Como já fomos vendo, era ingente a preocupação de propagandear e mentalizar, de ensinar a justeza das grandes causas da República – por oposição à doutrina e à prática monárquicas – e de afastar medos em relação a princípios, decisões e reformas republicanas.
Em A Pátria Nova de 23 de novembro, tecem-se louvores às realizações e à “obra colossal” da República.
Procura-se tranquilizar os espíritos: “A República acha-se hoje mais consolidada que muitas que há anos figuram como tais no mapa das nações.” E esta idílica visão: “Foram-se os frades. As freiras, alegres umas, tristes outras, ora emigraram, como aves para sempre feridas, ou andam por cá, de xaile e lenço, chilreantes como cotovias que viram abertas as portas da gaiola”. Prepara-se a “separação da Igreja do Estado”.
O autor não sabe o que mais se deve admirar: “se a heroica revolução de outubro”, se a “obra administrativa, política e social que se seguiu ao ingente feito”. São enumeradas algumas importantes medidas: “aboliu-se a Câmara dos Pares, verdadeira cidadela do preconceito, constituída por imbecis que herdavam o lugar, pelos mitrados que eram membros natos e ainda pelas mediocridades que cercavam os Braganças”. Na ordem social, destaca-se a lei do divórcio, um “trabalho admirável.”
Com “Salvos pela República” prossegue a doutrinação. O artigo, de Augusto Moreno, enaltece as superiores virtudes deste regime, em especial no campo social. A “queda da Monarquia não significa apenas a substituição de D. Manuel pelo sr. Teófilo Braga. O novo regímen – tudo o anuncia – será sobretudo um outro, e muito diferente, modo de ser social”. A Pátria Nova de 4 de dezembro enumera as grandes medidas já tomadas – inquilinato e divórcio – e as que se esperam: “sufrágio universal, registo civil, separação da Igreja do Estado”.
A esperança desmesurada nas potencialidades miríficas da instrução, continua a ser reafirmada, como se pode ver nos números de 2 de novembro de 1910 e de 19 de janeiro de 1911. A instrução primária é considerada “a pedra angular sobre que a República há de assentar firmemente o novo edifício social”. É emitida uma circular do “subinspetor do círculo escolar de Bragança”, com diretrizes sobre o que os professores deviam pensar e ensinar. Também a República não persegue a religião, como o povo imagina, “só expulsa os jesuítas, já expulsos pelo Marquês de Pombal” e “suprime as comunidades monásticas e dissolve todas as ordens congreganistas de freiras ou frades”, já extintas por José António de Aguiar e Anselmo Braamcamp. Há sugestões para uma melhor gestão das escolas, entre, as quais se destacam a “coeducação dos sexos”. Continua a propor-se a transformação das quatro escolas primárias de Bragança em duas escolas centrais”.
Nestes combates em prol da reconversão ética e moral, procura-se pôr termo ao caciquismo e à “cunha” que fizeram “abandalhar” a vida pública. Com “Abaixo a empenhoca”, faz-se uma denúncia da “indecente” instituição nacional da “cunha”. “Empenhocas” para tudo – só assim as coisas andavam –, mesmo quando se tinha razão e se cumpriam todos os trâmites legais. Nada se fazia “sem recorrer ao cacique que apadrinhasse” a pretensão. Urge que tudo isto acabe. “Apesar de o regímen ser novo, há muita gente velha”.
Alves da Veiga nasceu no dia 28 de Setembro de 1849 em Izeda (Bragança) |
“O amor da terra natal era sufocado pelas imposições de miséria… Ficam os inválidos, ficam os velhos e ficam as crianças que são hoje os operários rurais.”
Discutem-se as questões agrárias. A dos baldios é das mais debatidas. Especialistas e homens informados, ligados à agricultura, pugnam pela reconversão dos terrenos maninhos, incultos, e dos baldios. Depois do triunfo da revolução, continuam a ser feitas propostas e tentativas – numa lógica capitalista e de afirmação do individualismo –, de aproveitamento desses terrenos.
No domínio da saúde pública, chama-se atenção para os múltiplos “agravos higiénicos” que molestam as aldeias do Concelho. Os párocos e os professores deveriam ter um importante papel na alteração deste estado de coisas, mas é “o barbeiro que, pelo magro estipêndio de alguns alqueires de centeio”, exerce “cumulativamente o mister de Fígaro e de mezinheiro emérito”. O autor chama a atenção para a necessidade das vereações intervirem, em especial – o que seria de “primacial importância” – no que respeita à água que é responsável pela “transmissão de doenças: as febres tifoides, as enterites, as disenterias”.
Para melhor compreendermos o que se passava e para vermos como era muito o que aqui chegava e o que se discutia, são de registar alguns ecos de perplexidades e de receios que se faziam sentir perante as medidas que o Governo Provisório tomava e as que se preparava para tomar. Um articulista do Jornal de Bragança, em 30 de outubro de 1910, no artigo “A Separação da Igreja do Estado”, já manifestava a sua discordância face ao que poderiam ser medidas e decisões excessivas e desaconselháveis. Não se justifica – segundo ele – que o Governo, que não está legalmente confirmado pelo voto, vá fazer, “por uma providência ditatorial”, “tão profundas modificações em assunto de tal magnitude” no campo religioso. E ainda se acrescentava: é um Governo levantado por uma revolução “que, embora triunfante, não pode bem chamar-se vencedora”. Recomendava-se moderação, o que, aliás, era aconselhado pelas características da revolução portuguesa. “É certo que no momento revolucionário se conseguem muitas vezes reformas profundas nas tradições e nos hábitos que dificilmente se fazem em circunstâncias normais; mas temos de reparar que a nossa revolução não se firmou pelo terror dos vitoriosos, mas pela adesão de quase todo o povo.”
A receita era consolidar primeiro o regime republicano e fazer propaganda “não contra a Igreja, que essa pode ser prejudicial e contraproducente, mas contra os seus privilégios”, como se lê numa carta de Machado de Araújo, de 25 de outubro. Prosseguem as recomendações que preconizavam ponderação nas medidas que levariam à lei da separação. A separação não pode ser a “supressão da Igreja pelo Estado, de onde resultarão grandes perturbações em todas as províncias”.
Como é sabido, havia republicanos que pensavam do mesmo modo. Para além de recearem exageros provocados pela intervenção na esfera religiosa, temiam as resistências sociais que tais medidas podiam suscitar.
Queria-se uma solução que passasse por eleições e, consequentemente, pela escolha de um governo legitimado pelo sufrágio. A 30 de novembro de 1910, já se denunciam os males resultantes do exercício de um Governo provisório. “É isto um grande mal, porque a força está substituindo o direito e, pelo paradoxo das coisas, nessa força é que reside a maior fraqueza”. “Sente-se já o ruído… da onda popular”. “Só uma assembleia, representativa de todos os legítimos interesses nacionais… tem a força incontrastável do direito para submeter todas as rebeldias”.
A difícil situação laboral – com o intenso surto grevista (em especial no setor ferroviário) que afetava o País – também preocupava as forças da governação local e os republicanos brigantinos. A 13 de janeiro de 1911, em “pública assembleia”, nos Paços do Concelho, convocada pela Comissão Municipal para condenar o movimento grevista e manifestar apoio ao Governo Provisório, Alves de Morais, o “velho” republicano, ao agradecer ao povo de Bragança e à Comissão, “expressa o seu júbilo por ver que a ideia da República está encarnada no espírito de todos e principalmente das classes ilustradas”, e condena as greves pelo que “atualmente tinham de antipatrióticas e de inoportunas”.
A conflitualidade religiosa também está presente. Para auscultar problemas e contribuir para a aceitação do novo regime, o Governador Civil não se limita a visitar os quartéis, também inspeciona o Seminário – o que aconteceu a 29 de outubro. A melindrosa questão religiosa, que podia acentuar clivagens e provocar resistências, era de difícil gestão, tanto mais que o bispo de Bragança não era consensual.
No jornal de Raul Teixeira, escreve-se que o bispo de Bragança, “essa criatura turbulenta e inchada de ódios, acaba de demitir o dr. Manuel da Nóvoa de professor de preparatórios do Seminário”. Não se poupam qualificativos depreciativos: a inteligência “adiposa do Sr. Mariz”; “o despeito mesquinho, a vaidade balofa, o fátuo melindre”.
E acaba com um pedido veemente: “Encerre-se o Seminário e não haja só justiça para o bispo de Beja.” Pedia-se para tratar o bispo de Bragança com a mesma receita que fora aplicada àquele prelado.
João José de Freitas, político republicano com uma forte ligação a Bragança, chegando a ser seu Governador Civil |
Há notícias, relacionadas com a esfera religiosa, que documentam os novos tempos que se viviam. No texto “Vítimas da reação” relata-se o caso de dois irmãos que foram alvo da perseguição “monárquico-clerical” e o júbilo, agora sentido, pela sua libertação da Cadeia da Relação do Porto. Acusados de “atentado anarquista” e condenados pela explosão de uma bomba no Paço Episcopal, em 13 de dezembro de 1909, eram agora recebidos como heróis e esperados por centenas de pessoas na estação de caminho-de-ferro de Bragança, apesar do “impróprio da hora”, com vivas à República, ao Governo, à Liberdade.
E deparamos, ainda, com notícias que dão conta de algumas perturbações. Sinais, aparentemente menores, que indiciam um certo mal-estar e que traduzem descontentamento são visíveis na Cidade, nos fins de 1910 e inícios de 1911. A Pátria Nova relata acontecimentos preocupantes para os responsáveis republicanos, como, por exemplo, o facto de os alunos do Liceu resolverem retomar o trabalho escolar só depois do dia 6 de janeiro de 1911 (isto é, prolongando as férias de Natal), sem que o reitor e o Governador conseguissem demovê-los.
Acusações e ataques anónimos – ditos caluniosos e torpes – são relatados no artigo “Torpeza”.Os suspeitos eram, para o jornal republicano, os do costume. São espalhados, “por mão criminosa”, escritos “tendentes a indispor e malquistar com a população os republicanos mais em evidência”. “Virtuosas e honestíssimas senhoras casadas não têm escapado a esses nojentos caluniadores.” E em comentário: “os processos são puramente jesuíticos e desta maldita seita foram apenas expulsos do País os seus membros de roupeta”. “Os de batina, saia, casaca, farda e até de jaqueta… por aí se ficaram alapardados”.
Denunciam-se gestos reaccionários e provocatórios dos sequazes do “padre Cabral e de Couceiro”: “é muito curiosa a medalhinha que usam os partidários do senhor D. Manuel…, numa das faces a Imaculada Conceição, cercada com esta legenda: mostrai que sois nossa mãe; na outra os seguintes santos: S. José, S. Luís Gonzaga e Santo Inácio de Loiola, todos em cima de coroa real… É com esta gente que pensam restaurar a Monarquia…, sem se lembrarem de que foram estes mesmos que a perderam… Divertidíssimos imbecis, ide-vos fiando na Virgem, que o mais que conseguireis é enganar os tolos…”.
Porque há desconfianças, em relação à legalidade de atos administrativos das “câmaras monárquicas”, são decididas sindicâncias à administração municipal de todas as vereações monárquicas e de todos os secretários, desde o ano de 1902. Na reunião de 10 de novembro, o Presidente propõe recuar esta data para 1886, acabando por se fixar o ano de 1900.
A conflitualidade social que é documentada, num meio em que escasseava o operariado e ainda mais o proletariado, diz respeito, fundamentalmente, a algumas perturbações laborais causadas pelos tipógrafos – o que vai criar, por vezes, perturbações na publicação atempada das folhas locais. É assim que, por exemplo, no número de 3 de novembro de A Pátria Nova, se fala em “desobediência cometida pelo pessoal tipográfico” para com o chefe, o que impediu a publicação de um número do jornal. O Jornal de Bragança também é afetado, tendo saído com atraso.
Notícias breves do quotidiano, que podem passar despercebidas, assumem, se vistas à luz do contexto da época, uma relevância significativa.
Nos fins de novembro, ainda se realizam manifestações de fé republicana. O Governador Civil, que se havia ausentado para Lisboa, é recebido na gare pelos “rapazes do liceu”, com “a respetiva tuna”. João de Freitas, das janelas do hotel, “agradeceu a manifestação… numa alocução eloquente”, refere A Pátria Nova de 23 de novembro.
Também se concretizavam gestos de amor à Pátria republicana, que se traduziam, por exemplo, na entrega de donativos para melhorar a situação financeira do País. Um proprietário de Izeda, cujo nome não se revela, mas provavelmente um republicano crente e ativista, entrega ao doutor Domingos Frias, vice-Governador Civil, a quantia de 10$000 réis para a “subscrição aberta para o pagamento da dívida flutuante externa”.
Para além dos mais variados problemas que faziam parte da vida da Cidade, também se registavam episódios e casos relacionados com a perturbação da ordem pública, que caíam no âmbito da agitação social. O primeiro incidente sério é catalogado como “uma grave desordem”. A notícia pretende ser objetiva. Domingo, dia 15 de janeiro de 1911, pelas 9 da noite, registou-se na Rua Alexandre Herculano um “grave conflito com a polícia”. Um agente policial sofreu “um golpe na cabeça e uma facada no braço”, tendo sido “morto com um tiro o pedreiro Manuel Outeiro e ferido com outro tiro o trolha João dos Reis”. “Ao que nos contam” – como se relata – tudo teria começado com alguns jovens, de 15 a 18 anos, que, na Rua Direita, gritavam “Viva a Monarquia. Abaixo a República”. Não obedeceram a um cabo da polícia que os ameaçou de prisão. A “algazarra” prosseguiu… O cabo pede a colaboração de dois polícias. O encontro entre os desordeiros e as autoridades deu-se na “junção da calçada do rio com a Rua Alexandre Herculano”. Um dos jovens foi preso, enquanto os outros se evadiram. Juntam-se populares que querem “tirar o preso” à autoridade, acabando por “desarmá-la”, provocando-lhe “ferimentos”. “Vendo-se ferido, um dos guardas desfechou o revólver caindo morto o infeliz Manuel Outeiro, com o coração atravessado por uma bala”. Cresce a “indignação popular”, e o polícia atinge um outro cidadão, cujo “estado é grave”.
O alvoroço leva ao local João José Alves, elemento da redação do jornal e vereador. O povo não deixa remover o cadáver. O Governador Civil, informado do que se passa, dirige se com amigos “para o local do conflito, fazendo ver ao povo que seria punido quem tivesse originado a desordem, quer fosse a polícia, quer fossem os populares”.
O morto é levado e o Governador acompanha-o. Certo é que tudo começou com a prisão de um dos jovens que, nos primeiros dias de 1911, davam “morras” à República. Simples irreverência juvenil, ou mais do que isso? Acontecimento isolado, com pouco significado, ou episódio que indicia a existência de descontentamentos em relação ao novo poder, a que estes jovens dão voz?
A reação popular é difícil de avaliar: traduz apenas um gesto de solidariedade para com o preso, ou tem um significado social e político?
É incontestável que as ocorrências merecem a classificação de “desordem grave” – assim são percecionadas –, que há desobediência à autoridade, que há desacatos e que há vítimas. Tinha-se perturbado a ordem, mas, sobretudo, tinha-se invetivado a República.
As armas são de fogo, mas tudo o mais – cenário, ambiência, intervenientes e personagens, com as suas movimentações, comportamentos e interações – parece saído, em boa medida, de algumas páginas de Fernão Lopes. Há algumas coincidências e semelhanças: ajuntamentos, tumultos, solidariedades, cumplicidades; a presença da suprema autoridade, que rapidamente aparece, que dialoga com os populares e que tem uma ação pacificadora. Falta, porventura, o talento narrativo do cronista.
Por se recear a ocorrência de mais alterações da ordem, e com o intuito de prevenir males maiores, as autoridades adotam soluções que se querem persuasivas e dissuasoras: “durante a noite, a polícia da Cidade” passa a ser feita pela força militar de Infantaria n.º 10, “em patrulhas”. Como acentua o repórter, “o sossego tem sido completo”. Reina novamente a ordem…
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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