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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Viagens — 14 - Ainda as bruxas e companhia limitada

 Havia, contudo, a convicção de que nem todas as mulheres tidas por bruxas eram criaturas maléficas. Digamos que havia bruxas boas e bruxas más. Havia umas quantas que, longe de empecerem e fulminarem as suas vítimas com o tal olhar repassado, faziam rezas, benzeduras, defumações e outras práticas curativas em benefício das gentes. E essas não eram temidas, mas acarinhadas. Dava-se-lhes esmola. Rogavam-se em caso de moléstia em casa, sobretudo moléstia do miolo, como demências, possessões demoníacas, coisas assim que implicam mais com o espírito e a mente do que com o corpo. No meu livro de que falei acima (“O Diabo veio ao enterro”), há um conto em que uma bruxa boa livra um paciente de visões que o atormentavam.
 Dum ponto de vista da religião, as bruxas verdadeiras renunciam abertamente a Deus e tornam-se refractárias à doutrina da Igreja e aos ensinamentos dos evangelhos, posição que mantêm mesmo na hora da morte. Mas uma das informadoras acautelou que, mesmo tendo renunciado ao catolicismo, continuam a frequentar a igreja, para que a ausência das práticas rituais as não denuncie como bruxas. 
A condição de bruxa era vista como um fadário, isto é, algo que lhes era imposto e tinham de cumprir mesmo contra vontade. Ao mesmo tempo, o fadário era um ónus de que só se desobrigavam à hora da morte, em que deviam transmiti-lo a outra pessoa. Nenhum dos informadores soube dizer quem impunha o fadário nem como se processava a transmissão do mesmo, mas apenas que a criatura que o recebia da bruxa moribunda ficava a ser bruxa também, assim se garantindo, quase dinasticamente, a continuidade. 
Na obra Vimioso – Notas Monográficas, de Francisco Manuel Alves (o grande Abade de Baçal) e Adrião Martins Amado, é referido o seguinte caso:
Uma bruxa estava às portas da morte mas não podia morrer sem passar o fadário a outra criatura. Querendo aliviá-la daquelas ânsias, disseram-lhe: “Diga Jesus, tia Brites!” E ela: ‘Não posso, que é muito arrodeio.”
Trata-se provavelmente de uma anedota (se bem que não seja apresentada como tal), mas as anedotas são formulações verosímeis do real e não servem apenas para divertir. ‘Arrodeio’ está aqui por ‘coisa complicada de dizer’. Ou seja: a palavra ‘Jesus’ era demasiado difícil de pronunciar para uma bruxa. A anedota mostra até que ponto ia o compromisso das bruxas com o Diabo e a sua recusa de Deus.
Esta ideia do fadário está também presente numa conta que se ouve em Mogadouro, recolhida por Alexandre Parafita no seu livro “O maravilhoso popular”:
Em algumas aldeias crê-se que toda a mulher que é bruxa não pode morrer sem arranjar alguém que lhe fique com a peneira. E a mulher que lha herdar, herdará também o fadário, pelo que irá tornar-se numa bruxa igual. 
Conta-se em Mogadouro que, numa determinada aldeia, há muitos anos, uma mulher, para fazer a última vontade a uma velha moribunda, ficou-lhe com a peneira, sem saber que se tratava de uma bruxa. A seguir, cuidando que ela já estava morta, meteu-a no forno para a queimar. 
Diz o povo que a peneira andou dentro do forno às voltas como um remoinho e levou tempo a arder. E diz-se também que a bruxa, que nesse momento estava a exalar o último suspiro, entrou de novo em agonia e não havia meio de morrer, pois a peneira encontrava-se agora transformada em cinza e não podia, por isso, ser herdada tal como ela a deixou. Diz-se que só conseguiu morrer muito tempo depois, quando um determinado padre veio de longe confessá-la. 
E assim acabaram, de vez, as bruxas nessa aldeia, pois não foi possível retomar a sucessão uma vez que não houve quem conseguisse herdar a peneira da última que lá viveu. 
A dar suporte a este submundo que afinal estava tão porta com porta — qual era a terreola que não contava pelo menos uma bruxa entre as suas moradoras? —, o povo criou-lhes, por assim dizer, um cenário, uma mitologia, um culto. O cenário preferido das bruxas, quando se reúnem para os seus sabás nocturnos, é uma encruzilhada de caminhos, dizem-me. E logo eu, com este meu vezo atrevido de dissecar os mínimos pormenores, me ponho a cismar que as bruxas escolhem encruzilhadas pela semelhança que estas têm com a cruz, e tripudiando sobre elas, estão a desacatar o símbolo maior do cristianismo e, dessa forma, a desafiar Deus.

(Continua)

A. M. Pires Cabral

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