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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Pela Ladeira do Arrebentão

A junta de bois mirandeses pareciam dois castelos. Eram novos, mas quase cerrados e como duas estampas. Bons de mãos e de patas e nunca se negavam ao carro ou à charrua, foi na «Feira dos Santos da Torre» que os adquiriu a um lavrador serrano e por preço em conta. O «Marelo» tinha uma pelagem fina quase toda amarelada, puxava à mão-esquerda e tinha um olhar mais vivo e mexido. Sendo eu criança tinha-me azar, sem eu saber porquê. Nunca perdia a ocasião de agitar a galhada na minha direcção e o meu «respeito» e medo eram muitos e constantes. O mais escuro, amarelo-acastanhado, o «Castanho», mais calmo e olhar pachorrento, aceitava-me embora eu mantivesse sempre uma distância de grande respeito.
Decorria o mês de Março em que havia as últimas lavouras da decrua ou as primeiras da entravessa para fecundarem o pão no tempo das sementeiras. Mas, o Março é o Março e sempre pode semear uma desgraça. O calor e o cansaço depois de um dia de entravessa os «beis» tiveram a recompensa de se fartarem na mimosa erva do lameiro do Fojo. Depois do estômago aconchegado, o Marelo deitou-se a remoer a vida no terrão húmido e frio. Uma tragédia! No dia seguinte o Marelo estava murcho. O molho de ferrã posto á frente, ao almoço, foi quase todo para o Castanho. Enquanto o Manel se acomodava com um caldo de garabanços, a Quitéria lançou um olhar aos «beis», como se fossem mais dois filhos.
Pelo menos, eram um dos pilares duma boa casa de lavoura.
- Mou filho, o Marelo não está bô! O que terá!
- Já tinha reparado que se arrasta mais ao birar o rego. E pouco comeu… - explicou-lhe o Manel.
- Não o piques muito, porque pode ter algum mal.
No resto do dia lá se aguentou a chambeliar as patas e todo enfiado. O tempo que passou no lameiro apenas debicou um pouco a erva tenra. A hora de regressar a casa a Quitéria já estava no tanque preocupada. Ao ver a junta e a cara sombria e relada do filho confirmava as maleitas do melhor «bei». Ficou com a alma aos pés!
- Está repessado! Temos uma desgraça! Vou-lhe buscar uma copa de farinha para ver se melhora.
O Marelo, deitado na loije, deu umas enfastiadas lambedelas no masseirão e o resto ficou.
O Eugenho chegara, da feira dos vinte e cinco, já tardego, e ouviu um silêncio sepulcral junto à lareira. A Quitéria transbordou as nuvens negras da cara: 
- Estamos desgraçados Eugenho! O bei Marelo está doente! Devem-lhe ter feito mal. Alguém nos rogou alguma praga ou deitaram-lhe o mau-olhado.
Com a calma deste mundo e do outro, remoeu as palavras e soltou-as:
- Está agora doente!... Probable debe estar cansado.
- Amanhã não pode trabalhar. - disse a Quitéria. Que desgracia!… - O nosso melhor bei está doente. Deve ter sido imbêja de alguma malbada. O Diabo já nos aleijou há deis anos o reco que compramos à tua Mãe!
A cêa mal foi engolida e em silêncio martelava os ouvidos e a alma.
- Bou á Julha do Tonho para que lhe reze.
Subiu-lhe as toscas escadas de pedra, bateu-lhe no postigo e a meia voz chamou: 
- Óh Julha! Já ceasteis? Estavam deitados a contar as estrelas pelos buracos das toscas telhas.
- Deus, Nó’Senhor nos dê boas-noutes!
- Boas-noutes nos deia Nó’Snhor! - replicou a Júlia, que além das rezas também fazia os partos das mulheres do povo, depois da Tia Antonha do Chico Maria se reformar de parteira da aldeia devido à velhice. Mas, disse-lhe ao que ia e não tardou a chegarem ao cabanal e à loije da cria.
Depois de dizer as rezas virou-se para o compadre que esteve sempre em silêncio, e disse:
- Não me parece que alguém lhe tanha feito mal. Pode ser algum resfriado por o animal estar suado e apanhar o banto frio da serra da Senábria ou de Nogueira.
Na madrugado seguinte o animal estava abatido e trespassado.
- Não é mais mal chamar cá o beternairo.
- Qual baternairo mou Pai! Pedimos ao Ferrador de Balsalgueiro que mande cá o Flandório, que tem salvado muita cria. Sabe tanto ou mais qu’os baternairos.
A Mãe concordou, albarda no lombo da égua e não tardou a escapulir-se no Calvário de Cima. Passou por três rebanhos acancelados: o do Capitão, nos Pinheiros, o do meu tio, Antónho Zé, na Moreira e o do Corrêa no Garrancho. As canhonas, no bardo, ruminavam os magros alvores do dia à espera da ordenha e os cães do gado ladravam a demarcar o terreno. A égua foi a  trote e a galope, não passaram muito mais de duas horas e o Flandório já estava no cabanal.
- Ó Senhor Eugenho este é úm boi como uma estrela e o melhor! Está mal!
O Flandório correu com as mãos enormes o boi dos queixos ao rabo e não apalpou nenhum inchaço ou até alguma bolarda. Em plena década de cinquenta, do séc. XX, limitou-se a receitar-lhe enfarnadas aquecidas e não o deixar sair da loije. Voltou no dia seguinte e o animal já se mexia com dificuldade. Depois de uns instantes em silêncio sentenciou: 
- Senhor Eugenho é melhor pedir para abater o animal na bila, para não se perder tudo. Se salvar vai ficar aleijado.
- Que desgraçia!... - gemeu o Manel com o semblante consumido.
- Como faço a entravessa e levo os carros de estrume para a cortinha?
- Temos que pôr o Castanho a puxar só à charrua.
- Mou Pai, ele não sabe lavrar sozinho. - atalhou o Manel.
-Vai andar alguém diante dele e lá se habitua!

(Continua...)

Nota 1: Este conto foi escrito com inobservância do (des)Acordo Ortográfico, empregando linguagem popular. Apesar dos nomes das pessoas parecerem reais, este conto é ficcionado.

Jorge Lage

Nota 2: Foi-me sugerido que se publicassem dois contos autobiográficos que vêm na grande «Antologia de Autores Trasmontanos e Alto-durienses e da Beira Trasmontana». Ambos os contos são de autores mirandelenses e, para respeitar a sugestão, começo pelo meu. Esta Antologia honra a nossa região e aqueles que a decidirem adquirir (ctmad.lisboa@gmail.com e 217939311 - de tarde).




Jorge Lage
in:atelier.arteazul.net

1 comentário:

  1. Muito obrigado pela sua generosidade em publicar este meu conto, que vai sair em três partes por uma questão de espaço. jorge.j.lage@gmail.com

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