Paradela, em Miranda do Douro, duplica a população com a chegada dos emigrantes e de outros naturais da aldeia portuguesa mais incrustada em Espanha. Um casamento e um batizado na semana da festa da terra transformaram esses dias numa saudosa viagem ao passado. Setembro fará regressar a dura realidade de quem está longe de tudo.
Angelina Rodrigues começava a ficar impaciente à medida que as horas passavam naquela tarde de agosto. Já havia de ter “botado as ovelhas ao pasto”, mas também não queria perder a saída dos noivos da igreja. “E estavam tão lindos!” Até porque casamentos já são coisa cada vez mais rara em Paradela, a terra portuguesa de Miranda do Douro “onde o sol nasce primeiro” e onde o rio Douro começa a separar (ou a unir) Portugal e Espanha. Ainda por cima estavam lá as pauliteiras de Miranda para, de surpresa, animarem o momento em que Alexandre Vicente e Christine Marrion assomaram à rua de alianças no dedo e com a filha de dois anos batizada.
A quem visitar Paradela, Angelina Rodrigues aconselha o miradouro da Penha das Torres, com vistas para o Douro e para a barragem do Salto de Castro |
O nó dado pelo casal formado pelo português ali nascido e pela natural de França, país para onde ele emigrou há uns anos, foi o casamento do ano. Em Paradela, claro, a terra mais oriental de Portugal, onde durante 11 meses vivem menos de cem pessoas, mas que em agosto duplica a população com a chegada para férias dos emigrantes e de quem vive noutras zonas do país. E foi o casamento do ano, não porque eles vivam no mundo dos famosos, mas porque, segundo o padre Manuel Marques, pároco da localidade e de mais 13 lugares no concelho de Miranda, “não há mais marcações para 2023”. Aliás, até admite “não haver outro tão depressa”.
O casamento de Alexandre Vicente e Christine Marrion foi animado pelas pauliteiras de Miranda do Douro |
Em 2022 também só se realizou um matrimónio naquela povoação e foi igualmente de alguém que não mora ali. Cristina Ildefonso vive há 23 anos no Funchal, na Madeira, onde é educadora de infância. E foi lá que conheceu o marido madeirense, Cláudio Pinto, e teve uma filha e um filho. Contudo, para se casarem, tal como Alexandre convenceu Christine, também ela disse ao então noivo que tinha de ser em Paradela.
“A minha terra será sempre a minha terra. Eu conto os dias para poder vir de férias, para ver os meus pais, o resto da família e os vizinhos, com quem falo em mirandês. Quando falta um mês, faço um calendário com os meus filhos, que afixamos no frigorífico e vamos contando os dias que restam para a viagem. Preciso disto. Faz-me falta vir à terra. É como se levasse uma injeção de energia”, refere Cristina, com a emoção estampada nos olhos.
Cristina Ildefonso vive na Madeira e não dispensa férias na terra dos pais |
O amor às raízes é partilhado pelo único noivo deste mês de agosto na povoação. “É uma tradição. Toda a gente de cá se quer casar aqui e eu não quis fugir à regra”, admite Alexandre, que não teve dificuldades em convencer a mulher, já que Christine “também gosta da aldeia”.
Manuel Marques conta que na concatedral de Miranda do Douro é “frequente haver casamentos em que ambos os cônjuges são de fora”, mas nas aldeias “é sempre um da terra e outro de fora”. O padre valoriza o facto de ainda se preservar a tradição, pois sendo a união entre duas pessoas “uma coisa tão bela, importante e sagrada”, fazer-se apenas pelo civil “não tem o mesmo gosto”.
Na véspera do casamento entre Alexandre e Christine, o sacerdote soube que “em França já há batizados feitos no registo civil”, o que considera ser “uma coisa escabrosa, sem sentido nenhum”. Para o pároco também é uma “felicidade” que o casal tivesse respeitado a tradição e optasse por batizar a filha na igreja de Paradela, no dia do casamento de ambos.
O padre Manuel Marques não prevê mais casamentos neste ano em Paradela |
A menina tem dois anos e, como tal, ainda não acompanha as brincadeiras dos filhos de Cristina Ildefonso, um pouco mais velhos, que uma vez em Paradela “passam o tempo todo na rua”. O problema, realça a mãe, é que “brincam a maior parte do tempo um com o outro”. “Quase só há mais crianças da mesma idade quando chegam outras que também vivem fora.”
Angelina tem 88 anos e já não se lembra da última vez que ali nasceu uma criança. No entanto, recorda-se de quando era miúda as casas estarem “cheias de canalha”. Só do seu ano havia “sete meninas”. Mas muitas, tal como ela, nem à escola foram. “Foi uma pena. Eu nunca soube ler”, lamenta, enquanto estuga o passo para ir, finalmente, “botar as 60 ovelhas”, já no princípio do desmaio da tarde. Vale-lhe o “perrico”, como se refere ao cão (perro, em castelhano), que a ajuda. “Quando as ovelhas me fogem ele pega-me nelas. Vai ao redor e trá-las para perto de mim”, sorri, afastando-se. “Não vive sem o seu gado”, afiança a vizinha Cristina, que a conhece desde criança como uma “falastrona”, pessoa que “fala muito e sabe muitas coisas”. Angelina vai à vida dela, mas passa a palavra a Ademar, 88 anos, também muito amigo de conversar, que lamenta que “já quase só haja velhos” em Paradela. “Dois terços da população têm mais de 60 anos. Os filhos tiram cursos e depois não se querem aqui.” O mesmo aconteceu com as duas filhas e um filho. Ele vive em Évora e elas vivem em Faro e em Paris. Na semana da festa, a 15 de agosto, e do casamento estavam todos na terra para passarem uns dias juntos. “Tenho uma família em que são todos muito amigos e gostam de voltar aonde nasceram.”
Ademar Preto foi guarda-fiscal durante 28 anos na fronteira com Espanha |
Como a curiosidade não é só de alguns, Ademar Augusto Preto foi igualmente ver os noivos a saírem da igreja e as danças das pauliteiras de Miranda. E estranhou. “Nunca tinha visto raparigas nestes modos. Sim senhor, dançaram muito bem!”
Leonor Martins e Inês Preto, de 16 e 14 anos respetivamente, residentes em Miranda do Douro, são duas das oito pauliteiras que dançaram para animar o casamento em Paradela, terra dos pais. “Uma terra unida” onde gostam de ir visitar a família e passar algum tempo, nomeadamente no mês de agosto, já que é quando tem mais habitantes.
Inês Preto e Leonor Martins são duas das pauliteiras de Miranda do Douro |
O grupo é liderado por Francisco Duarte, 23 anos, que integra a Mirandanças – Associação para o Desenvolvimento Integrado da Terra de Miranda. Francisco diz que anda nesta vida por “gostar da tradição”, aceitando, por isso, o desafio de ensaiar as jovens.
O grupo, que anima casamentos, batizados e outras festas, tem mais do que os oito elementos que foram a Paradela, suficientes para fazerem meia dúzia de danças, conhecidas localmente por “lhaços”. Na verdade, “lhaço” é mais abrangente. É o nome dado em língua mirandesa para designar cada uma das melodias, dos texto e das coreografias que fazem parte da dança dos pauliteiros.
Francisco Duarte integra a Mirandanças e lidera o grupo de pauliteiras |
Ademar Preto não deixou de reparar na presença da capa de honras mirandesa. Também tem em casa uma, tal como a que Eduardo Ramos levou a Paradela, integrando o grupo de pauliteiras e respetivos tocadores de gaita de foles, de caixa e de bombo. “A capa de honras tem de estar sempre presente na atuação de um grupo folclórico mirandês”, explica o residente em Miranda do Douro.
Nos dias de verão, os “seis a sete quilos” que pesa uma capa não são os mais fáceis de suportar, embora Eduardo faça questão de recordar que “os antigos diziam que tanto protege do frio como do calor”. No seu caso, esse ditado é só “mais ou menos” verdade, pois, confessa, “não é lá muito agradável estar muito tempo ao sol com ela em cima”.
A capa de honras mirandesa é feita de pardo ou burel (lã de ovelha). É considerada uma das mais belas peças do traje popular português. Antigamente era usada sobretudo por pastores, que, diz-se, podiam estar um dia à chuva sem que a humidade lhes entrasse. Hoje está na moda e é, inclusivamente, utilizada por noivos em dia de casamento. Não foi o caso de Alexandre Vicente e de Christine, que optaram por trajes habituais. Ao noivo até lhe deu mais jeito no momento em que, com mais sete amigos convidados, foi dançar um “lhaço” que o obrigou a algumas acrobacias.
Eduardo Ramos com a capa de honras Mirandesa, um dos símbolos da cultura do concelho de Miranda do Douro, no distrito de Bragança |
A exultação vivida junto à igreja trouxe à memória de Ademar a alegria de outros tempos, em que aquele mesmo largo “era um lamaçal”, mas onde “as festas do Natal e da Páscoa eram uma alegria”. Eram “tempos de miséria”, ou, corrige, “de maiores dificuldades”, mas nos quais, apesar de tudo, “não havia fome”. Porque “todos matavam o seu porquito, colhiam pão, batatas e feijão”. “Vivia-se e criavam-se aos oito e nove filhos!”
Ademar, que foi guarda-fiscal durante 28 anos, também lembra que por lá “era tudo contrabandista”. “Precisava-se de umas calças de bombazina e passava-se um fardo de café para Espanha para dar para as calças.” Também cumpriu tempo de serviço na Amareleja, no Alentejo, reconhece que ficou com “saudades daquela terra, mas a verdadeira é mesmo Paradela”.
“Em agosto, Paradela torna-se espetacular”, orgulha-se Aquiles Sebastião, nascido e criado na aldeia, que atualmente ocupa o cargo de secretário da União de Freguesias de Ifanes e Paradela. “Chegam os emigrantes e outros naturais que vivem fora”, justifica. O problema é quando vão embora, já que a localidade fica resumida aos habituais residentes, menos de cem, entre os quais “umas 20 crianças e jovens”.
Aquiles Sebastião, secretário da União de Freguesias de Ifanes e Paradela |
O nó de Alexandre, 27 anos, e Christine, 26, acabou por marcar a terceira semana de agosto, na qual o dia 15, consagrado à Assunção de Nossa Senhora, é prenúncio de festa rija. Ou seja, foi, certamente, a semana mais animada do ano numa terra onde se vive da agricultura e da pecuária, setores também em decadência. “Está mesmo no fim”, lastima Aquiles. E em anos de seca extrema, como foi 2022, por exemplo, “é para esquecer”. Ainda por cima “não há ajudas, não há nada, o que torna tudo muito mais difícil”. Dá o exemplo dos custos de produção que “triplicaram em relação ao que acontecia há poucos anos e o preço a que se vendem os produtos é quase o mesmo”.
Perante o desânimo da população, o autarca de Paradela entende que “os governos deveriam olhar mais para estas regiões do Interior do país e para a sua agricultura”. Só que, sublinha, “têm feito o contrário”. Ora, sem outras soluções “as pessoas desistem e vão para outros locais”. Uma “pena”, uma vez que a aldeia, embora pareça pequena, “sempre foi muito rica em agricultura”.
Marcelo Preto Pires, primo do noivo, 27 anos de idade, é um dos filhos da terra que teve de emigrar. Vive em Zamora, em Espanha, a 50 quilómetros de Paradela, onde é mecânico de maquinaria agrícola. “É uma profissão muito mais bem paga lá do que aqui”, justifica. Como a viagem demora cerca de meia hora, Marcelo vai à terra natal todos os fins de semana para “ver a família e ajudar no que houver para fazer na aldeia”.
Marcelo Pires vive em Zamora, mas vai à terra todos os fins de semana |
A terra mais oriental de Portugal continua, apesar de tudo, a atrair gentes ao seu miradouro da Penha das Torres, onde, segundo Aquiles Sebastião, se desfruta de um “pôr do sol muito lindo”, em contacto com a Natureza e com o olhar a abranger o vale do rio Douro Internacional, na zona da barragem espanhola de Salto de Castro.
É neste miradouro que começa o percurso entre Paradela e um outro em S. João das Arribas, nas proximidades da localidade de Aldeia Nova. São miradouros no bordo de um canhão fluvial constituído por uma garganta com paredes verticais superiores a 150 metros.
Aquiles Sebastião lamenta que “devido a uns atrasos” o miradouro da Penha das Torres ainda não tenha as obras concluídas. Todavia, deseja que a empreitada, que conta com o apoio do Município de Miranda do Douro, “esteja concluída em breve”. Também o acesso em terra batida “está a ser melhorado para que os autocarros possam lá chegar”.
O dia do nó de Alexandre e Christine, uma sexta-feira, foi-se escoando e ainda acabou antes da festa que o casamento gerou. Durante o fim de semana, cumpriu-se mais uma tradição em Paradela. A de “dar a rosca” no lugar das eiras. A rosca é um pão que é oferecido, juntamente com tremoços, à população pela família dos noivos – neste caso do noivo.
Ermezinda Gomes é uma das cerca de cem pessoas que vivem em Paradela |
A moradora Ermezinda Gomes lembra que antigamente “era uma tradição muito bonita, em que até havia corridas entre os jovens para ver quem ganhava”. Hoje, já não tem a mesma intensidade, mas mantém-se viva. Tal como Paradela, onde ainda existem dois cafés e uma associação cultural, que, à falta de outras distrações, ajudam a reunir e a animar os residentes.
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