Acreditamos que nós e as nossas ideias somos uma coisa só, e não é verdade. Do mesmo modo que uma aplicação informática não é o smartphone, as ideias são uma realidade postiça na nossa mente de que podemos declarar a independência se quisermos. Mas fazer isso é muito violento, elas agarram-se a nós como carrapatas ao animal parasitado, ou melhor, nós grudamo-nos a elas como o náufrago ao destroço por acreditar que abandoná-las seria desistirmos do que somos, o que até tem lógica. Talvez por isso não tenhamos o costume de interrogar as nossas ideias. Se às vezes pensamos nelas é apenas para verificar que as temos ou que estão ali à mão de semear para usar como qualquer outra ferramenta, que é o que de facto são.
Quase nunca nos ocorre que elas também nos têm a nós. Pensamos que as possuímos, não que somos por elas possuídos. Mas se os chamados possessos estão possuídos por ideias que os afligem (e a que se chama demónios), não é menos certo que as ideias reinam nas mentes de toda a gente, têm-nos em seu poder e fazem de nós o que muito bem lhes apetece. Não me refiro só às crenças religiosas e políticas, que costumam dispor dos fiéis a seu bel-prazer, aquilo que cada um pensa de si e dos outros são também ideias com as quais convive e habitualmente não questiona. Aliás no caso de trazerem felicidade nem faria sentido questioná-las, mas as ideias são facas de dois gumes, berços do bem e do mal, amor e raiva, saúde e enfermidade, plenitude e desespero, vida e morte.
O prato do dia para muitos de nós é viver lado a lado com ideias que sequestram, cegam, prestam maus serviços sem que desconfiemos ao menos um pouco da sua deslealdade. E essas sim, seria bom trocá-las por outras mais felizes, o que afinal de contas se pode sempre fazer visto que as ideias que temos não são uma fatalidade. Se criar é um atributo dos deuses, então escolher as ideias, escolher aquilo que queremos ser dentro de nós também não pode deixar de ser uma criação divina. Tanto assim que quando isso acontece nos transformamos noutras pessoas, e não apenas nos vemos diferentes como tudo à nossa volta ganha uma realidade nova. Depois, como é das ideias que parte a decisão de agir (ou não agir) no mundo, como tudo o que se faz é a materialização de alguma ideia, o poder permanente que elas têm de produzir realidade estende-se em grande parte aos acontecimentos, às vidas, aos próprios objetos físicos.
Claro que o reverso desse “milagre” é o sentimento de responsabilidade, bem como o medo de agir, de fazer coisas, que ela pode trazer. Ter ideias próprias será tudo menos cómodo, todavia não se pode viver sem elas, tal como não se pode deixar de agir. E quando estes sentimentos nos atingem, e atingem muitas vezes, renunciar às nossas e copiar ideias feitas, já mastigadas, enlatadas, é o menos arriscado. Confortável é imitar, deixar-se ir na onda, cingir-se à condição infantil de dependente. Aí não há que ter medo, o mundo é um imenso mercado no qual se assiste em permanência a um desfilar de ideias que se atropelam e esfalfam para chamar a atenção de quem as não tem.
Um meio poderoso de passar ideias pela porta do cavalo às pessoas sem ideias são as televisões, também por isso mesmo em grande parte máquinas de adormecer, estupidificar. Por trás do que impingem à boleia de cristinas, gouchas, futebóis, está a ideia de que esse nosso sono hipnótico facilita a vida de quem de olhos bem abertos nos vai manipulando e levando à certa. Que só existe porque se conta com o hábito muito antigo de investirmos quase nada em ideias. Calhava-nos pensar um pouco nisto, o que por falta delas não vamos de certeza conseguir.
Eduardo Pires
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