domingo, 30 de setembro de 2018

A cidade dos amores e das grandes amizades, BRA-GAN-ÇA

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

A missa da Sé ao domingo era às 09:30 da manhã e o seu desfecho era o princípio de uma nova aventura faseada em duas partes diurnas e uma terceira já com o crepúsculo anunciado e as forças físicas e anímicas quase exauridas.


Quando o Senhor Cónego Ruivo, pausadamente, com a sua voz de tenor e do alto do seu metro e oitenta dizia: Ide em paz e que Deus vos acompanhe, começava a debandada e tomávamos a direcção da Flor da Ponte. Havia ali uma fábrica de sonhos, sob a custódia de um homem que possuía o sorriso mais afável e amigo de todos os que até hoje conheci, o Snr. Joaquim da Flor da Ponte.
Tinha patins e um rink, pequeno, mas um rink, bicicletas para alugar e até barquinhos de remos e outros com pedais, que sulcavam as águas quase paradas do Rio Fervença. É fácil adivinhar o que acontecia a seguir. As moedas, ganhas ou arranjadas das formas mais díspares e que incluíam formas lícitas e ilícitas de posse, saíam dos nossos bolsos para a mão do Snr.Joaquim e ele soltava a bicicleta, roda 26, ou até mais pequena, do cadeado que a prendia e fazia com este gesto, a felicidade da garotada que começava a pedalar na estrada do Turismo, na directa proporção às forças do seu físico e da quantia que o seu bolso acautelava.
Os barquinhos eram assim como que coisa mais pró fino e eram também associados à ideia de menina a bordo, a quem se houvesse declarado a paixão através de carta copiada do manual, As Cem Mais belas Cartas de Amor, coisa que os mais fortes de físico e mais fracos de memória usavam recorrentemente.
No Loreto de Cima e debaixo dos Negrilhos havia outro lote de bicicletas a pedal, algumas com guiador de corrida, que pertenciam ao Soares que morava na Boavista e era marido de uma Senhora. morena,Tendeira, que vendia desde alfinetes e pentes p'ró cabelo até esticadores para o colarinho! O Soares nunca foi, comercialmente falando, da estaleca do Senhor Joaquim. Era no entanto mais liberal na forma como deixava que usássemos as bicicletas. Com as do Soares podíamos vir para o Loreto de Baixo e até atrasarmo-nos um pouco na devolução dos velocípedes, o mesmo não acontecendo quanto à ida da Flor da Ponte para o Loreto de Cima.
As minhas recordações desse tempo mágico fazem que me lembre hoje de tipos que estavam bem escondidos no fundo do meu baú de coisas lindas! O Manuel Cowboy, primo da minha mulher, era um frequentador assíduo da Flor da Ponte. Morava na Costa Grande e também era fanático do Cine Teatro Camões e do Rebolo, Carrasqueira e Altar. Aqui antes de saltar para o rio, usando toda a força dos pulmões gritava; Cri-ago-Tarzan-bândulo e depois com a mão nos lábios o célebre grito do Tarzan a chamar pela Cheta; Oooooooo, que Weisemüller tornou famoso na fita,Tarzan, o Rei da selva.
O pessoal do Loreto estava sempre em maioria e recordo o Fernando Saldanha e o Manuel Barata, bem assim como o Oliveira que impregnados das ideias de aventura se alistaram nos pára-quedistas e todos os três foram soldados que fizeram a guerra de África e granjearam grande prestígio. Havia também um rapaz chamado Orlando que morava no S.joão de Brito, cujo pai era motorista na Moagem do Afonso Lopes e foi para África. Nunca mais o vi mas sei que era amicíssimo do Beto da Pastelaria Ribeiro onde hoje está a Dómus.
Nos negrilhos do Loreto de Cima havia espaço suficiente para umas boas partidas de Fito. Havia nesse tempo rapazes dotados de pontaria e de força suficiente para tais avarias mas havia também outros que quando pegavam na malha ou pedra, era sabido que ia parar aos tanques de lavar a roupa onde as mulheres gritavam e barafustavam contra "Esses carvalhos que não têm força nos braços, que fará na verga. 
"Eu hoje quando regresso a essas memórias sinto em mim um misto de riso e também de ternura por essas mulheres que nos deram tudo; a vida, a comida, a limpeza, o amor de mães e até, as que elas geraram, iguais a elas, nos entregaram para que nos servissem como elas nos serviram a nós, seus filhos. O Verbo servir aqui, deverá ser entendido como amaram, porque foi com todo o amor que há no mundo que elas nos amaram, criando-nos e dando-nos a liberdade para aqui e agora transmitirmos aos nossos netos a nossa felicidade de crianças que ao fim do dia exaustos das brincadeiras, caíamos no seu colo e só despertávamos de manhã, no dia seguinte, prontos para mais outro igual ou com a pequena diferença de ser complementado com a Escola onde outra mulher nos ensinava os mistérios da Escrita e da Aritmética, para depois da Gramática sermos capazes de escrever um texto nesta bela língua de Camões e Vieira que foi também de Pessoa e Régio e é igualmente nossa. 




Bragança, 28 de Setembro de 2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)

Sem comentários:

Enviar um comentário