[in A Cozinha Cristã do Ocidente, de Álvaro Cunqueiro.]
Foi Dom Álvaro galego defensor e divulgador das coisas boas da Galiza, luminoso escritor, sabedor e refinado gourmet, justo apreciador dos produtos e comeres de variadas regiões, especialmente das cristãs do Ocidente.
Assistiu toda a razão a Dom Álvaro em prodigalizar elogios aos presuntos de matriz bragançana, pena é que a distracção para não dizer incúria de gente responsável tenha contribuído para o seu apagamento enquanto produto de primeira categoria a potenciar o agressivo nicho do turismo gastronómico mundial, a região Nordestina.
Os produtores compatriotas do autor de La Casa de Lúculo o El Arte de Comer, conseguiram elevar o jamón à condição de “ouro com gordura” estabelecendo uma próspera indústria cujas múltiplas ramificações originam riqueza, emprego e fama, tendo logrado ascender à condição de marca maior de algumas zonas de Espanha.
Em boa verdade, desde a Antiguidade, o presunto recebeu elogios de diferentes quilates, até poemas de louvor dos poetas porcófilos amantes das suas esquisitas qualidades. O comediógrafo Antífanes gostava das patas dos presuntos assadas, Anaxipo considerava-as adequadas à alimentação dos filósofos, Hesiquio tinha no presunto o seu manjar predilecto, Aristógenes de Cirene exibia tão grande habilidade a prepará-los, que passaram a ser conhecidos como os «presuntos de Aristógenes». O ferino comediógrafo Aristófanes (445-385 a.C.) na hilariante obra Pluto anunciava que o deus Hermes andava descontente porque durante os sacrifícios não recebia presuntos. Outras obras da época clássica elogiam os presuntos fazendo-nos perceber quanto os gregos e romanos lhes queriam bem. O filósofo Platão fazia parte dos amantes do presunto, menciona-o na obra Grifos, e recomenda-o como terapia para os enfermos.
É difícil precisar-se quando e como começou o sistema de salgar e curar os presuntos, até atingirem a plena maturação. Seguramente, há milhares de anos, isto porque os gregos deixaram escritos a darem conta do extremo apreço pelos presuntos vindos da Lícia, da Frígia e da Ásia Menor. Os romanos recebiam presuntos da Catalunha, da Hispânia, de Vestefália. O imperador Diocleciano estabeleceu uma taxa especial a onerar os presuntos da Hispânia, dada a sua invulgar sapidez.
O tronitruante e estudioso Catão, no tratado Sobre a Agricultura, incluiu uma receita sobre o modo de curar presuntos. Essa receita ainda justifica menção, porque a técnica no essencial persiste. Atente-se: “Cobre-se de sal o fundo de uma tina e põe-se em cima o presunto, com a pele por baixo. Cobre-se tudo com sal e põe-se outro presunto por cima e cobre-se da mesma maneira. Há que ter o cuidado da carne não tocar na carne. Faz-se assim e quando se tenham todos os presuntos na pilha, cobre-se a parte alta com sal de modo a que não se veja nada da carne e alisa-se uniformemente. Ao fim de cinco dias, tiram-se com o sal e os que estavam em cima passam para baixo. Depois ao duodécimo dia tiram-se os presuntos, escova-se o sal com uma esponja e untam-se com azeite. Depois colocam-se ao fumo durante dois dias e ao terceiro limpam-se esfregando-se com vinagre e azeite. Depois colocam-se na despensa, e não devem tocar-lhe os morcegos e os vermes.”
Ao falarmos de Auvergne, Baiona, Guijuelo, Huesca, Iorque, Jabugo, Lacaune, Lião, Parma, Praga, Pirinéus, Sabóia, Trevélez e Vestefália estamos a falar de presuntos significantes por terem rompido as barreiras locais, regionais em nacionais. Em Trevelez, os presuntos conservados na neve transformaram-se num produto gourmet de excepção, conquistando os consumidores mais exigentes.
Em Portugal ganharam relevo os presuntos considerados de Chaves e Lamego, porque essas localidades centralizavam a venda nas feiras anuais os vindos das regiões limítrofes, esquecendo-se, injustamente, outras terras a começar por Bragança, e acabar no Soajo, passando pelo Barroso e Vinhais.
A fumagem constituía o processo empregue com maior frequência na sua preparação e conservação.
O celebrado Orezia definia o presunto dizendo:” a fumosa perna”. No fluir dos séculos impôs-se como alimento de alta condição, na época feudal era “moeda” de pagamento de impostos.
Para o célebre Cristoforo di Messisburgo trinchante na corte de Afonso I, e Ercole II, o presunto é componente essencial na despensa e o cozinheiro Mestre Martino ao serviço do Patriarca de Aquiteia, século XV, no Livro de Arte, ensina o método de escolha de um bom presunto.
Alguns dos presuntos originários de localidades acima consignadas são objecto de estudo histórico, reconhecimento e veneração a nível mundial, inspirando artistas, até cineastas, lembro o filme Jamón, Jamón (1992), beneficiando as regiões de onde provêm. E por cá, como é? Fica a interrogação.
As propriedades sápidas dos diversos presuntos, crus ou cozidos, sempre estiveram subjacentes à natureza do sal, ao modelo de conservação, raça e idade do porco e alimentação por ele recebida, eis as razões que enformam a classificação geográfica agora em normativos comunitários, no antecedente através da fama alcançada.
O presunto consome-se cru ou preparado nas várias cozeduras, dando corpo a um amplo naipe de receitas seja no capítulo das entradas, das sopas, pratos de peixe (mormente de bacalhau), carnes, arrozes, bolas, folares, massas, doces, lambiscos e petiscos.
O presunto no território bragançano é desde tempos antigos reconhecido como produto de eleição, tinha grande valor económico para as maioria das famílias pois atingia preços de venda a possibilitarem ganhos empregues na aquisição de produtos de primeira necessidade caso do açúcar, arroz, azeite, bacalhau, sardinha, petróleo, remédios e roupas.
Estas fortes razões levavam as mulheres a empregarem cuidados acrescidos na criação dos porcos, os presuntos (até se trocavam por toucinho) no conjunto das carnes vendidas no mercado pagavam taxas mais altas, logo seguidos pelo toucinho. O presunto dada a notável qualidade e ser mais raro, o toucinho dada a polivalência granjeavam grande procura por parte da generalidade da população. Alguns exemplos:
• Em 1906, o presunto pagava por quilo 540 réis de taxa, o toucinho 500, a vitela 200, o carneiro 140.
• Em 1909, o presunto pagava 440 réis, o toucinho 360, a vitela 215, o carneiro 140.
• Em 1910, o presunto pagava 560 réis, o toucinho 480, a vitela 240, o carneiro 140.
• Em 1912, o presunto pagava 500 réis, o toucinho 400, a vitela de 1.ª qualidade 280, o carneiro e o chibato 140.
• Em 1915, o presunto pagava $60 centavos, o toucinho $55, a vitela de 1.ª qualidade $34, o carneiro e o chibato $18.
• Em 1920, o presunto pagava 3$00, o toucinho 3$00, a vitela de 1.ª qualidade 1$20, o carneiro e o chibato, $80 centavos.
• Em 1924, o presunto custava por quilo 20$00, o toucinho 18$00, a vitela 10$00 e o cabrito 5$00.
• Em 1928, o quilo de presunto custava 13$50, o de toucinho 11$00, o de vitela 7$00, o de cabrito 6$00 e o de carneiro 4$00.
• Em 1932, o quilo presunto custava 14$00, o de toucinho 8$00, o de vitela 6$00, o de cabrito 3$50, o de carneiro 2$00.
A leitura dos números permite-nos perceber o valimento do presunto no quadro das carnes vendidas e consumidas em Bragança.
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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