domingo, 28 de maio de 2023

Atrás do esférico

Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Não pesco nadinha de futebol. Aprecio um bom jogo entre equipas que se batam taco-a-taco e discutam o resultado até ao último segundo. Gosto de saber que a seleção ocupa as primeiras posições dos rankings e animo-me quando põe em sentido as melhores do mundo. Tirando isso, e mesmo sem estar já naquela fase da maior parte das senhoras que conheço, para quem um fora-de-jogo é um conceito misterioso, se não mesmo absurdo, ainda assim nunca cheguei a perceber muito bem o que é um trinco, escapa-me por completo que tática está a ser usada e passa-me geralmente ao lado se e quando um jogador que ocupa determinada posição deve ou não dar lugar a outro.
Isto talvez explique a minha habitual resmunguice contra tudo o que vive à custa de quem dá o litro dentro das quatro linhas. Enjoa-me a estopada que se grama diariamente nas televisões. Aqueles caga-lérias pagos para fazerem de hienas e se maltratarem nos espaços de comentários parecem-me uma afronta a qualquer criatura com mais de três ligações entre neurónios. Penso que talvez nosso senhor os tenha castigado pelos seus pecados colocando-lhes bolas sobre os ombros, em vez de cabeças. 
Por outro lado, em se tratando do comportamento humano, raramente o que parece é. Acontece muito olharmos e não vermos o filme todo. Como tal, e tendo em conta a importância que damos ao assunto, não deixa de ser legítimo colocar a hipótese de haver na bola algo mais para lá daquilo que se enxerga, coisas que os doentinhos da dita dizem sem saber que as dizem, intenções nas entrelinhas de que nem os donos das linhas desconfiam. 
O futebol leva-se tanto a peito porque, representando a própria vida, mexe com dimensões situadas no mais fundo e autêntico de nós. Não deixa de ser estranho, por exemplo, que a baliza onde se tenta a todo o custo introduzir algo por entre oposições, incertezas e canseiras possa ter conotações eróticas e que a bola que vai ao fundo das redes represente uma união sexual consumada cheia de promessas de reprodução. As dúvidas amolecem, no entanto, sempre que se vê alguém marcar um golo e festejá-lo com um gesto claramente obsceno, ou imitando uma gravidez, o embalar de um bebé, uma chupeta na boca…
Há jogadores que simulam disparar armas de fogo, o que embora não pareça significa o mesmo. Mas neste caso acresce outra razão. Note-se que o futebol foi buscar muitas palavras à arte da guerra. Nele se fala a cada passo de hostilidades, torneios, táticas, estratégias, manobras, armas secretas, defesas, ataques, contra-ataques, alas direitas e esquerdas, capitães, extremos (o nome dado às linhas da frente na idade-média), pontas-de-lança, pés-canhão, tiros, petardos, bombas, vitórias arrancadas a ferros, troféus, baixas, reservas, bem como de recrutar, comandar as operações, armar (o remate), desarmar, bater, fuzilar, matar (o jogo), eliminar, etc. Não é por acaso. Como os desportos em geral, ele pretende desviar a nossa agressividade e ser um substituto mais civilizado dos conflitos coletivos. Acontece que a linha que em nós separa a brutalidade da civilização é muito fina. Mesmo pondo de lado o tribalismo assassino de certas claques, a pancadaria que a cada passo estala nos relvados, nas assistências, dentro e fora dos estádios, fala por si. 
Mas desçamos mais uns degraus. As guerras não se dão só entre países. Travam-se no dia a dia entre pessoas e, sobretudo, dentro das pessoas. Cheios de limitações, derreados por sentimentos de impotência, ocultos mas reais, a nossa vida é feita de lutas continuadas contra forças que de algum modo se nos opõem. Uma maneira de compensar isso é acolhermo-nos à proteção de equipas que têm como símbolos águias, leões, dragões e outros animais de poder. Ganham mais vezes do que perdem e as suas vitórias sabem a desforras consoladoras contra as debilidades pessoais.
Ainda que a brincar, apreciamos essas conquistas alheias e esforçadas porque elas lembram o nosso próprio esforço diário para sobreviver, algo demasiado sério para ser entregue a pés tortos. É por isso que o mérito, a justiça, a verdade em campo nos são fundamentais. Não é comum subornar um treinador para lhe impor quem deverá jogar, nem este pactuar com favorecimentos, amizades, cunhas da família, amigos, conhecidos na hora de formar o onze principal. Aqui é irrelevante ser-se membro do partido x ou da estrebaria maçónica y. Exigimos ser representados pelos mais aptos. O nosso prestígio, segurança e autoconceito dependem disso.

28 de maio de 2023

Manuel Eduardo Pires
. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.

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