perfume mais caro se enxugar no fundo do frasco.
Até quando conseguiriam ter motorista e pagar a exorbitância do condomínio do quinto andar das Amoreiras para morarem num luxo que já sabia a catástrofe financeira? Até quando conseguiriam passear calmamente na avenida da Liberdade e ignorar aqueles que lhes estendiam a mão?
Enfim, talvez fosse tudo uma questão de opções, gavetas, pó, cheiros e caminhos.
Agora, o campo, o isolamento, a aridez e o ermo, ofereciam-se-lhes como a única saída viável, embora dificílima. Para Francisca seria quase como regredir em termos civilizacionais. Não conseguia entender por completo como é que aquelas pessoas eram capazes de viver um quotidiano de pedra, madeira, terra e trabalho braçal. Como é que conseguiam encontrar algum conforto num sítio onde tudo tinha de ser produzido e não simplesmente adquirido? Como se sentiam os aldeãos realizados e satisfeitos vivendo numa povoação com uma rua e quatro ruelas, duas delas conducentes a estábulos? Sem lojas, cafés ou hipermercados? Sem um cinema, um quiosque ou simplesmente rede de telemóvel?
Os (des)encantos de Montouto instalar-se-iam gradualmente no seu coração. Devagar, mas firmemente, como a flor do castanheiro, na primavera, se instala vagarosamente nos ramos ainda queimados pela geada de março…

in:altm-academiadeletrasdetrasosmontes.blogspot.pt

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