ANA MARQUES MAIA |
Não sofrem de interioridade. Sofrem da ideia que a maioria tem da interioridade. Nesse seguimento, a ideia de isolamento tem germinado e enraizado socialmente, talvez numa herança da necessidade de defesa contra sucessivos invasores e da dureza da necessidade de emigração que avós e pais carregaram consigo, quando a pobreza de um país enclausurado nos fazia virar mais para o mar do que para nós mesmos. Ao longo dos anos, o litoral foi-se tornando mais apetecível do que os montes, fazendo com que poucos quisessem manter-se, como se mantêm as agulhas dos pinheiros. Foi-se evolutivamente privilegiando e acarinhando o anonimato, fomo-nos habituando a viver mais facilmente num sítio onde a máscara possa cair, fomo-nos habituando a sentir, como sendo liberdade, uma experimentação constante do que pensamos ser. Livrámo-nos das raízes porque é mais fácil assim. E está tudo bem, para quem está bem assim.
No entanto, às vezes parece ser mais fácil culpar quem legisla o mal de interioridade, sem que queiramos nós próprios reparar que guardamos uma ideia de inferioridade relativamente ao interior. Nessa ideia, só germinam ervas daninhas, poucas giestas, que não permitem limpar os olhos e sentir que somos todos da pólis e que, acima de tudo, somos todos potenciais responsáveis por nos "desinteriorizarmos". A cultura é produto de quem a faz, o hype é produto de quem o alimenta, os amigos são produto de quem os nutre e os empregos podem ser produto de quem ouse pensar fora do habitual. Sofre-se muito, por aí, do mal do idêntico, do instagramável, do cool onde todos os que estão à nossa frente são visões distorcidas do que queremos ver de nós, fruto desta ideia pós-moderna de individualidade, onde o ser parece não precisar do outro para ser visto. Falta a negatividade do silêncio, a ausência na sobre-presença virtual, falta o ar puro e quem não lhe tenha medo. Falta-nos a interioridade, essa que alimenta quem por cá se vincula e que passa a ter o privilégio de saber que o tempo não é um inimigo velocista e que a perenidade também é favorável ao homem.
Faltam pessoas no interior, faltam. Faltam investimentos, faltam médicos, falta cultura. Falta. Seria bom que externalizássemos menos as nossas faltas e olhássemos mais para o que podemos fazer em nome próprio. Se assim o desejarmos. Ou quisermos. Ou estivermos disponíveis para lutar. Faz parte de quem tem boa saúde mental, esta capacidade de nos actualizarmos.
Sorvo o último travo deste café e continuo a saber amar Lisboa desde esta interioridade que é tão nossa.
Joana Raposo Gomes
Médica Interna de formação específica em Psiquiatria. Transmontana de gema.
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