Havia, contudo, a convicção de que nem todas as mulheres tidas por bruxas eram criaturas maléficas. Digamos que havia bruxas boas e bruxas más. Havia umas quantas que, longe de empecerem e fulminarem as suas vítimas com o tal olhar repassado, faziam rezas, benzeduras, defumações e outras práticas curativas em benefício das gentes. E essas não eram temidas, mas acarinhadas. Dava-se-lhes esmola. Rogavam-se em caso de moléstia em casa, sobretudo moléstia do miolo, como demências, possessões demoníacas, coisas assim que implicam mais com o espírito e a mente do que com o corpo. No meu livro de que falei acima (“O Diabo veio ao enterro”), há um conto em que uma bruxa boa livra um paciente de visões que o atormentavam.
Dum ponto de vista da religião, as bruxas verdadeiras renunciam abertamente a Deus e tornam-se refractárias à doutrina da Igreja e aos ensinamentos dos evangelhos, posição que mantêm mesmo na hora da morte. Mas uma das informadoras acautelou que, mesmo tendo renunciado ao catolicismo, continuam a frequentar a igreja, para que a ausência das práticas rituais as não denuncie como bruxas.
A condição de bruxa era vista como um fadário, isto é, algo que lhes era imposto e tinham de cumprir mesmo contra vontade. Ao mesmo tempo, o fadário era um ónus de que só se desobrigavam à hora da morte, em que deviam transmiti-lo a outra pessoa. Nenhum dos informadores soube dizer quem impunha o fadário nem como se processava a transmissão do mesmo, mas apenas que a criatura que o recebia da bruxa moribunda ficava a ser bruxa também, assim se garantindo, quase dinasticamente, a continuidade.
Na obra Vimioso – Notas Monográficas, de Francisco Manuel Alves (o grande Abade de Baçal) e Adrião Martins Amado, é referido o seguinte caso:
Uma bruxa estava às portas da morte mas não podia morrer sem passar o fadário a outra criatura. Querendo aliviá-la daquelas ânsias, disseram-lhe: “Diga Jesus, tia Brites!” E ela: ‘Não posso, que é muito arrodeio.”
Trata-se provavelmente de uma anedota (se bem que não seja apresentada como tal), mas as anedotas são formulações verosímeis do real e não servem apenas para divertir. ‘Arrodeio’ está aqui por ‘coisa complicada de dizer’. Ou seja: a palavra ‘Jesus’ era demasiado difícil de pronunciar para uma bruxa. A anedota mostra até que ponto ia o compromisso das bruxas com o Diabo e a sua recusa de Deus.
Esta ideia do fadário está também presente numa conta que se ouve em Mogadouro, recolhida por Alexandre Parafita no seu livro “O maravilhoso popular”:
Em algumas aldeias crê-se que toda a mulher que é bruxa não pode morrer sem arranjar alguém que lhe fique com a peneira. E a mulher que lha herdar, herdará também o fadário, pelo que irá tornar-se numa bruxa igual.
Conta-se em Mogadouro que, numa determinada aldeia, há muitos anos, uma mulher, para fazer a última vontade a uma velha moribunda, ficou-lhe com a peneira, sem saber que se tratava de uma bruxa. A seguir, cuidando que ela já estava morta, meteu-a no forno para a queimar.
Diz o povo que a peneira andou dentro do forno às voltas como um remoinho e levou tempo a arder. E diz-se também que a bruxa, que nesse momento estava a exalar o último suspiro, entrou de novo em agonia e não havia meio de morrer, pois a peneira encontrava-se agora transformada em cinza e não podia, por isso, ser herdada tal como ela a deixou. Diz-se que só conseguiu morrer muito tempo depois, quando um determinado padre veio de longe confessá-la.
E assim acabaram, de vez, as bruxas nessa aldeia, pois não foi possível retomar a sucessão uma vez que não houve quem conseguisse herdar a peneira da última que lá viveu.
A dar suporte a este submundo que afinal estava tão porta com porta — qual era a terreola que não contava pelo menos uma bruxa entre as suas moradoras? —, o povo criou-lhes, por assim dizer, um cenário, uma mitologia, um culto. O cenário preferido das bruxas, quando se reúnem para os seus sabás nocturnos, é uma encruzilhada de caminhos, dizem-me. E logo eu, com este meu vezo atrevido de dissecar os mínimos pormenores, me ponho a cismar que as bruxas escolhem encruzilhadas pela semelhança que estas têm com a cruz, e tripudiando sobre elas, estão a desacatar o símbolo maior do cristianismo e, dessa forma, a desafiar Deus.
Dum ponto de vista da religião, as bruxas verdadeiras renunciam abertamente a Deus e tornam-se refractárias à doutrina da Igreja e aos ensinamentos dos evangelhos, posição que mantêm mesmo na hora da morte. Mas uma das informadoras acautelou que, mesmo tendo renunciado ao catolicismo, continuam a frequentar a igreja, para que a ausência das práticas rituais as não denuncie como bruxas.
A condição de bruxa era vista como um fadário, isto é, algo que lhes era imposto e tinham de cumprir mesmo contra vontade. Ao mesmo tempo, o fadário era um ónus de que só se desobrigavam à hora da morte, em que deviam transmiti-lo a outra pessoa. Nenhum dos informadores soube dizer quem impunha o fadário nem como se processava a transmissão do mesmo, mas apenas que a criatura que o recebia da bruxa moribunda ficava a ser bruxa também, assim se garantindo, quase dinasticamente, a continuidade.
Na obra Vimioso – Notas Monográficas, de Francisco Manuel Alves (o grande Abade de Baçal) e Adrião Martins Amado, é referido o seguinte caso:
Uma bruxa estava às portas da morte mas não podia morrer sem passar o fadário a outra criatura. Querendo aliviá-la daquelas ânsias, disseram-lhe: “Diga Jesus, tia Brites!” E ela: ‘Não posso, que é muito arrodeio.”
Trata-se provavelmente de uma anedota (se bem que não seja apresentada como tal), mas as anedotas são formulações verosímeis do real e não servem apenas para divertir. ‘Arrodeio’ está aqui por ‘coisa complicada de dizer’. Ou seja: a palavra ‘Jesus’ era demasiado difícil de pronunciar para uma bruxa. A anedota mostra até que ponto ia o compromisso das bruxas com o Diabo e a sua recusa de Deus.
Esta ideia do fadário está também presente numa conta que se ouve em Mogadouro, recolhida por Alexandre Parafita no seu livro “O maravilhoso popular”:
Em algumas aldeias crê-se que toda a mulher que é bruxa não pode morrer sem arranjar alguém que lhe fique com a peneira. E a mulher que lha herdar, herdará também o fadário, pelo que irá tornar-se numa bruxa igual.
Conta-se em Mogadouro que, numa determinada aldeia, há muitos anos, uma mulher, para fazer a última vontade a uma velha moribunda, ficou-lhe com a peneira, sem saber que se tratava de uma bruxa. A seguir, cuidando que ela já estava morta, meteu-a no forno para a queimar.
Diz o povo que a peneira andou dentro do forno às voltas como um remoinho e levou tempo a arder. E diz-se também que a bruxa, que nesse momento estava a exalar o último suspiro, entrou de novo em agonia e não havia meio de morrer, pois a peneira encontrava-se agora transformada em cinza e não podia, por isso, ser herdada tal como ela a deixou. Diz-se que só conseguiu morrer muito tempo depois, quando um determinado padre veio de longe confessá-la.
E assim acabaram, de vez, as bruxas nessa aldeia, pois não foi possível retomar a sucessão uma vez que não houve quem conseguisse herdar a peneira da última que lá viveu.
A dar suporte a este submundo que afinal estava tão porta com porta — qual era a terreola que não contava pelo menos uma bruxa entre as suas moradoras? —, o povo criou-lhes, por assim dizer, um cenário, uma mitologia, um culto. O cenário preferido das bruxas, quando se reúnem para os seus sabás nocturnos, é uma encruzilhada de caminhos, dizem-me. E logo eu, com este meu vezo atrevido de dissecar os mínimos pormenores, me ponho a cismar que as bruxas escolhem encruzilhadas pela semelhança que estas têm com a cruz, e tripudiando sobre elas, estão a desacatar o símbolo maior do cristianismo e, dessa forma, a desafiar Deus.
(Continua)
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