Pelo que oiço dizer, a “Tieta” está por um fio. E — ainda pelo que me é dado perceber, em conversas ocasionalmente ouvidas aqui e ali — muita gente vai ficar orfã da telenovela. Gente que acha graça àquele amontoado de peripécias e modismos. Gente a quem é indiferente se aquilo é arte ou não, e não busca na telenovela — qualquer telenovela — senão um pouco de ópio para adormecer o ‘stress’ e o cansaço de mais um dia de sonhos adiados passado na fábrica, na loja, no banco, na repartição ou em casa, de roda das panelas. Oh, eu compreendo essa gente e respeito-lhe os gostos, primários mas tão respeitáveis como os secundários. Mas tenho direito à minha própria opinião. Que é como deixo dito de seguida.
A mim, a “Tieta” não me deixa saudades, como de resto nenhuma outra telenovela jamais deixou. Isto de telenovelas, quanto a mim, destinam-se exactamente ao mesmo que os copos de papel: a serem utilizadas num momento e deitadas fora no momento seguinte. São um produto típico da nossa sociedade de consumo e desperdício. Um copo de cristal ou, vá lá, de vidro, serve-se a gente dele e devolve-o ao guarda-louça, porque ainda vai ser útil uma e outra vez, enquanto não se partir. Do mesmo modo, um bom filme, onde esteja presente a arte sólida e intemporal, revê-se mais tarde com prazer e proveito. Mas, assim como ninguém vai retirar do caixote do lixo um copo de papel já usado para beber por ele segunda vez, ninguém se dá ao trabalho de ir aos arquivos da televisão retirar uma velha telenovela e pô-la de novo em exibição. É da própria natureza das telenovelas envelhecerem irremediavelmente, serem incapazes de, a um segundo visionamento, despertar o interesse que porventura tenham despertado da primeira vez. Ainda há dias passou — é só um exemplo — o filme “Doutor Jivago” na RTP. Sei de pessoas que o reviram então de bom grado pela terceira e quarta vez. Que telenovela aguentaria uma tal prova de fogo?
Na “Tieta”, que aliás vejo muito irregularmente, e só quando a preguiça me impede de me levantar e sair da sala quando ela começa a correr no televisor, deploro os estafados truques narrativos, tão estafados que deixaram há muito de ser convincentes e não fazem senão repetir grotescamente esquemas de duvidosa eficácia. Mas deploro muito mais a glorificação que esta telenovela é ou pretende ser do sexo gratuito, canino, totalmente desenquadrado de qualquer contexto de amor. Tieta, a personagem central, é como que uma papisa da livre fornicação, que parece não ter outro papel na economia da história senão incitar ao deboche, e, como boa mestra, exemplificá-lo ela própria.
Na boca de Tieta tudo é apologia da fornicação, tudo são cabritas e cabritos, bodes e até cabronas. «Vai procurar teu bode», diz ela a Leonora — e não sei de melhor exemplo de como escamotear a componente espiritual do amor e valorizar a componente física, mecânica, animalesca, sem ter por trás algo que lhe dê sentido e transcendência. E o júbilo com que ela fala da inauguração de Carmosina? ‘Inauguração’ é, neste contexto, uma palavra abominável, porque, além do mais, trai uma visão machista do amor e do sexo. E, se o machismo é feio num homem, é mil vezes mais feio numa mulher, principalmente naquela que, como Tieta, se pretende desempoeirada e libertadora, e afinal reduz Carmosina ao papel passivo de coisa a inaugurar.
Ao mau-senso de tudo isto junta-se o mau-gosto explícito e reiterado de inúmeras referências, como as fixações sexuais de Timóteo d'Alembert, o priapismo de Osnar, o conteúdo misterioso — gato escondido com rabo de fora — da caixa de Perpétua, as surtidas ninfomaníaco-sobrenaturais duma inverosímil Mulher de Branco.
É caso para dizer: um pouco de normalidade, por favor!
Sendo esta a minha opinião sobre a “Tieta”, é fácil de ver que a própria letra da canção de apresentação da telenovela me causa engulhos e protestos. De facto, diz o generoso cantante das graças de Tieta, na sua voz de cana rachada, que «na boca de Tieta mora e come um passarinho». Um passarinho?!... Tem a certeza de que é mesmo um passarinho que mora naquela boca desbocada e rouca? Patativa, araponga, sabiá? Não será antes um urubu? Um carcará?
A mim, a “Tieta” não me deixa saudades, como de resto nenhuma outra telenovela jamais deixou. Isto de telenovelas, quanto a mim, destinam-se exactamente ao mesmo que os copos de papel: a serem utilizadas num momento e deitadas fora no momento seguinte. São um produto típico da nossa sociedade de consumo e desperdício. Um copo de cristal ou, vá lá, de vidro, serve-se a gente dele e devolve-o ao guarda-louça, porque ainda vai ser útil uma e outra vez, enquanto não se partir. Do mesmo modo, um bom filme, onde esteja presente a arte sólida e intemporal, revê-se mais tarde com prazer e proveito. Mas, assim como ninguém vai retirar do caixote do lixo um copo de papel já usado para beber por ele segunda vez, ninguém se dá ao trabalho de ir aos arquivos da televisão retirar uma velha telenovela e pô-la de novo em exibição. É da própria natureza das telenovelas envelhecerem irremediavelmente, serem incapazes de, a um segundo visionamento, despertar o interesse que porventura tenham despertado da primeira vez. Ainda há dias passou — é só um exemplo — o filme “Doutor Jivago” na RTP. Sei de pessoas que o reviram então de bom grado pela terceira e quarta vez. Que telenovela aguentaria uma tal prova de fogo?
Na “Tieta”, que aliás vejo muito irregularmente, e só quando a preguiça me impede de me levantar e sair da sala quando ela começa a correr no televisor, deploro os estafados truques narrativos, tão estafados que deixaram há muito de ser convincentes e não fazem senão repetir grotescamente esquemas de duvidosa eficácia. Mas deploro muito mais a glorificação que esta telenovela é ou pretende ser do sexo gratuito, canino, totalmente desenquadrado de qualquer contexto de amor. Tieta, a personagem central, é como que uma papisa da livre fornicação, que parece não ter outro papel na economia da história senão incitar ao deboche, e, como boa mestra, exemplificá-lo ela própria.
Na boca de Tieta tudo é apologia da fornicação, tudo são cabritas e cabritos, bodes e até cabronas. «Vai procurar teu bode», diz ela a Leonora — e não sei de melhor exemplo de como escamotear a componente espiritual do amor e valorizar a componente física, mecânica, animalesca, sem ter por trás algo que lhe dê sentido e transcendência. E o júbilo com que ela fala da inauguração de Carmosina? ‘Inauguração’ é, neste contexto, uma palavra abominável, porque, além do mais, trai uma visão machista do amor e do sexo. E, se o machismo é feio num homem, é mil vezes mais feio numa mulher, principalmente naquela que, como Tieta, se pretende desempoeirada e libertadora, e afinal reduz Carmosina ao papel passivo de coisa a inaugurar.
Ao mau-senso de tudo isto junta-se o mau-gosto explícito e reiterado de inúmeras referências, como as fixações sexuais de Timóteo d'Alembert, o priapismo de Osnar, o conteúdo misterioso — gato escondido com rabo de fora — da caixa de Perpétua, as surtidas ninfomaníaco-sobrenaturais duma inverosímil Mulher de Branco.
É caso para dizer: um pouco de normalidade, por favor!
Sendo esta a minha opinião sobre a “Tieta”, é fácil de ver que a própria letra da canção de apresentação da telenovela me causa engulhos e protestos. De facto, diz o generoso cantante das graças de Tieta, na sua voz de cana rachada, que «na boca de Tieta mora e come um passarinho». Um passarinho?!... Tem a certeza de que é mesmo um passarinho que mora naquela boca desbocada e rouca? Patativa, araponga, sabiá? Não será antes um urubu? Um carcará?
(Repórter do Marão, 5 de Abril de 1991)
Apostila:
Confesso que me enganei quando afirmei que «ninguém se dá ao trabalho de ir aos arquivos da televisão retirar uma velha telenovela e pô-la de novo em exibição». Na verdade, temos assistido a isso. Mas a verdade é que a reposição de telenovelas não é justificada pela sua qualidade intrínseca, mas sim pela penúria orçamental que leva a RTP e outras estações a passar uma e outra vez alguns monos que tem por lá em arquivo. Parecendo que não, faz a sua diferença.
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