Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contradição.
MIGUEL TORGA (Portugal, 1950)
O Interior Norte de Portugal constitui o território que desde a Baixa Idade Média se tem designado por Trás-os-Montes. A sua extensão e variabilidade possibilitam a distinção de diversas unidades geográficas no seu interior, pelo que, desde finais do século XIX, se produziram algumas propostas de divisão regional que, porém, não têm suscitado a unanimidade (cf. Lemos, 1993, Ia, p. 85-87).
Com base na percepção da ocorrência de duas influências climáticas – a atlântica e a mediterrânica – nos ecossistemas naturais, mas também para fins agronómicos, tem-se vulgarmente dividido este vasto território em duas grandes regiões distintas: a Terra Fria e a Terra Quente (Alves, 1938, p. 643-644; Vasconcelos, 19802, p. 109; Lemos, 1993, Ia, p. 91; Sanches, 1997, p. 25).
A Terra Fria ocupa a parte setentrional do território transmontano, da serra do Gerês aos planaltos da Lombada e de Miranda. Leite de Vasconcelos (19802, p. 110-111) precisa, todavia, que a designação Terra Fria é mais própria do distrito de Bragança ou, se quisermos, de Trás-os-Montes Oriental, já que na parte ocidental frequentemente se substitui pela de Montanha. Engloba o planalto da Mourela, as serras do Larouco, Leiranco e Brunheira, o planalto da Lomba, as serras da Coroa e Montesinho e a Baixa Lombada, prolongando-se meridionalmente pelas serras do Barroso, Alvão, Marão e Padrela, pelo planalto de Carrazeda e pelas serras da Nogueira e Bornes (Lemos, 1993, Ia, p. 99-101; Sanches, 1997, p. 21); mais a oriente, entre o rio Sabor e o Douro internacional, o território designado, numa acepção de base histórica, como Terra de Miranda (Lemos, 1993, Ia, p. 129) ou, de forma menos abrangente, como Planalto Mirandês, (Sanches, 1992, p. 27-28) está, como dissemos, também integrado na Terra Fria (Alves, 1938, p. 643-644; Vasconcelos, 19802, p. 111-112, Sanches, 1997, p. 21), embora alguns autores lhe concedam uma individualidade própria (Lemos, 1993, Ia, p. 129-130).
De uma forma, quiçá, demasiado simplista e grosseira, anulando alguns enclaves de Terra Fria na Terra Quente, e vice-versa, poderemos incluir na Terra Quente a restante parte do território transmontano (Vasconcelos, 19802, p. 112-115; Lemos, 1993, Ia, p. 116-117; Sanches, 1997, p. 21).
O espaço que é objecto deste estudo corresponde exactamente à parte da Terra Fria integrada no distrito de Bragança, excluídas as zonas planálticas da Terra de Miranda ou Planalto Mirandês. Por comodidade de expressão, designamo-la de região de Bragança. Todavia, este território aparece individualizado no falar das gentes da Terra Quente com a designação de Terras de Bragança, numa distinção clara relativamente ao território mais oriental, que é apelidado de Terras de Miranda (Vasconcelos, 19802, p. 112).
Administrativamente, tem correspondência com os actuais concelhos de Bragança, Macedo de Cavaleiros e Vinhais (negligenciando-se a presença de algumas franjas de território com características intermédias ou de transição entre a Terra Fria e a Terra Quente nos dois últimos concelhos). Os seus limites podem estabelecer-se da seguinte forma: a nascente, o curso superior do rio Maçãs e parte do curso médio do rio Sabor; a sul, a serra de Bornes; a poente, os contrafortes da serra da Nogueira e o curso dos rios Mente e Rabaçal; a norte, a fronteira político-administrativa com Espanha.
Do ponto de vista geológico (Ribeiro, 1974, p. 14-15), este território (a região de Bragança) encontra-se posicionado na extremidade sudoeste da Zona da Galiza Média/Trás-os-Montes e em parte da Zona Centro-Ibérica, que surge a envolver a primeira. A sua principal particularidade reside na existência de um cavalgamento, designado de transmontano, que ocasiona a sobreposição de terrenos da Zona da Galiza Média/Trás-os-Montes sobre a Zona Centro-Ibérica e a Zona da Galiza Oriental. Os terrenos cavalgantes constituem o Domínio transmontano; no seu exterior, posiciona-se o Domínio do Douro Inferior que detém as características próprias da Zona Centro-Ibérica.
Os maciços de Bragança e Morais, verdadeiros pontos nucleares da geologia transmontana, caracterizados pela sua composição polimetamórfica, que no caso específico do maciço de Morais é recoberta por uma sequência monometamórfica, cavalgam sobre os terrenos envolventes, divididos em duas unidades distintas: a Centro-Transmontana, na periferia imediata dos maciços, e a Peri-Transmontana, que, em parte, envolve a anterior.
Nos maciços de Bragança e Morais dominam as rochas metabásicas (xistos verdes, xistos anfibólicos, anfibolitos e blastomilonitos), os metaperidotitos e os paragnaisses, havendo também a registar a presença de gnaisses e micaxistos no maciço de Morais. Na envolvente destes maciços surgem, sobretudo, formações de xistos e grauvaques, de rochas quartzíticas, mas também de xistos verdes. No Domínio do Douro inferior, a que corresponde a parte setentrional do território em estudo, dominam as formações xistosas e quartzíticas (Ribeiro, 1974, p. 22-51).
As manchas granitóides, relacionadas com os movimentos hercínicos, e com idades diferenciadas (Ribeiro, 1974, p. 123-126), não são muito extensas: ocorrem na serra da Nogueira e, junto à fronteira com Espanha, na serra de Montesinho; a norte da serra da Coroa, na superfície planáltica da Moimenta, e, a nascente do extremo setentrional do planalto da Lomba, nos Pinheiros. Foram estas, com toda a certeza, as fontes de abastecimento de granito na época romana, quer para a construção, quer para produção de elementos arquitectónicos e de monumentos epigráficos(1). O xisto raramente foi utilizado na produção epigráfica, a qual, porém, também utilizou o calcário, o mármore(2) e o talco(3) que surgem em diminutos afloramentos disseminados pela Terra Fria.
Como acabámos de ver, a estrutura geológica deste território, tal como da totalidade de Trás-os-Montes Oriental, reflecte-se na sua complexa litologia, mas também tem influência na sua orografia. Esta, em resultado de movimentos orogénicos hercínicos, post-hercínicos e recentes, caracteriza-se pela alternância entre relevos montanhosos e planaltos, que surgem a delimitar depressões e vales profundos, frequentemente encaixados.
As serras de Montesinho (1474 m) e da Coroa (1272 m) constituem os relevos montanhosos mais setentrionais: a primeira, assumindo-se como o prolongamento meridional dos relevos da serra da Gamoneda, continua, desta forma, o altiplano da Segundera; a segunda, de cumes aplanados e encostas em arco, localiza-se mais a ocidente, entre os cursos do Tuela e do Rabaçal. Mais a sul, dispondo de um posicionamento mais ou menos central no território que estudamos, localiza-se a serra da Nogueira (1318 m), também de cumes aplanados e com uma orientação nordeste-sudoeste. No limite meridional deste território, e com a mesma orientação da anterior, ergue-se a serra de Bornes (1200 m).
As superfícies planálticas recortam-se um pouco por todo o território: do lado oriental, a Lombada – que Lemos (1993, Ia, p. 114) designa de planalto de Deilão –, o planalto de Parada-Izeda e o Monte Morais; a ocidente, o planalto da Lomba; e na parte central, a norte da Nogueira, duas superfícies aplanadas separadas pelo rio Baceiro.
A Lombada (Vasconcelos, 19802, p. 161-163; Taborda, 1932, p. 39) é delimitada, a leste, pelo rio Maçãs – que estabelece simultaneamente a linha fronteiriça com o território espanhol – e, a poente, pela superfície deprimida da Baixa Lombada (Vasconcelos, 19802, p. 160-161). Entre o curso do rio Sabor e os contrafortes nordeste da serra da Nogueira, e a sul do vale do Fervença, individualiza-se o planalto de Parada-Izeda (Taborda, 1932, p. 39; Lemos, 1993, Ia, p. 115), que tem por limite meridional a superfície planáltica do Monte Morais (Lemos, 1993, Ia, p. 115). O planalto da Lomba está perfeitamente delimitado pelos cursos dos rios Mente – que também estabelece a fronteira com Espanha – e Rabaçal (Vasconcelos, 19802, p. 153-158; Lemos, 1993, Ia, p. 112-113). Entre as serras da Coroa e de Montesinho, o rio Baceiro divide duas superfícies pequenas, também planálticas, que se podem apelidar de Transbaceiro, a ocidente do rio, e de planalto de Espinhosela (Lemos, 1993, Ia, p. 113), no lado oposto.
Por entre estes relevos inscrevem-se os vales dos principais rios e seus afluentes e a depressão tectónica de Bragança, prolongada para norte pela superfície de feição aplanada designada de Baixa Lombada. Esta depressão, delimitada pela serra da Nogueira, a ocidente e sul, pela serra de Montesinho, a nordeste, e pelo planalto de Parada-Izeda, a sul, relaciona-se com a fractura Manteigas-Vilariça-Bragança e destaca-se pela fertilidade dos seus solos e pelo clima menos duro.
O Rabaçal, o Tuela e o Sabor são os três principais rios que sulcam o território da Terra Fria bragançana. Têm origem em relevos montanhosos espanhóis, próximos da fronteira, e integram a bacia hidrográfica do Douro, pelo que seguem uma orientação predominante norte-sul. Recebem o tributo de afluentes com alguma relevância regional. Falamos, concretamente, dos rios Mente e Baceiro que, respectivamente, afluem ao Rabaçal e ao Tuela, e dos rios Fervença, Onor, Maçãs e Azibo que engrossam, em diferentes pontos do seu curso, o Sabor.
O estudo das matrizes de povoamento da época romana em Trás-os-Montes Oriental (Lemos, 1993, Ib, p. 431-434) revelou a preferência pela ocupação dos planaltos e do fundo das depressões, bem como das manchas com potencialidade agrícola (solos de classe A e C e complexos A+C, A+F e C+F). No contexto da Terra Fria, é precisamente a depressão de Bragança, incluindo zonas circundantes, que, pelas suas características morfológicas e de aptidão agrícola, acolhe a maior densidade de povoados. A ela surgem associadas manchas de cambissolos, fluvissolos e de alissolos, também com representação assinalável na área de Macedo de Cavaleiros, que podem explicar a sua potencialidade em termos de uso agrícola do solo. Na maior parte do território dominam os leptossolos (Agroconsultores e Coba, 1991).
O clima, marcado pela continentalidade, é, genericamente, caracterizado por invernos frios e prolongados e por verões curtos e secos, bem como pela formação de geadas durante grande parte do ano. Sobretudo nos relevos montanhosos, é regular a precipitação em forma de neve no período invernal, embora só durante algumas semanas o solo fique coberto. Considerando que o período subatlântico, que ainda hoje vivemos, se iniciou na primeira metade do I milénio a.C., talvez não deva diferir muito o clima que sentiram os habitantes da região na época romana (cf. Esparza, 1986, p. 22-23).
O solo, o clima e a acção antrópica são os principais factores que condicionam a paisagem vegetal de uma região. A cobertura vegetal hodierna (Agroconsultores e Coba, 1991, p. 30-31, 33-34) é dominada por carvalhais de Quercus pyrenaica, que revestem, sobretudo, as faldas da serra da Nogueira e de outras serranias, bem como as encostas íngremes de alguns vales, por castinçais e soutos de castanheiros (Castanea sativa), por azinhais (Quercus rotundifolia), por vidoeiros (Betula celtiberica), por algumas manchas de sobreiro (Quercus suber), sobretudo em situações climáticas favoráveis, e por alguns povoamentos de pinheiro (Pinus sylvestris e Pinus nigra); mas também por matos, onde se destacam a urze (Erica australis, Erica umbellata), a esteva (Cistus ladanifer), a carqueja (Chamaespartium tridentatum), o sargaço (Halimium allissoydes), a torga (Calluna vulgaris) e as giestas (Cytisus spp. e Genista spp.). Para a caracterização do coberto vegetal da época romana faltam-nos os indicadores paleo-ecológicos, mas é seguro que o cenário que hoje se nos depara tem fortíssima intervenção humana, que se terá feito sentir logo nesse período – depois continuada nas épocas medieval e moderna, e, inclusivamente, na actualidade.
NOTAS
(1) F. Sande Lemos pressupõe o funcionamento de uma rede de pedreiras de exploração de granitos que abasteciam determinadas zonas (Lemos, 1993, Ib, p. 360). Ressalta, contudo, a inexistência de estudos de caracterização dos granitos, e dos próprios suportes epigráficos ou dos elementos arquitectónicos conhecidos, que permitam fundamentar de forma mais detalhada esta ideia.
(2) Quanto ao aproveitamento dos mármores e calcários, destaca-se a exploração que terá sido efectuada dos mármores e alabastros de Santo Adrião (S. Pedro da Silva, Vimioso), onde terá sido reconhecida a actividade extractiva romana (Lemos, 1993, Ib, p. 361); a constatação da importância do aproveitamento destes afloramentos levou a que, recentemente, se tivesse proposto para um conjunto de estelas que têm em comum a mesma natureza do suporte, mas também características técnicas e iconográficas semelhantes que as unificam estilisticamente, a designação de estelas da roda sobre peanha em brecha de Santo Adrião (Navarro, 1998, p. 179).
(3) O talco surge associado aos afloramentos de serpentinitos, havendo a registar a sua presença, por exemplo, em Castrelos (Monte Ladeiro), em Samil e na área do Monte Morais. É, contudo, possível o aparecimento de pequeníssimas bolsas de talco noutros locais em associação a serpentinitos.
Autor: Armando Redentor
Autor: Armando Redentor
in:TRABALHOS DE ARQUEOLOGIA; 24
COORDENAÇÃO EDITORIAL
António Marques de Faria
TRADUÇÃO DO RESUMO
Katina Lillios
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ISBN 972-8662-06-8
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LISBOA
2002
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Já agora, o autor é Armando Redentor. E o texto aqui transposto corresponde a uma pequena parte da publicação integral da tese de Mestrado que, sob o título "Epigrafia romana da região de Bragança", defendeu, em 2000, na Universidade de Coimbra, obra que, pela sua qualidade, é de consulta obrigatória para quem se dedica ao estudo desta região ou simplesmente por ela se interessa.
ResponderEliminarSerá, infelizmente, pouco conhecida dos bragançanos.
Ainda esteve um exemplar exposto na vitrine da Livraria Mário Péricles, mas, se bem me lembro, a procura não terá sido muita...
Clara André