O pai da minha tia, o Senhor Serafim tinha estado em França onde passou as passas do Diabo, também acendrado leitor de Victor Hugo, bom jogador de sueca e melhor conversador. Eu ia fazer oito anos, as férias grandes eram grandes, visitava a torto e a direito a casa da Senhora Maria das Neves, mãe da minha bonita tia, ela dava-me fatias de centeio barradas de açúcar escuro, a vida corria-me bem. Os dias eram curtos de tardes longas.
A solidão atacava os entrevados, acima de tudo os velhos sem forças, improdutivos segundo os padrões rurais. O Dr. Borges e o Dr. “Lixa” esforçavam-se de dia e de noite em minorar o sofrimento dos doentes. Antes ficou célebre o fafense Dr. Leite pelos mesmos motivos.
Ora, entre a minha casa e a da «tia» Neves vivia o Senhor «Tio» Manuel (Manelzimnho), detentor longas barbas patriarcais pintalgadas de nicotina, avançada idade, e com um vassouro de giestas na mão direita. Na Igreja ouvia- -se a sua voz a orar no decurso da missa rezada pelo Padre Aurélio Vaz, antigo combatente durante a I Guerra Mundial.
Os seus parentes mais chegados, o Senhor Amadeu e a Senhora Engrácia alimentavam-no, penso que lhe cultivavam os bocados, e prestavam-lhe a assistência possível.
O referido Patriarca tinha o seu Outono confinado a um talhoco e outro assento cortado de um tronco de árvore colocado no cabanal defronte da sua casa chapeada com folhas de flandres. Na galeria agrupava centenas de caixas de fósforos, vazias, de cem amorfos, cujos rótulos coloridos, de letras sensuais eu cobiçava. Debalde, o dono desconfiava dos meus olhares e estava atento aos meus movimentos de mãos. Aquele património acabou numa das montrueiras existentes na aldeia, ainda hoje lastimo o insucesso nas tentativas de conseguir senão todas, pelo menos algumas dessas caixas, anos mais tarde.
Ora, o antigo negociante de cereais e castanha, andarilho a cavalo de feira em feira, das mesmas falava em termos cronológicos, de mês a mês, para quem queria ouvir, apresentava o saldo diário dos seus esforços de caçador de insectos ao principiar o quente lusco-fusco, não sem antes proclamar em tom acima do habitual: hoje foi um dia nada. Dias de nada? Ante a interrogação, respondia de imediato levantando o vassouro: apanhei tantas avésperas (vespas), tantas varejeiras, tantas moscas: Pousava o fiel vassouro e repetia, «dia de nada!».
Agora, nos prelúdios da epidemia (António Costa dixit), encerrado em casa, como um notável pensador português repete aos amigos acerca da quarentena «sinto-me preso em casa sem pulseira electrónica», penso no ancião de Lagarelhos, forçado a vassourar as muitas moscas provenientes da sujidade de todos os animais incluindo os humanos, resignado, à espera da senhora da Gadanha, confessava o óbvio – dias de nada –, de mansa paciência e sem receio da Megera.
Estamos em quarentena, as televisões massacram-nos, conseguem ser mais incomodativas do que a Mosca varejeira inserida num poema de Alexandre O’Neill. O poeta referia uma escritora portuguesa preponderante em círculos da «inteligência» ortodoxa portuguesa. Tento resistir aos efeitos da camisa-de-forças através da leitura, a disposição esvai-se, ao modo de lenitivo agarro-me ao exemplo de figuras de todos os ramos da ciência, da literatura, da política objecto da nossa admiração por terem resistido a cativeiros, exílios, deportações, estadas e travessias no e do deserto, no entanto, o arrimo é de curta duração. Que fazer? Lenine escreveu e levou à prática a doutrina defendida num livro com esse título. O sanguinário Vladimir teve um início, um meio e um fim. Nós sabemos como começou a peste dos dias de agora, não sabemos quando e o fim da mortífera infecção. Vamos vendo imagens da desgraça global pese o destrambelho de líderes políticos, vamos engrolando imprecações desabafantes, um ou outro inconformista conforma-se e murmura, pode tocar a todos, ricos e pobres, banqueiros poderosos (António Vieira Monteiro) e humildes lavradores da Arada. Façamos como Jó!
Armando Fernandes
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