Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Não creiais, ninfas, não, que fama desse
A quem ao bem comum e do seu rei
Antepuser seu próprio interesse,
Inimigo da divina e humana Lei.
(Camões, Os Lusíadas, Canto VIII, est. 84)
Uma frase estafada diz que o poder corrompe. Aceitá-la como verdadeira é à partida passar a batata quente para uma coisa abstrata que não pode ser responsabilizada – o poder – para infantilizar e desculpar as pessoas de carne e osso que o exercem. Quanto a mim, não creio que um cidadão entre honesto para um cargo e saia de lá corrupto. Quarenta anos foi tempo mais do que suficiente para que salazar comprovasse esta tese e isso não aconteceu. O poder corrompe porque a maioria dos que hoje o procuram, sabendo de antemão que neste jardim mal frequentado o crime compensa, levam já a intenção fisgada de se corromperem. E se é verdade que não serão todos iguais (outra frase batida), andamos lá perto.
Ex-tesos que ele engordou são às carradas. Um daqui da terra dizia há tempos numa entrevista que devíamos admirá-lo por ter vindo do nada e hoje ser o que é. Eu não me apetece admirar quem, enquanto detentor de um cargo concedido de boa-fé e essencialmente para servir a comunidade, engendra esquemas ilícitos com o mundo empresarial (banca, imobiliário, construção, energia, comunicações): contratos em que o estado sai sempre a perder e é defraudado em milhares de milhões; alienação e venda de bens públicos ao desbarato; concessões de monopólios e de rendas chorudas (que são em si a negação do capitalismo); organismos reguladores estatais cujos membros são pagos pelos privados que vão regular; empresas que nomeiam governantes; legislação feita a pensar em entidades concretas, etc. etc.
Com uma parte dos sete mil milhões de euros que sacam cada ano do orçamento do estado (contas por alto), os corruptores oferecem depois aos corrompidos cargos dourados vitalícios e outras generosidades, assim como às famílias deles, aos amigos deles, aos partidos deles, à comandita deles. Um cenário mafioso feito com a cobertura de especialistas em elaborar, torcer e fintar leis, não vá o diabo armar alguma. É assim que estes futres acedem à prosperidade, incólumes e sempre reverenciados como xô ingenheiro e xôtor. A culpa é sobretudo nossa. Quem não quer saber consente. Só um povo entorpecido poderia aceitar que várias propostas legislativas contra o enriquecimento ilícito tenham sido sistematicamente chumbadas no parlamento. À perceção de sermos comidos em grande, deixámos de acreditar e alheámo-nos. Quase setenta por cento defecamos nas eleições como forma de protesto, exatamente do que eles precisam para prosseguir na rapina enquanto nos vão anestesiando com o comentário televisivo, futebolístico ou não. Bastam-lhes os votos dos outros trinta.
E quem são estes? Primeiro, os ingénuos que acreditam sempre e votam religiosamente. Depois, os apanhadores de beatas, lembrados da fome aguda que passaram ao longo da história, da vida de cão. Vivendo agora menos mal com restos, agarram-se ao partido sempre a pensar na palavrita, na atençãozita, no jeitito, na cunhita, no tachito. Votam reverentemente. Por fim, uma geração rasca instalada, sem ética, chupista, uma clientela medíocre que preenche todo o tipo de cargos em ministérios, autarquias, institutos, fundações, observatórios e outros organismos públicos, está encantada com a golpada dos ajustes diretos e prepara já uma nova vaga de assalto se houver regionalização. Votam compulsivamente. Pobre país. Será para nos compensar desta poça fétida que o marcelo nos beijoca e abraça tanto?
(Nordeste - ago. 2020)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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