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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Nós Transmontanos, Sefarditas e Marranos - TU BISHVAT – O ANO NOVO DAS ÁRVORES O TU BISHVAT / וט טבשב DE ANA DOCE

Tu Bishvat é nome hebraico de uma festa que os judeus celebram no dia 15 do mês de shevat que, no calendário gregoriano, varia entre meados de janeiro e meados de fevereiro. Neste ano calhou a 21 de janeiro, começando, naturalmente, ao anoitecer do dia anterior.

É a festa das árvores, simbolizando o renascer da natureza, o dia em que o Criador decide sobre a floração e os frutos que as árvores vão dar. Geralmente aparece simbolizada por uma amendoeira, certamente por ser a árvore que, no mundo mediterrânico, mais cedo rejuvenesce e se veste de flores.

Era uma festa menor, se assim podemos dizer, para os judeus, mas, nos últimos anos, certamente devido a uma maior consciencialização ambiental, vem ganhando importância crescente. Falamos em festa mas devemos acrescentar: de oração e louvor ao Criador, celebrada com jejum “de estrela a estrela” e com promessas de renascimento do próprio homem.

Percorremos mais de mil processos da inquisição para saber se os marranos de Trás-os-Montes celebravam o Tu Bishvat. Apenas encontrámos uma referência, no processo de Afonso Garcia, cristão-novo, no qual vem inserto um “feito crime” contra sua mulher, Ana Fernandes, mulher de uma sensibilidade incrível e que nem direito a processo próprio teve.(1)

Uma das acusações que lhe fizeram foi a de celebrar festas judaicas e fazer os respetivos jejuns, entre eles o jejum do Tu Bishvat. Essa acusação foi feita pelo Dr. António de Valença, o mais célebre Mestre e divulgador das ideias e práticas judaicas entre os cristãos-novos de Trás-os-Montes, também ele preso pela inquisição e que se tornou o maior dos denunciantes de seus pares.(2) Vejam-se as próprias palavras do processo:

— A dita Ana Doce nunca o deixava senão que ele lhe declarasse as festas dos judeus quando vinham e isto com muitos rogos, para as guardar, disse o dito Mestre António que a dita Ana Doce lhe perguntou no dito tempo que jejuns da rainha Ester que se faz no mês de fevereiro que se chama festa do Purim e assim também lhe perguntou pelo jejum do Tu B´shevat e que aquilo lhe perguntava a dita Ana Doce para os jejuar e que lhe dizia a dita Ana Doce que jejuava aqueles jejuns dos judeus.(3)

Confrontada com esta acusação pelo inquisidor Pedro Álvares Paredes, Ana Doce negou, disse que não fazia jejuns judaicos e acrescentou “que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse no rosto”.

Então, o inquisidor Paredes mandou chamar o Dr. Valença, que em outra cela estava preso, para a trazer à razão e a convencer a confessar seus erros.

Seguiu-se uma cena extraordinária, carregada de lirismo, encanto e desilusão daquela mulher. Apesar da sua frieza e da insensibilidade do funcionário da inquisição, nada mais realista do que o texto do processo, escrito pelo notário do santo ofício. Vejam a saborosa descrição:

— Em Évora aos 21 dias do mês de agosto de 1545, na casa do despacho da santa inquisição, depois que eu, notário li o libelo da justiça a Ana Fernandes Doce, mulher de Afonso Garcia, perante o senhor licenciado Pedro Álvares Paredes, que presente estava, e depois de a dita Ana Fernandes ter contestado o dito libelo por negação, disse ao dito senhor inquisidor que não havia pessoa alguma que tal coisa lhe dissesse a ela, ré, no rosto.

E logo o senhor inquisidor disse que para mais brevidade, para que a dita Ana Fernandes dissesse a verdade e confessasse as suas culpas, mandou chamar e aparecer diante de si o autor Mestre António de Valença, preso neste santo ofício, testemunha da justiça, para que, em sua presença, dissesse à dita Ana Doce que confessasse as suas culpas e pedisse misericórdia. E o dito António de Valença, em presença de mim, notário, em se chegando, tanto que viu a dita Ana Fernandes Doce a abraçou e ela o abraçou a ele, Mestre António, perguntando um ao outro como estava.

Ao qual Mestre António o senhor inquisidor lhe disse que lhe dissesse no rosto à dita Ana Fernandes o que dela sabia e contra ela tinha testemunhado neste santo ofício, de coisas tocantes à nossa santa fé católica.

E o dito Mestre António disse à dita Ana Doce que ele tinha confessado seus pecados e culpas e tinha pedido misericórdia, e que a admoestava, da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo e da sua, e lhe rogava que ela confessasse tudo aquilo que tinha feito contra a nossa santa fé católica, porque ele, Mestre António, tinha dito nesta inquisição o que ela sabia; e que ela fosse lembrada que havia 3 ou 4 anos, que ela, Ana Doce lhe perguntara por certos jejuns, quando caíam, para os jejuar. E principalmente pelo jejum do Tu B´Shevat, pelo Purim e por outros que ele Mestre António lhe dissera; e portanto ela olhasse o que lhe cumpria e confessasse a verdade.

E a dita Ana Fernandes disse ao mestre António que zombava e que ela não lhe perguntara tal coisa, e que jurasse ele Mestre António aos santos evangelhos, se era verdade o que dizia e que ela perguntara pelos jejuns e festas dos judeus e ele lhos dissera, e que ele jurasse que ela ouviria.

E o dito Mestre António tomou logo um livro dos santos evangelhos que estava na mesa ante o senhor inquisidor e jurou nos ditos santos evangelhos uma vez e duas que ela dita Ana Doce lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus e por outras coisas. E lhe dissera que as queria saber para as guardar e jejuar os ditos jejuns dos judeus, como em seu testemunho se continha. E que ele Mestre António lhos dissera.

Ao que ela, a dita Ana Fernandes respondeu que bem podia ela perguntar a ele Mestre António por alguma mezinha para algum dos seus filhos que tivesse doente com lombrigas, e não por aquilo que ele dizia.

E o dito Mestre António tomou outra vez o dito livro dos evangelhos e lhe tornou a jurar neles que dizia a verdade; e que era verdade que ela lhe perguntara pelos ditos jejuns e festas dos judeus, para ela haver de jejuar e guardar como em seu testemunho, e que ele lhos dissera. E que assim mesmo bem podia ser também que lhe perguntasse ela por alguma mezinha para algum dos sitos seus filhos que estivesse enfermo, por ele ser médico.

E logo o senhor inquisidor mandou ao carcereiro que levasse mestre António para o seu cárcere; e depois de levado, a dita Ana Doce disse a ele senhor inquisidor que olhasse sua mercê muito bem por sua justiça, porque ela nunca tal coisa perguntara ao dito Mestre António, como ele agora dissera; mas podia ser que o dito mestre António lhe quisesse mal, por alguma coisa; e que por tanto dizia dela o que ela nunca lhe perguntara.

E o senhor inquisidor a admoestou que dissesse a verdade porque isso era o que lhe cumpria para salvação de sua alma e que esta diligência de trazer o dito Mestre António fizera ele senhor inquisidor para que o dito Mestre António a aconselhasse, para que ela, Ana Doce dissesse a verdade e pedisse misericórdia…(4)

Notas:

1 - ANTT, inq. Évora, pº 4637. Afonso Garcia, era cristão-novo, natural de Fermoselhe, morador em Mogadouro onde casou com Ana Fernandes, a Doce, de alcunha. Ambos foram presos pela inquisição, em julho de 1544, acusados e judaísmo. Incerto do processo referido, encontra-se um “feito crime contra Ana Fernandes, mulher de Afonso Garcia, cristã-nova, presa nos cárceres”.

2 - Idem, pº 8232, de António de Valença.

3 - Idem, “feito crime contra Ana Fernandes…” fl. 18.

4 - Idem, fls. 21-23.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães

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