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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Panegírico à Vida em Belheç/Velhice de Fracisco Niebro (Amadeu Ferreira)

Norberto Veiga[1]

“A velhice não afasta necessariamente os homens da vida ativa porque há
uma atividade muito própria dos velhos: muitos continuam a servir
a pátria com a sua prudência e autoridade; outros entregam-se ao estudo
das letras e das ciências; alguns, ao cultivo das terras”.
[Cícero, De Senectute, sublinhado meu][2]

Manuel da Fonseca num dos contos da obra O fogo e as cinzas, “O Largo”, escreveu “o Largo era o centro do mundo”. Parece-me ser essa a intenção de Fracisco Niebro, no introito da obra, ao colocar o protagonista do relato, “um velho”, enfatizo a utilização do determinante indefinido, sentado na ombreira da sua porta, isto é, na rua, que dá para um largo [8] da qual faz o centro do “seu” mundo. O velho assume na primeira pessoa o relato da vida, com laivos autobiográficos do autor. Embora o mundo, para ele, seja tão só a sua aldeia, “Nos meus oitenta anos quase não saí daqui. O mundo é grande. (…) Por isso, o centro só pode ficar onde ponho a ponta da minha bengala” [30]. Esta ideia é, de novo, reforçada na página 52, onde se lê: “Passo os dias sentado no poial de pedra da rua: quem passa olha para mim”. Esta atitude reflexiva do velho, sobre as pessoas da sua aldeia, coloca o leitor, por sinédoque, perante o espetáculo do mundo e leva-o à autognose. A tarefa é árdua mas ele não desiste de recordar/escrever para nos questionar: “Desde que estou aqui sentado na rua já passaram mais de cem pessoas” [98].  
Qual é, então, o propósito do velho/da obra? As intenções são várias. Em primeiro lugar, reiteramos a questionação do leitor para o levar à reflexão sobre a vida e a melhor forma de a “merecer”. Por isso, o autor nos faculta uma espécie de manual, isto é, uma carta de intenções que, segundo creio, constituiu a sua filosofia/ideias de vida, fixada na página 38, sempre atual e de muita utilidade para o cidadão hodierno.
A reflexão do velho, escrita com grandes dificuldades físicas, é feita em flashback recordando as memórias do passado para chegar à desconfortável conclusão: “Há coisas, por exemplo cantigas, em que já não caibo, mundos que parecem já nada querer ter a ver comigo” [8]. Estas palavras trazem à memória do leitor a réplica de Beresford a Principal Sousa, da obra Felizmente Há Luar! de Luís de Sttau Monteiro: “O velho está sempre a ceder perante o novo e o novo sempre a destruir o velho”[3]. Parece-me que é também para isto que a personagem/narrador velho escreve, ou seja, para ser memória futura do povo e das tradições que enformaram a sua vida e que persistem em continuar, apesar da veracidade das palavras de Beresford.
Por conseguinte, o velho, ciente do inexorável curso de Apolo, decide perpetuar a sua memória através da escrita, como o autor afirma: “Depois, veio-me a vontade de escrever”, que lemos na segunda página da obra [8]. Esta vontade, em meu juízo, traduz-se em dois propósitos: o primeiro, em não deixar morrer as tradições e a língua de um povo, pelas quais o autor se bateu, de forma abnegada, ao logo da sua vida; o segundo cumpre-se no legítimo e almejado desejo do homem, Amadeu Ferreira, em nos legar uma obra perene que jamais possa ser ignorada. Esta postura lembra o tópico da imortalidade que se adquire pelo valor da obra literária, imortalizado na ode XXX, do livro terceiro de Horácio[4].
O ato de escrita aprece-nos, nesta obra, associado ao alimento que prende o escritor à vida: “escrever é como um alimento que me vai mantendo vivo, tal como a bengala me permite manter-me de pé” [56]. Logo, a escrita, aliada à sabedoria da palavra, que é equiparada a diamante que brilha [20], remete, em minha opinião, para a possibilidade de a literatura transformar o mundo real. Pois, como assevera Vítor Aguiar e Silva, na obra Teoria da Literatura: “O escritor, ao emitir o seu texto não só transfigura o real nomeado ou aludido, mas reinventa e instaura o próprio real, o real absoluto, com a urdidura encantatória do seu discurso[5]”. Nesta postura do escritor fulge a figura de Prometeu que, latu sensu, simboliza a capacidade de a comunicação literária contribuir para transformar o real, o real antropológico e o real histórico-social. Estas palavras do autor de Velhice corroboram estes preceitos: “Gostam de sentir que as histórias têm uma vida diferente, como os sonhos. As histórias ensinam a sonhar e falam de um mundo tão diferente que fazem nascer a vontade de mudar aquele em que vivemos” [108]. No entanto, esta força performativa da palavra pode ser ineficaz se o leitor se recusar a aceitá-la, como se depreende das palavras do autor: “Pensamos que já sabemos tanto que nunca somos capazes de encontrar um espaço para aprender” [64].
Na base destas preocupações patenteia-se a ideia angustiante do esquecimento que para o escritor se assemelha à morte: “Estar só não é morrer, é não nascer. Uma pessoa morre quando já ninguém olha para ela” [32][6]. Creio não restarem dúvidas aos leitores mais assíduos da obra de Amadeu Ferreira que a sua luta, ou melhor a sua escrita, foi sempre esta pugna hercúlea contra o esquecimento, que, não raras vezes, dói mais que a própria morte. É por esta ordem de razões, que se aceita que toda a vasta produção literária de Amadeu Ferreira, e esta em particular, foi animada pelo anseio de se “libertar da lei morte”.
Outro grande filão do livro cumpre-se no título desta crítica, isto é, o elogio da vida, sempre associado à ousadia e à vontade de querer vencer e antecipar o futuro, pois: “Apenas é nosso o que fazemos porque o queremos” [50]. Este encómio à vida está patente nas palavras do autor: “Quando olho para trás e vejo o que ficou, sorrio. Houvesse quem fora capaz de sorrir e olhar para a frente… Nada há tão difícil como isso. Olhar para diante mete medo. E com medo ninguém sorri com vontade. E quando ninguém sorri, as coisas e a vida ficam tão pesadas que custam a suportar” [44, sublinhado meu]. Mas por mais espinhosa que seja a nossa missão, em vez de desistir devemos recomeçar, uma vez que: “Quando se perde a vontade de começar, começamos a morrer” [46]. E Amadeu Ferreira foi um exemplo acabado desse recomeçar, porque a energia e a força telúrica, imortalizada por Torga, que sorvia das arribas do Douro, o impelia a “nunca contentar-se de contente”.
Todavia, uma certa desilusão atormenta o escritor, porque ninguém pensa nada, “Para pensar, há que parar. (…) E como ninguém pensa, nada muda” [28]. Registe-se que o sofrimento está associado à lucidez e à inquietação das pessoas, pois “quem mais sabe mais sofre.” (cf. Pessoa “Se estou só, quero não estar”). O ato de cogitar aumenta o conhecimento e, por conseguinte, o sofrimento: “Até os velhos, porque pensam mais, morrem mais depressa” [28]. O velho acaba por sucumbir ao afirmar: “Por vezes sabe muito bem uma pessoa não se lembrar de nada e ficar encandeada com coisas tão pequeninas como florzinhas de telhado” [126].
Ouso, pois, afirmar, sem ambages e dissídios, que Fracisco Niebro/Amadeu Ferreira se “libertou da lei da morte” e continuará perenemente, como lembra Horácio, a viver na vastíssima e riquíssima obra que nos legou. Pois ele, mais que outrem, teve a coragem de “não morrer”, como se infere das suas palavras: “Apenas há um segredo para uma pessoa não morrer: agarrar-se a uma ideia com tanta força que não mais se desprenda” [34]. Creio não andar longe da verdade ao afirmar que “a ideia” a que Amadeu Ferreira se agarrou foi a difusão e a ratificação da Língua Mirandesa.
Termino apelando à leitura da obra deste ilustre Transmontano/Mirandês na qual são audíveis os ecos de uma luta contínua contra a resignação, o determinismo e o fatalismo, instigando-nos a assumir uma atitude de trabalho abnegado, norteado pelos valores e pela ética, alicerces de qualquer sociedade.

Bragança, 25 de março de 2015

[1] Doutor em Literatura Portuguesa, Universidade de Salamanca.
[2] O diálogo Cato Maior ou De Senectute de Cícero é, segundo Gérard Genette, Palimpsestes, o hipertexto da Belheç/Velhice de Fracisco Niebro.
[3] MONTEIRO, Luís de Sttau, Felizmente Há Luar!, Areal Editores, 1999, pág. 54.
[4] O poeta latino Horácio, nesta ode, fala da importância da obra literária que resistirá, como nenhuma outra, às intempéries naturais e, consecutivamente, ao esquecimento.
[5] AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel, Teoria da Literatura, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, 8.ª Ed.ª, p. 334.
[6] Leia-se o poema de Fernando Pessoa, que aqui reproduzo, por me parecer que encerra a mesma filosofia de vida que Fracisco Niebro/Amadeu Ferreira defende nesta e em todas as suas obras: “A morte é a curva da estrada, / Morrer é só não ser visto. / Se escuto, eu te oiço a passada / Existir como eu existo. // A terra é feita de céu. / A mentira não tem ninho. / Nunca ninguém se perdeu. / Tudo é verdade e caminho.” (Sublinhado meu) PESSOA, Fernando, Poesias, Ática, Lisboa, 1942 (15.ª ed.ª 1995), p. 142.

in:altm-academiadeletrasdetrasosmontes.blogspot.pt

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