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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

COISAS [...] — OS SAPOS

 O sapo ocupa um lugar importante no imaginário popular.  Talvez porque se pode parecer estranhamente com uma pessoa.  Não é verdade que às vezes encontramos nele traços fisionómicos, se assim me posso exprimir, quase humanos: quem não conhece alguém com cara de sapo?  Depois o próprio corpo, pesadão e compacto, sem a cauda dos restantes animais vertebrados que reptam sobre a terra, e apoiado «naquelas pernas de trás em dobradiça, no mesmo instante um banco ou uma catapulta» — como diz magistralmente Miguel Torga nesse inimitável e irrepetível livro de contos que se chama "Bichos", a propósito de Bambo, o sapo —, o próprio corpo, dizia, quem não viu já na praia corpos humanos assim?
 Para além destes pormenores de ordem física, vê a imaginação popular no sapo algo de misterioso e malévolo,  que a ciência imparcial não logra reabilitar.  Bem diziam os livros de leitura da antiga quarta classe que o sapo é um animal benfazejo, que desinça na bicharada daninha da horta.  Pois sim!  O lavrador, mal vê um sapo, será milagre que não lhe largue uma sacholada, quando não lhe inflija tormentos ainda piores, como esse cruel, alarve e absurdo uso de lhe meter um cigarro aceso na boca para vê-lo inchar, inchar, engolindo o fumo, até que rebente.  Nunca assisti a uma selvajaria destas, mas sei que a fazem muitas vezes os rapazes, e dela se gabam, como a padeira de Aljubarrota se deve ter gabado de acabar à pazada com quatro castelhanos esfalfados e famintos.
 Esta antipatia pelo sapo e pela prima rã vem decerto de tempos muito antigos.  Fedro deve ter-se limitado a dar forma a uma efabulação anterior, quando propôs a conhecida “Rana rupta et bos”, em que uma rã se quer comparar a um boi e, para ficar do tamanho dele, incha até que rebenta.   
 Retenha-se esta coisa de os pacíficos batráquios incharem, presente na fábula e no uso bárbaro acima descrito.  O inchar um sujeito é manifestação do desejo de dar-se ares, mostrar-se superior. Ficou todo inchado, diz o povo, querendo significar ufano, arrogante.  Ora esta ideia de vaidade não casa bem com o pobre sapo, que se arrasta pelo chão e incha como vimos por razões bem diferentes, e do paradoxo nascem na tradição popular historietas em que o bicharoco é apresentado como vaidoso, altivo, insolente e outras coisas ligadas ao inchar nos humanos.  Peço licença para transcrever dum livreco meu, “O Diabo Veio ao Enterro”, a seguinte historieta, que restituo o mais próximo que posso do linguajar nordestino:
 Diz que o sapo uma neite saíu à rua.  Um home que ia a passar viu-o e prècurou-le:
 – Onde vais, sapo?
 – Vou à ronda – respondeu o sapo, cheio de prosápia.
 – E se te batem?
 – O quê?! – disse o sapo, como se fosse alguma cousa do outro mundo.
 – Se tu bates a alguém? – emendou o home, de caçoada.
 – Ah, isso pode ser!
 O sapo lá foi à ronda, com tanto azar que um bei pôs-le a pata em cima e arrebentou-o, deitou-le as tripas de fora.  Ao arrastar-se para o buraco, o sapo tornou a encontrar o mesmo home.
 – Vês?  Eu não te dizia? Trazes as tripas d'arrasto...
 – Tripas?!  Atão não vês que isto é a corrente do relógio?
 É assim o sapo, na tradição popular.  Mas eu jurei que havia de o reabilitar.  Num outro livreco, “Os Cavalos da Noite”, dediquei-lhe nada menos do que um soneto.  Pasma o Leitor, descrente de que os sapos sejam assunto nobre para um soneto?  Pois saiba que são, sim senhor.  Louvava eu então no sapo, não a sua utilidade na horta, mas o canto com que preenche boa parte das noites no começo do verão.  
 Agora mesmo, no momento em que escrevo isto, a dois passos do coração do projecto de metrópole que dá pelo nome de Vila Real, eu oiço-os: é uma misturada de centenas de pequenos gritos, que se avolumam e arredondam numa como chocalhada de rebanho que regressa à aldeia, um alevante imensamente jubiloso e um tão forte apelo de forças vitais incoercíveis que me chega a comover.  Num mundo que se envenena a olhos vistos e exclui cada vez mais espécies do número dos vivos, e numa cidade que levianamente expulsa de si todo o sinal de ruralidade, graças a Deus que ainda se ouvem os sapos nas noites de Maio e Junho!  Quando, hélas!, deixarem de se ouvir, é sinal que Vila Real deixou definitivamente de ser a minha cidade, a cidade que me convém, para passar a ser a tal metrópole dos senhores políticos, habitada por setenta mil angústias.
 Onde os sapos me levaram...  Quem diria? 

Apostila em Julho de 2022: 
 Juro que, por esses anos 80, 90 do século passado, o coro dos sapos era uma coisa digna de se ouvir — uma espécie de aleluia jubilosa, que vinha do Rio Cabril e do Monte da Forca, saudando os dias grandes que aí vinham a reboque de Maio. De repente, quase diria de um ano para o outro, os sapos deixaram de se ouvir. Ignoro as razões. Talvez a cidade se tivesse tornado demasiado inóspita para a bicharada do campo. Não sei.. O que sei é que ainda hoje sinto saudades de ouvir cantar os sapos em Vila Real — cidade onde ‘canta’ agora outra casta de sapos, e mais não digo.

(Repórter do Marão, 6 de Julho de 1991)

A. M. Pires Cabral

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