O mundo e as suas coisas é que parece que andaram por aí adiante vá lá saber-se em direção aonde. Mas não. No fundo no fundo, naquilo que é essencial está tudo mais ou menos na mesma.
O mais importante mantém-se. Alguns hábitos, as tradições e as emoções continuam a fazer-nos diferentes. Continuamos a ter coisas arreigadas cá dentro da alma, ainda que ela por vezes se caie de negro. Mas o que vale é que na maior parte das vezes anda solta e airosa.
Mas volvendo ao que ia a dizer. Naquele tempo por toda a região em redor de Tarouca, havia o costume de não se faltar à romaria de Santa Helena da Cruz, que acomodada na sua capela no alto da serra a que deu nome por vontade dos homens, parecia esperar por cada segundo domingo do mês de julho, como quem espera pelos seus que andam longe.
Se não esperava, pelo menos assim o parecia. Fosse como fosse, homem ou mulher, rapaz ou rapariga das terras em volta, mal se adivinhava o verão sentia crescer-se-lhe uma ânsia danada. A jornada a Santa Helena sempre era um dia diferente e mais farto, pois isso de ser só mourejar era para os condenados.
Podem vossemecês nem ir deitar fé naquilo que vou narrar, mas juro pela luz dos meus olhos que sucedeu mesmo. Ninguém me disse. Eu sei porque presenciei sem saber o perigo que foi e a desgraça que podiam ter sucedido.
Naquele tempo, como já disse, as gentes das terras em volta do rio Varosa e de Tarouca, tinham como costume a jornada à festa de Santa Helena. Tirante uma vez ou outra, sair-se era para esta romaria, para a da Senhora dos Remédios e para a da Senhora da Lapa. Claro que ir à feira à vila também o era, mas nisso era mais uma necessidade que motivo de festa, apesar de também dar para espairecer.
Mas indo ao ponto. A viagem começava na aldeia que nesse dia se deixava para trás num alargar de mundo que parecia não acabar. Quando se chegava lá ao cimo da serra é que se podia ver a medida do longe. Alugava-se uma carreira, um autocarro como hoje se diz, e ala que se faz tarde. No caso dos meus conterrâneos, vinha-se a Armamar, depois Travanca, Santa Cruz, Salzedas, Ucanha e Tarouca. Curva para aqui, curva para ali, sobe e desce, e chegava-se ao início da Serra de Santa Helena.
Daí a carreira não passava porque a estrada em terra era mais um carreiro que uma estrada de jeito. Como a pé até à capela era um esticão de romper sola de sapatos, o resto do caminho era feito em camionetas de caixa aberta com os passageiros sentados em improvisados bancos de pau, ou em pé os que tinham onde se agarrar. Nem sei como nunca se esbandalharam no chão.
Quer dizer, por acaso houve uma vez que foi por milagre, e é isso que vou contar se tiverem um cibinho de paciência para mim. A camioneta em causa era do Jeremias de Queimada, e diferençava-se das outras por uma coisa muito simples, mas muito importante ao ponto de ter ajudado a evitar um desastre se fizermos fé no que ficou assente.
Por cima do vidro da frente, tinha escrito em letras bem à vista: Jeremias da Fonseca. Deus te guie. E guiou. Se não já vão ver. Cada qual acredita no que quer como sempre desde que o mundo é mundo, mas afianço que todos ali naquela hora foi nisso que acreditaram.
Dita a missa, feitas as rezas, vista a procissão e comidos os farnéis que eram fartos em comida e em bebida, havia que marinhar de volta a casa. Cheia a camioneta, fechados os taipais, ronco daqui ronco dali, começava a descida com pena de quase todos e com as risadas de muitos como é próprio de final de festa.
Aconteceu que a páginas tantas, a camioneta do Jeremias mais parecida mula picada pelas abelhas ou cavalo sujeito a esporas na barriga. Desabrida parecia que levava o diabo com ela. Ninguém falou, mas o espanto e a inquietação começaram a desenhar-se nas caras.
Nisto, num repente serenou. Amainou a velocidade. Foi indo mais devagar, mais devagar, até que embateu numa árvore ao de levezinho. Abanou, mas não partiu. A camioneta parou e o povo saltou cá para fora, para o chão onde alguns se estatelaram. Estava tudo meio zonzo.
Na cabine o Jeremias com a cabeça tombada sobre o guiador, parecia quase que nem estava ali. A cara de tão branca mais parecia de cera. Alguns furiosos abriam a porá num rompante, mas mediante a visão do condutor, estacaram, e deixaram que ele se pusesse em si.
O homem foi recuperando as cores. Ergeu a cabeça, olhou em redor, e desceu da camioneta ainda meio cambaleante. Depois serenou, recuperou quando o espírito se lhe regressou para o interior. Sabia que tinha de dar uma explicação aos passageiros, e deu-a.
Segundo narrou, até ao meio da descida estava tudo bem. Depois, num repente, apercebeu-se que a maquineta estava sem travões e começava a ganhar velocidade com o risco de galgar por aí abaixo sem controle até ir às catrâmbias pela ribanceira, ou de se esbarrar contra um muro causando uma tragédia.
Chamou-se a Deus. Disse. Lembrou-Lhe que tinha escrito na frente da carrinha “Jeremias da Fonseca. Deus te Guie” e Pediu-Lhe que fosse Ele a guiar a camioneta por ali abaixo, antes que fosse tudo para o catano. Prometeu que se houvesse salvação, enquanto pudesse, acartaria de graça toda gente serra acima em cada segundo Domingo de Julho. Sentiu que foi ouvido e largou os comandos da máquina que veio ao deus-dará até parar.
Todos se benzeram e ajoelharam agradecendo o milagre. Não se sabe se o houve. No entanto o certo é que ninguém se magoou. Nem um simples arranhão. Não ganharam para o susto, mas isso nem aleija nem mata. Como ainda havia restos das merendas, tornou a haver festa.
O certo é que durante anos e anos, o Jeremias prestou serviço de transporte serra acima e serra abaixo para a festa de Santa Helena. A camioneta foi sempre a mesma, ora ronceira, ora ligeira, mas sempre reluzente. Se tivesse alma, até se diria que mostrava contentamento na missão.
Diz quem ainda se lembra, que ela apitava, apitava. Mas o Jeremias jurava que isso era sem ele carregar no apito. Será que o dianho da camioneta ganhou poder de sentir?
Não sei. Ele vê-se por aí tanta coisa.
Manuel Igreja
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