Outro pecadilho frequente é a hipocrisia, a que também é dado o nome menos rebarbativo de fingimento. Não é que o fingimento seja, em si mesmo, caso para risos; é, pelo contrário, motivo para censura. Mas o momento em que um fingidor deixa cair a máscara, esse sim, pode ser e é quase sempre hilariante. É o que acontece nesta conta intitulada “Morte pelada”, versão colhida por Alexandre Parafita, que a publicou em O Maravilhoso Popular, a páginas 162. Nela se mostra que, perante a iminência ou a simples ameaça da morte, não há fingimento que resista nem máscara que se aguente. Aí vai:
Conta-se em Argozelo, Vimioso, que havia um casal muito unido em que um estava sempre a dizer que gostava muito do outro e que não conseguiria viver sem ele. A mulher dizia:
− Homem, gosto tanto de ti que se a morte tivesse de levar um dos dois, mais queria que me levasse a mim e te deixasse ficar a ti.
Ao que o homem reagia:
− Ai, mulher, não digas isso! A levar um dos dois, então que me escolha a mim!
E de tanto falarem nisto, a dada altura puseram-se a imaginar como é que seria a morte.
− Eu ouvi dizer que vem na figura de morte pelada! − disse o homem.
− Então que venha − aceitou a mulher. − Desde que venha para me levar a mim e te deixe a ti...
O homem, para ver se era verdade o que a mulher dizia, resolveu um dia propor-lhe:
− Olha, mulher. Já que queres tanto ir na minha frente, vamos fazer assim: quando a morte vier, escondo-me atrás da albarda para que me não veja.
− Está bem − disse a mulher.
Então o marido foi arranjar uma galinha, depenou-a toda, e, por fim. lançou-a lá para casa. A galinha desatou a cacarejar e a correr desorientada de um lado para o outro. A mulher, quando a viu, ficou muito aflita e gritou:
− Ai morte pelada, morte pelada, olha que o meu homem está atrás da albarda!
O Abade de Baçal dá-nos conta de ter recolhido na povoação de Oleirinhos, Bragança, uma conta semelhante em vários pontos à que acabámos de escutar sobre uma mulher igualmente fingida e um homem céptico. Mas há também pontos divergentes, e um deles, o mais significativo, será a tareia com que o homem castiga a hipocrisia da mulher. A conta anterior é omissa quanto à reacção que o homem terá tido, mas na lógica destas narrativas em que a mulher é falsa ou desilude ou afronta de alguma maneira o marido, a tareia é o remate habitual.
Vale a pena cotejá-las.
Diz a lenda que uma mulher de Oleirinhos, concelho de Bragança, repetia muitas vezes ao marido a declaração da sua muita estima, protestando que não sobreviveria ao choque causado pela sua morte, caso ele fosse adiante. Quis o marido experimentar a sinceridade de tais afirmações e fingiu-se morto. Ela, acocuronhada na lareira, mantilha sobre a cabeça, comia muito satisfeita torresmos de presunto e escondia a sertã debaixo do escano quando alguém entrava a visitar o defunto. Entretanto, um gato que tinha, chamado ‘Mundo’, aproveitava o momento para comer também um torresmo, choramingando entretanto a viúva: ó Mundo, Mundo, como os vais levando um a um!, e também: tanto hei-de chorar, que estas peles hei-de secar, o que os vizinhos tomavam pela morte do marido, não sabendo que as peles eram as de uma borracha de vinho que ela ia bebendo para melhor saborear os torresmos. O suposto defunto deu pela conta de tudo, e ao ser conduzido no esquife para Meixedo, um quilómetro distante, onde os de Oleirinhos vão a enterrar, agarrou-se à pernada de um castanheiro, dos muitos que há à beira do caminho, e por uns quintais, escondidamente, voltou a casa, onde aplicou valente sova à consorte. Passados tempos morreu de verdade e a mulher choramingava: Ó irmãos da Misericórdia, Que meu marido levais, Retirai-o das paredes, Não fuja para os quintais. Retirai-o do castanho, Não faça como o outro ano.
Conta-se em Argozelo, Vimioso, que havia um casal muito unido em que um estava sempre a dizer que gostava muito do outro e que não conseguiria viver sem ele. A mulher dizia:
− Homem, gosto tanto de ti que se a morte tivesse de levar um dos dois, mais queria que me levasse a mim e te deixasse ficar a ti.
Ao que o homem reagia:
− Ai, mulher, não digas isso! A levar um dos dois, então que me escolha a mim!
E de tanto falarem nisto, a dada altura puseram-se a imaginar como é que seria a morte.
− Eu ouvi dizer que vem na figura de morte pelada! − disse o homem.
− Então que venha − aceitou a mulher. − Desde que venha para me levar a mim e te deixe a ti...
O homem, para ver se era verdade o que a mulher dizia, resolveu um dia propor-lhe:
− Olha, mulher. Já que queres tanto ir na minha frente, vamos fazer assim: quando a morte vier, escondo-me atrás da albarda para que me não veja.
− Está bem − disse a mulher.
Então o marido foi arranjar uma galinha, depenou-a toda, e, por fim. lançou-a lá para casa. A galinha desatou a cacarejar e a correr desorientada de um lado para o outro. A mulher, quando a viu, ficou muito aflita e gritou:
− Ai morte pelada, morte pelada, olha que o meu homem está atrás da albarda!
O Abade de Baçal dá-nos conta de ter recolhido na povoação de Oleirinhos, Bragança, uma conta semelhante em vários pontos à que acabámos de escutar sobre uma mulher igualmente fingida e um homem céptico. Mas há também pontos divergentes, e um deles, o mais significativo, será a tareia com que o homem castiga a hipocrisia da mulher. A conta anterior é omissa quanto à reacção que o homem terá tido, mas na lógica destas narrativas em que a mulher é falsa ou desilude ou afronta de alguma maneira o marido, a tareia é o remate habitual.
Vale a pena cotejá-las.
Diz a lenda que uma mulher de Oleirinhos, concelho de Bragança, repetia muitas vezes ao marido a declaração da sua muita estima, protestando que não sobreviveria ao choque causado pela sua morte, caso ele fosse adiante. Quis o marido experimentar a sinceridade de tais afirmações e fingiu-se morto. Ela, acocuronhada na lareira, mantilha sobre a cabeça, comia muito satisfeita torresmos de presunto e escondia a sertã debaixo do escano quando alguém entrava a visitar o defunto. Entretanto, um gato que tinha, chamado ‘Mundo’, aproveitava o momento para comer também um torresmo, choramingando entretanto a viúva: ó Mundo, Mundo, como os vais levando um a um!, e também: tanto hei-de chorar, que estas peles hei-de secar, o que os vizinhos tomavam pela morte do marido, não sabendo que as peles eram as de uma borracha de vinho que ela ia bebendo para melhor saborear os torresmos. O suposto defunto deu pela conta de tudo, e ao ser conduzido no esquife para Meixedo, um quilómetro distante, onde os de Oleirinhos vão a enterrar, agarrou-se à pernada de um castanheiro, dos muitos que há à beira do caminho, e por uns quintais, escondidamente, voltou a casa, onde aplicou valente sova à consorte. Passados tempos morreu de verdade e a mulher choramingava: Ó irmãos da Misericórdia, Que meu marido levais, Retirai-o das paredes, Não fuja para os quintais. Retirai-o do castanho, Não faça como o outro ano.
(Continua)
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