[Padre Francisco Manuel Alves]
No opúsculo Trás-os-Montes, o Senhor Abade tem o cuidado de salientar que entre as perdizes existentes na Serra de Montesinho, também se achava a cinzenta. Porquê este cuidado?
Os tratadistas da arte venatória enumeram as diversas espécies de perdizes, David Montenegro afirma que a mais bela é a perdiz vermelha conhecida e caçada em diversas regiões do País, dá indicações sobre a perdiz rubra mais afoita em Espanha, menos no Sul de França, ainda em Portugal, mas não fala na cinzenta.
O doutor Águedo de Oliveira, na obra D. Carlos Atirador de Caça, fornece-nos fundadas informações relativamente à milenar actividade – a cinegética – técnicas e modos de caçar, lembra um notável ensaio de Ortega y Gasset acerca dos predicados que o caçador deve possuir e na descrição de uma batida em França enuncia: “As charrelas, essas vêm juntas, em enorme bandada”.
Na revista Diana, número 207, Junho de 1966, João Maria Bravo apaixonado caçador e erudito na matéria, não fala na perdiz cinzenta, mas conta-nos a estranha aparição do visitante Maldito que começa por lembrar numa incursão nas terras de Bragança:” Tinha ido a Trás-os-Montes mais para conhecer um terreno de perdizes, novo para mim, do que à procura de grandes caçadas. O tempo estava de vento e chuva.
Viera de Bragança em cata daquele sítio de que me tinham falado e que, afinal, era mais de lobos de que de perdizes.
Começara a caçar tarde, já depois de almoço, com uma linha de mais quatro companheiros, arranjados ao acaso e sem possibilidade de escolha, pois eram todos os que na aldeia tinham espingarda, duas delas de um cano só.
Tudo isto e uns aguaceiros de vez em quando, à mistura com um vento forte a espalhar o pouco que aparecia, ajudaram bastante à miséria da caçada: quatro perdizes e uma molha de que nem os cartuchos, metidos no cinturão, se livraram”.
O conto, fantástico, principia quando o caçador resolve andar e lhe surge pela frente uma estranha criatura...e prossegue num pesadelo invocando a tragédia de Alcácer Quibir causa de muitos sofrimentos, um javali tremendo, mais um lobo demoníaco originador de males ainda mais horrendos. A mulher misteriosa contadora das andanças de Dom Diogo desapareceu, o dia tinha clareado, o caçador beneficiou do aparecimento de uma extraordinária cadela. Noutra caçada perseguiu uma perdiz, “escondida, lá muito no fundo, meio de calhaus”. Não de cor cinzenta, mas sim, a danação da mulher mistério.
No bem-humorado livrinho Barroso, Sal, Ironias e Gabarolice, o extrovertido caçador barrosão Padre Domingos afiança que nos anos quarenta do século XX, apesar de rara,a charrela ainda se via na Serra do Larouco.
No dicionário de Cândido de Figueiredo o termo charrela significa “espécie de perdiz”, e charrela é “perdiz parda da Beira Alta” e da Serra Montesinho, assim o atesta o dicionário de António Morais e Silva.
O Larousse anota a perdiz vermelha, a perdiz cinzenta, a batarvelle parente da perdiz vermelha e colin (perdiz da América) introduzida em França, tendo-se aclimatando facilmente.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa não conhece o termo charrela, o da Academia de Ciências imita-o, mas ao contrário do primeiro, regista a perdiz cinzenta, avisando ser uma raridade. O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado dá a charrela como “perdiz parda da Beira e Trás-os-Montes. Também lhe chamam charela”, conclui. O específico Dicionário do Falar de Trás-os-Montes honra lhe seja, concede a paternidade da charrela a Bragança, referindo: “Charrela, s,f. Perdiz parda, cinzenta (Bragança), perdiz esbranquiçada (Barroso).
Estas e outras obras de referência consultadas permitem perceber a perspicácia do Senhor Abade ao salientar a rara perdiz, e a prova provada do agudo grau de oportunidade do grande braganção no contínuo esforço de valorização dos patrimónios locais está no facto de Agostinho Beça na obra A Perdiz, editada em 2005, por João Azevedo Editor, afiançar o seu desaparecimento. Escreve o autor: “Nos nossos dias (1989 e 1999), outros respeitáveis estudiosos das aves consideram-na simplesmente extinta em Portugal. Contudo, embora ninguém o afirme com segurança, a sua ocorrência é naturalmente possível nas regiões confinantes com a parte espanhola da área de distribuição na Cordilheira Cantábrica, na Galiza e Castela-Leão”.
A perdiz que tanto enlevo provoca aos amantes da observação das aves e desejo junto dos caçadores, é na Mitologia personificação do sobrinho de Dédalo, Talo ou Calo que ao provocar a inveja do tio levou-o a atirá-lo do alto de uma torre, acabando transformado em perdiz pelos poderes da deusa Minerva. Os gregos e os romanos conheciam-na por perdix.
A ancestral presença da perdiz em Trás-os-Montes está inscrita na Corografia Portuguesa e Descrição Topográfica do Padre Carvalho da Costa, ao referir a localidade de Vilar de Perdizes, concelho de Montalegre, acrescentando que em Castro Vicente, concelho de Mogadouro, havia muitos coelhos, perdizes, lebres e porcos monteses.
O Cancioneiro Popular Português, coligido por José Leite de Vasconcelos regista quadras que vão nesse sentido e, no referente ao termo de Bragança, além das quadras acrescenta a cantiga intitulada o Perdigão, cuja imagética recorda o universo rural do mundo que nós perdemos.
“O perdigão anda no monte,
Come da erva que quer;
É como o rapaz solteiro
Enquanto não tem mulher
(Recolhida em Paradinha – Bragança)
“A perdiz anda no mato
Depenicando seixinhos
Também eu depenicava
Na tua bocabeijinhos”
(Recolhida em Vale de Nogueira – Bragança)
A cantiga:
“ O Perdigão pela madrugada,
Pousa na flor, que na rama não pousava.
O perdigão pela manhãzinha,
Pousa na flor, que na rama não podia.
O perdigão, que de amores ali anda,
Pousa na flor, que pousa na rama
Variante:
O perdigão, que de amores ali anda,
Pousa na flor, que não pousa na rama.
O perdigão, que de amores ali ia.
Pousa na flor, que na rama não podia.
O perdigão, que de amores andava,
Pousa na flor, que na rama não pousava...”
No que tange às artes culinárias a perdiz sempre recebeu a afeição dos poderosos às escâncaras e dos humildes pela calada, pois os primeiros não levavam a bem terem de partilhar tão esplendorosa delicadeza culinária com os ventres ao sol. Se o exercício da caça distinguia a nobreza das outras duas classes, a requintada degustação também lhe cabia, compartilhada pelo clero.
A bela Infanta D. Maria (1538-1577), casou-se em Bruxelas com Alexandre Farnésio 3.º Duque de Parma, no baú contendo o enxoval também levou um caderno de receitas hoje conhecido como o Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, nele constam duas receitas de tigelada de perdiz, a confirmar a dita predilecção pela veloz ave.
No Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, podemos ler o modo como o poeta Álvaro de Brito Pestana se dirige ao Luís Fogaça, Vereador da Câmara de Lisboa, dizendo-lhe dos desejos de lisboetas notórios:
“Querem ser almotacéis,
e queriam ser juízes
por encherem
talhadores, e pratéis
de coelhos e perdizes,
e comerem”.(Início do séc. XVI)
O Vocabulário Português e Latino, de Rafael Bluteau, 1638-1734, além de fornecer judiciosas considerações referentes à perdiz e aos seus caçadores, não a esquece no que toca às artes culinárias, fala num caldo que se confecciona cozendo juntamente perdiz e a galinha, no tocante à olha podrida, enumera os ingredientes que a tornam num prato reforçado onde a perdiz é acicate donairoso.
Ao longo dos séculos a perdiz sempre usufruiu de fundado prestígio no cenáculo dos amantes de comeres sumptuosos, na opinião de conceituados críticos, Portugal só possui um prato a receber consagração no círculo da alta cozinha. Trata-se da perdiz à Convento de Alcântara, convento fundado nos primórdios do século XVII pelos Condes de Vimioso, cujas freiras deixaram para a posteridade um manuscrito contendo diversas receitas salvo por um oficial francês, que o ofereceu à mulher de Junot, estando publicado nas memórias da Duquesa de Abrantes. O emérito chefe Auguste Escoffier, (1846-1935), cozinheiro dos maiores desde sempre, incluiu a aplaudida receita no seu Guide Culinaire, trazendo-lhe projecção internacional.
Artistas e escritores de todos os quadrantes entenderam por bem gastar tempo e talento em louvor da perdiz, alguns ousaram até conceber receitas que pela sápida qualidade gerada estão nos anais das artes culinárias, caso do arroz de perdizes à Fialho de Almeida, das perdizes à castelhana criação de Bulhão Pato, existindo até uma receita das mesmas à Mário Soares.
Mais modestas nos ingredientes as receitas de perdiz originárias da cozinha oral também nos concedem folgados prazeres gustativos, os nossos avós manducavam-nas sempre que vinham a jeito, formulando elucidativos provérbios sobre a melhor maneira de serem cozinhadas, a fim de não perderem nenhuma suculência.
“A perdiz e o frade, de manhã ou à tarde.
A perdiz com a mão no nariz.
Do peixe a pescada, da carne a perdiz.
Do peixe a pescada, da ave a perdiz, da carne a vitela.
Não há carne perdida, a não ser lebre assada e perdiz cozida.
Perdiz é perdida, se quente não é comida.
Quem a truta come assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem o que diz.
Quem aos trinta come lebre assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem o que diz.”
Perdigão gordo, passara magra.”
O bragançano Artur Mirandela, democrata de quatro costados em época pouco propícia à defesa da democracia, devotava uma enorme paixão à caça, no livro Trás-os-Montes – Pessoas e Bichos rende homenagens a dois cães perdigueiros, o Dique e o Pólo, pela perícia e sagacidade no desempenho de levantar e apanharem perdizes, coelhos e lebres.
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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