Uma das escolas do Conde de Ferreira, idêntica à que foi construída em Bragança e entretanto demolida |
Os terrenos da cerca e edifícios de Santa Clara continuaram a ser encarados como a panaceia que permitiria a concretização de algumas das grandes aspirações da burguesia bragançana. Assim aconteceu em 28 de outubro de 1910, quando se registaram tentativas, que depois esmoreceram, de aí se instalar o Liceu. Mas a aptidão do sítio já tinha levado a Câmara Municipal, em fevereiro de 1903, a oferecer terreno ao Governo para se edificar o edifício das escolas primárias Adães Bermudes, inicialmente para o sexo feminino, dentro do perímetro que antes se tinha destinado às funções mercantis. A oferta foi até noticiada na Gazeta Bragançana de 15 de fevereiro de 1903, nos termos que se seguem: “Na sua sessão de quinta-feira última, a Câmara Municipal deste Concelho resolveu oferecer ao Governo o terreno da iniciada praça-mercado desta Cidade, a fim de ser destinado à construção de um edifício para as escolas primárias do sexo feminino das freguesias da Sé de Santa Maria”.
Melhor compreenderemos o alcance da construção de novas escolas de primeiro grau se tivermos em conta que ao mau estado das existentes nas freguesias da Sé e de Santa Maria se acrescentavam algumas carências, como, por exemplo, a inexistência de mobiliário. Mesmo assim, convém retermos que a escola da freguesia da Uma das Sé era uma casa do conde de Ferreira, riscada de acordo com uma tipologia específica onde se evidenciava um pequeno frontão no coroamento da frontaria principal, a qual, estando implantada num sítio com grandes indefinições urbanísticas, daria, em 1869, o nome a um arruamento que, após a chegada do comboio, foi absorvido pela estruturação da Avenida João da Cruz – então, já com o século XX entrado, houve quem, olhando à proximidade da estação do caminho-de-ferro, pedisse à Câmara a cedência da escola para se arrendar, por quartos, a hóspedes.
Com efeito, entre as admiráveis disposições do legado pessoal de Joaquim Ferreira dos Santos, o conde de Ferreira, a favor de asilos, hospitais e misericórdias como as do Porto e do Rio de Janeiro, destacava-se a cláusula que reservava 144 000$000 réis para a construção de cento e vinte casas exclusivamente destinadas à instrução primária de ambos os sexos, “nas terras que forem cabeças de concelho, sendo todas por uma mesma planta e com acomodação para vivenda do professor, não excedendo o custo de cada casa e mobília a quantia de 1 200$000 réis”.
Em 12 de maio de 1866, a Câmara de Bragança tomou conhecimento do conteúdo de um ofício emanado do Governo Civil, em que se comunicava a possibilidade de Bragança se candidatar à fundação de uma escola com base na vontade do benfeitor portuense. Logo a vereação se dispôs a aprofundar os termos das possibilidades que se lhe ofereciam, mediante o estabelecimento de contactos com os testamenteiros de Joaquim Ferreira dos Santos, deliberando, em 5 de junho do mesmo ano, formular o pedido da escola, “oferecendo para ela terreno apropriado e a competente mobília”.
Esta matéria voltou à mesa, e foi discutida novamente nas sessões de 4 e 18 de outubro, agora já na posse de uma cópia da planta. Calculadas as despesas e outros encargos, “tudo conforme as Instruções da Direção Geral de Instrução Pública, deliberou que se comprometia ao levantamento da obra de que se trata”. A partir deste momento, o tema da Escola do Conde de Ferreira foi objeto de análise e de discussão em quase todas as sessões.
Desde logo, porque o sítio da sua implantação dividia os espíritos e a maioria mostrou preferência pela implantação na vizinhança da Praça da Sé. Por isso se pediu aos órgãos da Diocese a cedência de um lote nos terrenos que pertenciam ao Seminário de S. José. A pretensão viu-se denegada pelo prelado, em carta escrita em 12 de dezembro.
Ou seja, durante meio ano, a Câmara revelou-se incapaz de concretizar em que sítio a escola iria ser edificada.
Talvez por causa destas hesitações, os testamenteiros enviaram ao Município uma circular que devia ser integralmente copiada para o livro de atas e que serviria “de título como se fora escritura pública”. Neste documento, definiam-se, ponto por ponto, todas as condições que deviam ser observadas na construção da “casa para a escola e vivenda do professor”, respeitando as indicações da planta e adquirindo a mobília indispensável, “mesa e cadeira para o professor, bancos e mesas, munidas de tinteiros para quarenta e oito alunos, pelo menos”. O legado de 1 200$000 réis seria dividido em quatro pagamentos, satisfeitos de acordo com o faseamento evolutivo da obra, que devia ser executada no período de um ano.
A Câmara, porém, tinha que suportar uma parte das despesas. Para isso, podia lançar mão de quatro contos de réis, uma receita que se podia realizar através da alienação de alguns “terrenos de logradouro comum”. Deste fundo sairia dinheiro para se pagarem as letras que restavam das casas que a Câmara tinha comprado para se instalar na Rua Direita e igualmente para instalar o Tribunal das Audiências. Como sobravam dois contos de réis, seria com essa quantia que “faria face à construção da casa para a escola”.
Em finais de janeiro de 1867, os testamenteiros comunicaram que tudo estava disposto para se poder receber a primeira prestação do legado. A obra de cantaria e pedraria foi arrematada por Francisco Lourenço, que se associou com António Joaquim Henriques. Mais tarde, talvez quando verificaram que estavam a ter prejuízo, os sócios desentenderam-se e António Joaquim Henriques, em dezembro de 1867, acusou Francisco Lourenço de ter baixado o seu lanço “ao diminuto preço de quinhentos e dezassete mil réis”. Outra acusação que se fazia a este mestre canteiro era a de ter desamparado a empreitada e de ter abandonado o sócio, com poucos recursos.
Por isso, sem meios para pagar aos operários e fornecedores de materiais, pediu à Câmara um adiantamento.
Não sabemos bem como estas dificuldades se ultrapassaram de imediato, mas, em meados de janeiro de 1868, António Martins de Azevedo, negociante da praça do Porto, foi constituído como procurador da edilidade bragançana, para poder receber os 300 000 réis que correspondiam à terceira prestação. E, em abril, nomeou-se António José Afonso, oficial da Administração do Concelho, para as funções de inspetor da obra “na parte dos operários por conta da Câmara”.
Apesar de tudo, a obra avançou a bom ritmo, como se conclui de algumas queixas, apresentadas nos primeiros dias de junho, relativas a pretensos incumprimentos do caderno de encargos por parte de alguns práticos. Assim, António José Vilanova, arrematante do reboco, “deixou de cumprir a condição de colocar sobre os espigões que sustentam a cornija um arco de ferro em toda a extensão da mesma“, e o “arrematante do campanário … deixou de modelar algumas cantarias, conforme se mostrava no desenho e empregou na construção daquela obra argamassa”. Pequenos desvios que não impediram que, em 4 de setembro de 1868, a Câmara estivesse em condições de receber a quarta e última prestação do legado do Conde de Ferreira, o que significava a conclusão da escola. Elemento marcante numa área aberta e muito pouco estruturada, o seu impulso permitiu enriquecer a toponímia urbana local com a designação da Rua do Conde de Ferreira, uma artéria que iria ser calcetada a partir de março de 1882.
Se valorizarmos uma informação produzida em fevereiro de 1862 a respeito das escolas primárias da Cidade, que se pronunciava sobre a sua localização em ruas imundas e instaladas em casas pouco arejadas, escuras e não adequadas aos rigores do clima, compreendemos o avanço que a Escola do Conde de Ferreira representou para Bragança e para a generalidade das cidades e vilas de Portugal. Num País em que à fragilidade da rede de escolas se somava a irregularidade do seu funcionamento, ganhou importância a casa destinada à acomodação dos mestres e respetiva família, pois era uma forma de ultrapassar os problemas decorrentes das colocações. Por isso, não era invulgar que estas escolas tivessem nas suas imediações uma horta destinada a ajudar a subsistência dos professores.
Apesar das inúmeras dificuldades sentidas num País atingido pelo sentimento de decadência, a tipologia Conde de Ferreira deve ter sido o primeiro caso de normalização arquitetónica de uma rede de escolas não tuteladas pela Igreja. Por outro lado, a generosidade do conde de Ferreira não podia deixar de ter eco nas medidas governamentais de alargamento do ensino básico, em que se destacou o ministro do Reino Martens Ferrão – o mesmo que, por ser irmão do bispo de Bragança e Miranda, teve um papel importante nas diligências para a edificação da catedral que tinha sido projetada pelo arquiteto Nepomuceno.
A não concretização deste desiderato deixou o campo livre para que outro projeto de novas escolas chegasse a ver a luz do dia na Cidade de Bragança. Interessa, por isso, dar atenção a uma notícia publicada no jornal O Século, em 11 de janeiro de 1898, anunciando a apresentação no Ministério das Obras Públicas do programa do concurso para os projetos de edifícios de escolas do ensino elementar. Elaborado pela Associação dos Engenheiros Civis Portugueses, com base num relatório de 1897, “Inspeção Extraordinária às Escolas”, o programa apontava para edifícios que, em traços gerais, consagravam a existência de uma ou mais salas de aulas, com lotação para cinquenta alunos, separados por género, pátio coberto, casa para o professor, e utilização na sua construção de materiais existentes na zona.
Escolas Adães Bermudes (1864-1948) |
Foi no âmbito deste concurso de projetos que surgiram as escolas propostas por Arnaldo Redondo Adães Bermudes (1864-1948). Outras influências se patenteiam, nomeadamente as que resultam do desenvolvimento do projeto de escolas Conde de Ferreira e as que derivam de alguma arquitetura escolar francesa. Embora tivesse sido o único concorrente ao concurso, o mérito das propostas de Adães Bermudes foi reconhecido com a concessão da Medalha de Ouro da Secção de Arquitetura Escolar na Exposição Universal de Paris de 1900.
A escola da tipologia Adães Bermudes de Bragança foi derrubada, não há muito tempo, depois de ter sido adaptada e integrada no antigo hospital desta Cidade. No entanto, algumas imagens conhecidas perpetuam a presença de dois corpos de salas de aula, para rapazes e para raparigas, unidos por um volume central destinado a habitação dos professores.
Com dois pisos e duas entradas, este volume agregava alguma da simbologia do poder, como a sua elevação em altura e a presença das armas reais que se evidenciavam do tímpano, que era bordejado por um frontão curvo.
As suas aberturas de iluminação eram mais altas do que largas e, a partir do terço superior, sublinhadas por molduras exteriores. O mesmo programa seria praticado no trio de janelas de pinázios que se rasgaram na face principal das salas escolares, embora agora os lintéis tenham sido encurvados e os lumes consideravelmente alargados para possibilitarem a entrada de maiores quantidades de luz. Nas extremidades das salas e do edifício solenizavam-se as entradas, com simulação de prospetos independentes que se remataram com pequenos telhados de feição orientalizante, que abrigavam a garrida. A presença destas sonoras peças, que de forma tão autoritária marcavam o quotidiano escolar, deram ensejo a que estas construções fossem designadas como escolas dos sininhos.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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