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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Olho por Olho - Na Madrugada dos Tempos – Parte 10

 A guerra é, a princípio, a esperança de que a vida nos venha a correr melhor,
a seguir, a expectativa de que corra pior aos outros,
depois, a satisfação por ela também não correr melhor aos outros, e,
mais tarde, a surpresa por ela correr pior a ambos.

Karl Kraus, Escritor austríaco
  (1874-1936)
Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Partiram ainda noite escura, em silêncio, uma extensa fila com vinte e dois elementos que marchava com dificuldade sobre a neve fofa debaixo de um ameaçador céu de chumbo. Entre as lanças empunhadas pela maioria destacavam-se os dois arcos de madeira e osso, fabricados por Alim e Beki, os nómadas adotados na aldeia. Este último e também Dogan, sobrinho-neto de Erem eram exímios atiradores e tornaram-se uma mais-valia entre os caçadores, permitindo-lhes matar ou ferir as presas, surpreendendo-as a grande distância.
À cabeça do grupo seguiam Erem e Naci. Se o primeiro seguia de cenho carregado e apreensivo, o segundo exibia um ar de satisfação feroz. Atrás seguiam os restantes, maioritariamente homens, escolhidos a dedo por Lemi que, com exceção dos estrangeiros, conhecia intimamente cada um deles a quem ensinara as artes da caça desde crianças. As quatro mulheres escolhidas eram Ezgi e Eda, que já tinham revelado a sua mestria com a funda no primeiro ataque e duas outras estrangeiras, empunhando lanças e que quase só se distinguiam dos homens por não terem barba. Zia não acompanhou o grupo, para desilusão desta; o chefe convenceu-a a ficar com Nehir e Asil, porque decidira que desta vez não arriscaria que toda a governação do clã se perdesse de uma vez só.
A luz da manhã já iluminava, tristonha, os montes de cristas nevadas e a paisagem ondulante de vegetação rasteira coberta por um manto branco. Esta região distinguia-se dos planaltos onde o clã vivia, era agreste, com pouquíssimas árvores e cortada por profundas brechas ou montes desproporcionais. Os deuses deviam estar furiosos quando fizeram aquela parte do mundo e via-se que era um terreno de exílio para uma espécie que se refugiava, a terra que ninguém queria.
Num autêntico “déjà-vu”, o grupo reuniu-se no promontório que permitia uma ampla vista da entrada da gruta, mas que estava separado desta por uma funda garganta. Aquele era um bom ponto de observação, conseguiam ver, não só o seu objetivo, como uma grande distância em redor… o local ideal para uma sentinela. As pegadas recentes na neve fofa testemunhavam que houve atividade ali nas últimas horas. Havia a forte possibilidade de terem sido avistados.
Erem observou atentamente todos os pormenores, enquanto lamentava não ter trazido Lemi, o seu indiscutível estratega. Ao fim de alguns segundos fez um gesto aos outros e todos se afastaram da crista para uma zona onde não seriam vistos pelo inimigo.
O chefe ficou em silêncio fitando o chão, formados em círculo à sua volta, os outros respeitavam a introspeção. Depois ele ergueu os olhos para cada um deles, fixando-se nos dois archeiros.
— Acham que conseguem atingir a entrada da gruta desde este promontório? — Atirou Erem repentinamente. — Derrubar quem apareça à entrada?
Dogan, um dos mais jovens do grupo, fez uma expressão de incerteza, mas Beki, o mais velho dos filhos do nómada Alim, acenou com a cabeça afirmativamente.
— Então está decidido. — O chefe concluiu. — Desta vez não seremos surpreendidos antes de estarmos todos no planalto de entrada. Eles manterão a vigilância, — explicou dirigindo-se aos outros — e se algum daqueles monstros sair, será morto ou pelo menos afugentado. Vamos escalar a parede até ao planalto e ninguém — aqui olhou conspicuamente para Naci —, repito, ninguém, ataca sem todos terminarem a subida. Subiremos em linhas de quatro, os mais novos e fortes à frente e ajudam os outros assim que chegarem. — Tomando a dianteira, ordenou: — Agora vamos!
Os dois archeiros tomaram posição, o olhar fixo na entrada da gruta, sem descurar os companheiros que desciam a garganta.
Uma águia piou no alto, na sua busca por alguma presa que se aventurasse fora da toca em cima da neve fofa. Tirando isso, não se avistava vivalma, o que começava a ser estranho. Era dia claro e aparentemente ninguém saía da gruta… esperavam que, pelo menos os caçadores, já estivessem fora há muito.
Foram estes pensamentos que fizeram Beki olhar pelas redondezas dos seus companheiros e detetar o pequeno grupo de homens-macaco que, no fundo da garganta, saía de uma fenda na parede e avançava na direção deles. Gritou o alarme e começou a enviar dardos na direção dos inimigos. A primeira flecha cravou-se no tronco de um e a segunda no pescoço de outro, os restantes inimigos, porém, saíram da vista do atirador refugiando-se na parede contrária. Uma última flecha partiu-se contra as pedras; Dogan conseguira finalmente vencer as tremuras e atirar o primeiro dardo.
Naci, Fikri, Altan e dois dos estrangeiros, à cabeça dos restantes, correram na direção indicada por Beki. Gritos de guerra e dor ecoavam no fundo da garganta fora da vista dos aflitos archeiros. Por fim, à medida que o restolho da refrega reduzia, viram um dos mais jovens estrangeiros a fugir perseguido de perto por um homem-macaco. Beki armou o arco e preparava-se para desfechar sobre o inimigo quando se apercebeu que Fikri corria logo a seguir. O corpulento inimigo estava quase a deitar as mãos ao franzino rapaz quando a lança do filho de Lemi cravou-se com um baque surdo nas costas dele, derrubando-o. O fugitivo parou imediatamente de correr e, fazendo jus à sede vingativa que os movia a todos, saltou sobre o homem-macaco tombado e começou a espetá-lo furiosamente com a faca de sílex. Era o filho de uma das mulheres assassinadas no assalto à aldeia. Fikri arrancou o seu dardo das costas do inimigo e ergueu-o num gesto de triunfo para os dois archeiros. Lentamente, os atacantes reuniram-se no fundo da garganta, havia feridos, mas não parecia faltar ninguém.
Não havia agora dúvidas de que haviam sido avistados e os homens-macaco já estavam à espera do ataque. Deixaram aqueles fora da gruta para os apanhar pelas costas enquanto subiam e decerto haveria mais surpresas pela frente.
Rapidamente e sem hesitação, todos se lançaram na escalada. Os dois archeiros mantinham-se vigilantes entre a observação atenta da entrada da gruta e a preocupação dos companheiros que subiam com esforço. Conseguiram perceber que alguém espreitava rapidamente da abertura escura e avisaram por gestos os primeiros que concluíram a subida, invariavelmente Naci e Fikri.
Enquanto os archeiros concentravam a sua atenção nos companheiros, um restolho fê-los voltar-se de supetão; um homem-macaco erguia uma temível clava sobre Dogan. Tinha a cabeça e o rosto coberto de sangue pingando profusamente da haste partida de uma flecha cravada logo abaixo do ombro esquerdo. Beki, que nunca deixara de ter um dardo a postos no seu arco, lançou-o imediatamente sobre o inimigo, mas demasiado tarde para evitar que este descarregasse a moca em cima do companheiro. O infeliz Dogan ainda tentou esquivar-se da pancada, mas esta atingiu-o com violência sobre a clavícula e o braço com que se protegeu. O arco que empunhava desfez-se em pedaços quando o jovem rolou sobre ele.
Tendo uma das ameaças eliminada, o homem-macaco, agora com nova flecha cravada no pescoço, soltou um grunhido inumano ao mesmo tempo que levantava a clava para atacar o outro. Beki recebeu-o atabalhoadamente com novo dardo no peito, mas não parou o ataque. Dogan, tombado aos pés do inimigo e com um braço sem ação, apanhou uma pedra e feriu-o várias vezes na parte desprotegida das pernas entre as botas de pele e a túnica de couro que envergava. Surpreendido pela dor inesperada, o formidável adversário saltou para o lado, pronto para lhe esmagar a cabeça, mas estes segundos foram preciosos para Beki empunhar a sua faca de cobre e saltar sobre ele. Sem espaço para manobrar a clava e sem poder fazer mais do que tentar esmagar o inimigo que se colava a ele, o homem-macaco caiu e debateu-se, enquanto Beki lhe cravava sucessivamente a adaga até aos copos, procurando atingir o coração. Dogan conseguiu arrastar-se até junto dos contendores e rasgou-lhe a garganta com a faca de sílex. Só assim terminou o combate.
Beki ergueu-se ofegante e ajudou o companheiro, que se retorcia com dores, a sentar-se mais comodamente. Aparentava ter o úmero e a clavícula partidos e fora um esforço sobre-humano para se arrastar e ajudá-lo. Devia-lhe a vida com toda a certeza. Depois olhou para os restantes companheiros que terminavam a escalada, ignorando a luta de vida ou morte que acabara de ser travada.
No patamar de acesso à gruta, os atacantes ajudaram os últimos a terminar a escalada e começaram a formar uma linha de cada lado da entrada. Começavam a tombar suavemente diáfanos flocos que pousavam sobre a neve calcada e suja do chão. Não se escutava qualquer ruído do interior escuro e intimidante. Um dos estrangeiros, ansioso por mostrar-se mais valente que os restantes ou incapaz de suportar a expetativa, avançou para a goela negra, tendo sido presenteado com uma lança no peito que o projetou para fora. Tombou numa posição pouco natural, com o peso do dardo a curvar-lhe o corpo para trás, os olhos esbugalhados perderam o brilho rapidamente… uma mancha rubra espalhou-se imediatamente sobre o tapete alvo.
Desta vez, Naci tivera o bom senso de não se precipitar, mas mais dois corajosos jovens se lançaram para a abertura hiante para serem confrontados de imediato com um homem-macaco que derrubou ambos com possantes pancadas da clava que empunhava. Por estarem demasiado próximos, nenhum deles teve tempo de usar a lança que empunhava. Este foi o sinal, porém, para Erem gritar para o resto do grupo se lançar decididamente no ataque. Uns ainda com as lanças, outros, optando por armas mais manejáveis em lugares estreitos, largaram-nas e empunharam os machados de sílex que traziam à cintura.
Chocados com a diferença entre a luz exterior e a penumbra da gruta, os primeiros invasores tiveram de combater por instinto com os quatro inimigos que os receberam com clavas e lanças. A vaga inicial quase foi travada, não fosse Naci espetar a sua lança, por cima do ombro de um dos companheiros, diretamente no pescoço de um dos defensores. Imitando a técnica, os seus companheiros eliminaram rapidamente a resistência e passaram por cima de mortos e feridos. Com os machados e as facas, acabaram violenta e sangrentamente com quantos inimigos tombados depararam. A presença dos amigos feridos e mortos só serviram para aumentar o ódio e raiva que sentiam. Ninguém ficou para os ajudar, todos respingados e inebriados de sangue, como demónios ululantes, atravessaram a estreita entrada e desembocaram numa ampla gruta fracamente iluminada pela fogueira que ardia sozinha no centro. As silhuetas de vários homens-macaco movimentavam-se a esconder-se nas sombras ou nas cavidades em redor.
Soltando gritos horrendos, a horda demoníaca lançou-se como um rio que desagua num lago de águas calmas. Para ambos os lados partiram homens e mulheres com os machados ensanguentados em punho. Atacaram todas as figuras difusas que lhes apareciam pela frente. Fosse a fugir, fosse a defender-se, todos tombavam perante aquela maré de fúria homicida. Gritos apavorados de mulheres e crianças, misturavam-se com urros masculinos de dor ou raiva. Palavras desconhecidas misturavam-se com maldições, todas ecoando na alta abóbada da gruta.
Ferido num braço por uma lança e a sangrar da cabeça por uma pancada de uma clava, para Erem tudo não passava de uma névoa rosada, enquanto se desviava dos ataques e devolvia pancadas selvagens com o seu machado. O corpo e os ferimentos doíam-lhe e começavam a faltar-lhe as forças para manejar a arma.
Gradualmente, a gritaria converteu-se em murmúrios e gemidos, alguns calados violentamente ao som de pancadas surdas.
Sem inimigos à vista, Erem deixou-se sentar pesadamente, arrastando as costas pela parede áspera. O chão de pedra estava morno e viscoso. Passou a mão pela cara para limpar os olhos, mas ficou a ver ainda pior. Deixou cair a cabeça para a frente e fechou os olhos, esgotado.
— Pai? — A voz de Naci sobressaltou-o. — Estás bem?
Levantou o rosto e sentiu a água gelada que lhe despejavam na cara. Esfregou os olhos e estava novamente na penumbra avermelhada da caverna. O cheiro fétido a sangue e carne era indescritível e misturava-se com o fedor de cabelos e pele queimados. Por onde os seus olhos vagueavam só via corpos caídos de bruços ou dorsal, em posições pouco naturais… quase só mulheres e crianças. Havia mesmo bebés tombados sem vida ao lado das progenitoras…
Suspirou e escondeu o rosto entre as mãos. O estupor tomava conta dele ao mesmo tempo que se inteirava da enormidade do que haviam feito. Sentia as forças a faltar-lhe e era de muito longe que lhe chegavam as vozes dos companheiros.
— Vencemos! — Apregoavam uns.
— Acabamos com eles todos! — Gritavam outros.
— Viva Erem, que nos trouxe a uma grande vitória! — Soltou outra voz, logo ovacionada por todos.
O chefe ergueu-se ajudado por Naci e Fikri, que se haviam colocado um de cada lado e depois olhou os seus valorosos companheiros, onde não havia um rosto incólume. Abraçou o filho e deu umas palmadas afetuosas no ombro do filho de Lemi, enquanto sorria e acenava a cabeça tristemente para os outros.
— Vamos pegar os nossos mortos e feridos e vamos embora deste lugar maldito. — Soltou Erem num quase gemido.
Foi num silêncio quase total que revistaram o espaço pejado de cadáveres em busca dos companheiros perdidos, antes de se reunirem todos no exterior. O ataque “bem-sucedido”, saldara-se em seis mortos e quatro feridos com gravidade. Na realidade, ninguém escapara sem ferimentos e a distinção era apenas se precisava de ajuda para andar ou não. Da parte dos homens-macaco, a derrota fora total; quase trinta adultos e várias crianças. Não restara nenhum vivo, os atacantes certificaram-se disso enquanto procuravam os amigos.
Havia poucos deles em condições para arrastar um corpo morto durante as várias horas que lhes levaria o regresso à aldeia, além disso, precisavam de transportar a carne seca e os cereais que encontraram por isso e após animada discussão, resolveram deixá-los. Os cadáveres dos companheiros foram alinhados numa pira feita com a lenha que os inimigos haviam armazenado e incendiada. Os corpos dos homens-macaco ficaram onde caíram, os lobos e os abutres teriam o festim assegurado por vários dias.

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016), "Daqueles Além Marão" (Abril 2017) e "Entre o Preto e o Branco" (2020), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Foi reconhecido em quatro concursos de escrita e os seus textos já foram selecionados para duas dezenas de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e sairão em breve. Siga as últimas novidades AQUI.

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