A junta de bois mirandeses pareciam dois castelos. Eram novos, mas quase cerrados e como duas estampas. Bons de mãos e de patas e nunca se negavam ao carro ou à charrua, foi na «Feira dos Santos da Torre» que os adquiriu a um lavrador serrano e por preço em conta. O «Marelo» tinha uma pelagem fina quase toda amarelada, puxava à mão-esquerda e tinha um olhar mais vivo e mexido. Sendo eu criança tinha-me azar, sem eu saber porquê. Nunca perdia a ocasião de agitar a galhada na minha direcção e o meu «respeito» e medo eram muitos e constantes. O mais escuro, amarelo-acastanhado, o «Castanho», mais calmo e olhar pachorrento, aceitava-me embora eu mantivesse sempre uma distância de grande respeito.
Decorria o mês de Março em que havia as últimas lavouras da decrua ou as primeiras da entravessa para fecundarem o pão no tempo das sementeiras. Mas, o Março é o Março e sempre pode semear uma desgraça. O calor e o cansaço depois de um dia de entravessa os «beis» tiveram a recompensa de se fartarem na mimosa erva do lameiro do Fojo. Depois do estômago aconchegado, o Marelo deitou-se a remoer a vida no terrão húmido e frio. Uma tragédia! No dia seguinte o Marelo estava murcho. O molho de ferrã posto á frente, ao almoço, foi quase todo para o Castanho. Enquanto o Manel se acomodava com um caldo de garabanços, a Quitéria lançou um olhar aos «beis», como se fossem mais dois filhos.
Pelo menos, eram um dos pilares duma boa casa de lavoura.
- Mou filho, o Marelo não está bô! O que terá!
- Já tinha reparado que se arrasta mais ao birar o rego. E pouco comeu… - explicou-lhe o Manel.
- Não o piques muito, porque pode ter algum mal.
No resto do dia lá se aguentou a chambeliar as patas e todo enfiado. O tempo que passou no lameiro apenas debicou um pouco a erva tenra. A hora de regressar a casa a Quitéria já estava no tanque preocupada. Ao ver a junta e a cara sombria e relada do filho confirmava as maleitas do melhor «bei». Ficou com a alma aos pés!
- Está repessado! Temos uma desgraça! Vou-lhe buscar uma copa de farinha para ver se melhora.
O Marelo, deitado na loije, deu umas enfastiadas lambedelas no masseirão e o resto ficou.
O Eugenho chegara, da feira dos vinte e cinco, já tardego, e ouviu um silêncio sepulcral junto à lareira. A Quitéria transbordou as nuvens negras da cara:
- Estamos desgraçados Eugenho! O bei Marelo está doente! Devem-lhe ter feito mal. Alguém nos rogou alguma praga ou deitaram-lhe o mau-olhado.
Com a calma deste mundo e do outro, remoeu as palavras e soltou-as:
- Está agora doente!... Probable debe estar cansado.
- Amanhã não pode trabalhar. - disse a Quitéria. Que desgracia!… - O nosso melhor bei está doente. Deve ter sido imbêja de alguma malbada. O Diabo já nos aleijou há deis anos o reco que compramos à tua Mãe!
A cêa mal foi engolida e em silêncio martelava os ouvidos e a alma.
- Bou á Julha do Tonho para que lhe reze.
Subiu-lhe as toscas escadas de pedra, bateu-lhe no postigo e a meia voz chamou:
- Óh Julha! Já ceasteis? Estavam deitados a contar as estrelas pelos buracos das toscas telhas.
- Deus, Nó’Senhor nos dê boas-noutes!
- Boas-noutes nos deia Nó’Snhor! - replicou a Júlia, que além das rezas também fazia os partos das mulheres do povo, depois da Tia Antonha do Chico Maria se reformar de parteira da aldeia devido à velhice. Mas, disse-lhe ao que ia e não tardou a chegarem ao cabanal e à loije da cria.
Depois de dizer as rezas virou-se para o compadre que esteve sempre em silêncio, e disse:
- Não me parece que alguém lhe tanha feito mal. Pode ser algum resfriado por o animal estar suado e apanhar o banto frio da serra da Senábria ou de Nogueira.
Na madrugado seguinte o animal estava abatido e trespassado.
- Não é mais mal chamar cá o beternairo.
- Qual baternairo mou Pai! Pedimos ao Ferrador de Balsalgueiro que mande cá o Flandório, que tem salvado muita cria. Sabe tanto ou mais qu’os baternairos.
A Mãe concordou, albarda no lombo da égua e não tardou a escapulir-se no Calvário de Cima. Passou por três rebanhos acancelados: o do Capitão, nos Pinheiros, o do meu tio, Antónho Zé, na Moreira e o do Corrêa no Garrancho. As canhonas, no bardo, ruminavam os magros alvores do dia à espera da ordenha e os cães do gado ladravam a demarcar o terreno. A égua foi a trote e a galope, não passaram muito mais de duas horas e o Flandório já estava no cabanal.
- Ó Senhor Eugenho este é úm boi como uma estrela e o melhor! Está mal!
O Flandório correu com as mãos enormes o boi dos queixos ao rabo e não apalpou nenhum inchaço ou até alguma bolarda. Em plena década de cinquenta, do séc. XX, limitou-se a receitar-lhe enfarnadas aquecidas e não o deixar sair da loije. Voltou no dia seguinte e o animal já se mexia com dificuldade. Depois de uns instantes em silêncio sentenciou:
- Senhor Eugenho é melhor pedir para abater o animal na bila, para não se perder tudo. Se salvar vai ficar aleijado.
- Que desgraçia!... - gemeu o Manel com o semblante consumido.
- Como faço a entravessa e levo os carros de estrume para a cortinha?
- Temos que pôr o Castanho a puxar só à charrua.
- Mou Pai, ele não sabe lavrar sozinho. - atalhou o Manel.
-Vai andar alguém diante dele e lá se habitua!
(Continua...)
Nota 1: Este conto foi escrito com inobservância do (des)Acordo Ortográfico, empregando linguagem popular. Apesar dos nomes das pessoas parecerem reais, este conto é ficcionado.
Jorge Lage
Nota 2: Foi-me sugerido que se publicassem dois contos autobiográficos que vêm na grande «Antologia de Autores Trasmontanos e Alto-durienses e da Beira Trasmontana». Ambos os contos são de autores mirandelenses e, para respeitar a sugestão, começo pelo meu. Esta Antologia honra a nossa região e aqueles que a decidirem adquirir (ctmad.lisboa@gmail.com e 217939311 - de tarde).
Jorge Lage
in:atelier.arteazul.net
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Muito obrigado pela sua generosidade em publicar este meu conto, que vai sair em três partes por uma questão de espaço. jorge.j.lage@gmail.com
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