O homem vinha daqueles lados do Cais do Sodré. Parecia bastante fora de si; cambaleava por excesso de cansaço; muito pálido, com o fato em desalinho, o chapéu de palha, amolgado, deitado para a nuca. Parava repentinamente, de quando em quando, como em frente de um obstáculo invencível, e limpava com as costas da mão as bagas de suor escorrendo-lhe sobre a testa das melenas desgrenhadas, que então sacudia para trás com um gesto violento da cabeça. Seguia aos SS, maquinalmente, ao acaso, para onde as pernas o levavam. As abas do casaco desabotoado, onde batia com os braços a dar, a dar, faziam-no parecer na sombra, quando passava junto dos candeeiros, um grande morcego ferido a querer esvoaçar. Vinha de dentes ferrados, olhar fixo, olheiras pisadas.
Já se ouviam os barulhos antipáticos do amanhecer na cidade. Recolhiam as carroças dos varredores, e na praça D. Luís dois empregados, mudos e sonolentos, limpavam as sarjetas do passeio. O homem dos candeeiros vinha-se aproximando, fazendo tinir os vidros, ao caírem depois da luz apagada. Para aqueles lados apenas ficou luzindo uma lanterna moribunda numa barca de banhos. Um homem em mangas de camisa, que dormira toda a noite em cima dum banco, espreguiçou-se muito, dobrou os joelhos, tornou a esticar as pernas e depois, rodando sobre o centro, sentou-se de repente, tirou o barrete, coçou desesperada- mente a cabeça. Uns operários, com o fardel em lenço de chita na ponteira do guarda-chuva, passaram apressados. Por todos os lados, na cidade alta, em roda da praça e nas capoeiras dos terceiros andares, estrugiam cantos de galos, roucos e solenes, conquistadores e desafinados.
O homem, que até então seguira pelo meio da rua, aproximou-se do passeio. O outro acabara de coçar-se e, como a manhã estava úmida, enterrara o barrete até ás orelhas e, de braços cruzados, muito chegados ao peito, fazia, para esquecer, o gesto de quem embala uma criança. Levantou-se depois e foi para o cais gritar muito prolongadamente: — “O compadre...! O compadre...! O compadre... !“ Lá de longe, duma fragata, responderam-lhe: — “Eh! ti’Zé... !“ O homem dos candeeiros passou, e, como o ti’Zé se levantara, o outro sentou-se sem dar por isso, no mesmo banco, perto donde o grilo continuava distraído: — gri, gri, gri, gri...
Parecia muito aflito, em grande desespero, relanceando em redor os olhos, sem fixar a vista em nenhum objeto, como se apenas pudesse olhar para a sua desgraça. Tirou o chapéu, fincou os cotovelos nos joelhos, e com as maçãs das faces sobre os punhos cerrados, arrepelou as barbas para cima dos olhos. Olhando tristemente para o chão, todo curvado, vinham-lhe estremecimentos nervosos, que lhe percorriam rápidos o corpo, fazendo-o levantar as pernas, que recaíam com força; tinha no rosto a máscara pálida e feia da tristeza sem consolo; nas olheiras carregadas e nos cantos dos lábios uma amargura dolorosa cavara as rugas muito fundas. Respirava alto, murmurando exclamações irritadas duma angústia sem remédio, frases sem nexo, cortadas por soluços.
Os fios do telégrafo cantavam sem pausa uma doida melopéia triste, enquanto, ao longe, já se ouvia um murmúrio indefinido de vida a começar. Algumas chaminés principiaram a deitar baforadas negras de fumo, que, não podendo elevar-se na atmosfera úmida, alastravam-se sobre o Tejo. E os sinais das embarcações e o reflexo deles numa grande faixa tremeluzente faziam como que um bordado a ouro no grande véu esfarrapado de gaze lutuoso.
O horizonte branquejava.
Ouviram-se nos navios os tiros frouxos da alvorada e de longe chegaram moribundos uns toques de cometa. Junto ao cais passeava, com modos de avejão na densa neblina, um guarda da alfândega friorento. E o grilo sob as pedras continuava distraído: — gri, gri, gri, gri...
O homem ergueu-se num ímpeto, como quem toma uma decisão inabalável contra argumentos. Cambaleando, arrastando-se, aproximou-se do cais. Pequeninas vagas marulhavam docemente e lá do fundo subia um frio úmido, desagradável, frio de morte. Então pôs-se a fitar os olhos nas águas e, como se elas lhe cantassem uma canção muito meiga, como se ouvisse a voz da melhor amiga, sorriu-lhes desvanecido, mais tranqüilo, já quase convalescente da longa noite de exaspero. Duas grossas lágrimas correram-lhe pelas faces macilentas, o peito opresso ergueu-se alto, e ele respirou fundamente, passou as mãos pela cara. Pouco depois, preso de pavor medonho, abalou, sem querer olhar para trás, com gestos doidos, olhos esbugalhados, chapéu na mo, melenas eriçadas.
E, passados instantes, estava outra vez junto do cais, parado, meditando, com os olhos fitos na água.
O Tejo acordara. Do lado do Barreiro surgiam umas velazitas brancas e rio abaixo singrava, orgulhosa, uma grande fragata de vela avermelhada, com uma âncora pintada de negro no pano, projetando na água imóvel como grande placa oleosa, uma imagem tremida, enorme, cortada por uma linha de espuma. Em terra começavam a definir-se certos sussurros. Rangiam portas de tabernas, passavam peixeiras correndo, um guarda-noturno batia fortemente á porta dum armazém, ouviu-se um despertador no interior duma casa. O céu, muito branco havia pouco, tornara-se cor de laranja. A neblina erguera-se e o fumo das chaminés subia a prumo, alargando-se no alto, como um penacho de porta machado.
Então o homem decidiu-se e, de braços para a frente, atirou-se ao rio - Chap! - O benemérito guarda da alfândega, o 72 por sinal, atirou-se atrás do homem.
E, quando seguia para a esquadra, acompanhado pelo guarda que gesticulava muito, entre dois soldados da guarda municipal, encharcado, sujo, envergonhado, arrependido, tranzido de frio, o grilo continuava distraído sob as pedras: — gri, gri, gri, gri...
***
Ora isto não quer dizer nada; mas então por que foi que só nessa ocasião é qué ele embirrou com o grilo que fazia gri, gri?
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900
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