A neve caía em silêncio sobre as muralhas de Bragança. O vento assobiava pelos adarves, penetrando nas pedras antigas como se quisesse despertar memórias esquecidas. Afonso, envolto no seu pesado manto escuro, caminhava lentamente ao longo da torre norte. O frio não lhe era estranho, nascera e crescera naquele clima áspero, mas naquela noite o gelo parecia colar-se à pele como um presságio.
Do alto, os seus olhos perscrutavam o vale branco. Os rios serpenteavam imóveis, quase petrificados pelo gelo, e as aldeias mais distantes eram manchas adormecidas. Contudo, algo lhe chamou a atenção… uma sombra que se movia nas franjas da floresta. Afonso estreitou o olhar. Não era lobo, nem pastor atrasado. Havia algo de errático naquele passo.
- Outra vez… murmurou para si, apertando o punho sobre o punhal.
No dia seguinte, a notícia espalhou-se. Pegadas foram encontradas junto às muralhas, grandes, profundas, impossíveis de serem humanas. Chamaram Lídia, a Curandeira, que apareceu com a sua cesta de ervas pendurada ao ombro. A jovem ajoelhou-se sobre o gelo, passando os dedos delicados pelas marcas.
- Isto não pertence a bicho da serra. Disse séria. - Nem lobo, nem javali.
- Então o quê? — perguntou Afonso, com a voz grave.
- Algo que não devia andar neste lado do mundo.
Os guardas trocaram olhares desconfortáveis. Lídia ergueu-se, encarando Afonso diretamente.
- Precisas chamar Baltasar. Ele conhece histórias que os livros não contam.
À noite, junto à lareira da taberna, Baltasar, o andarilho das serras, batia com o seu bordão no chão, atraindo a atenção dos que o ouviam. O velho tinha a barba desgrenhada e olhos que brilhavam como brasas.
- O Cavaleiro das Sombras desperta sempre que os invernos ficam demasiado longos. Anunciou, deixando o silêncio cair sobre o grupo. - Quando as muralhas choram gelo e o vento sopra como lamento, ele regressa para reclamar o que lhe foi tirado.
Alguns riram, tentando disfarçar o desconforto. Mas Afonso não riu.
- Estás a dizer que é ele quem caminha junto à floresta?
Baltasar inclinou-se para diante, a voz reduzida a um sussurro:
- Não digo. Sei.
Naquela mesma noite, as nuvens abriram-se e a lua iluminou as muralhas. Afonso, sozinho no adarve, ouviu o som metálico de passos atrás de si. Voltou-se rápido, e ali estava. Uma armadura antiga, negra como a noite, caminhava sem corpo dentro dela. O elmo vazio refletia a lua, e cada passo fazia ecoar um som de ferro contra pedra, um som que não vinha do mundo dos vivos.
- Quem és? Gritou Afonso, erguendo a espada.
A figura parou. O silêncio pesou ainda mais do que o frio. Então, uma voz cavernosa, feita de vento e sombra, respondeu:
- Sou o que nunca partiu. Sou a memória das muralhas. Sou a dívida por saldar.
Antes que Afonso pudesse avançar, a figura desapareceu na névoa, deixando apenas pegadas geladas que se dissolviam no ar.
Na manhã seguinte, Lídia encontrou-o exausto, sentado contra a pedra fria da torre.
- Viste-o, não foi? Perguntou. A sua voz era um misto de medo e de certeza.
Afonso ergueu os olhos, firmes, apesar do cansaço.
- Sim. E sei que regressará.
Baltasar, que os observava à distância, apenas murmurou para si mesmo:
- Então começou outra vez…
E o inverno de Bragança, com as suas muralhas cobertas de neve e montanhas a guardar segredos, tornava-se palco de uma nova guerra, não entre exércitos de carne, mas entre vivos e sombras.

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