Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 10 de outubro de 2023

DE BURRA PRA BURRA

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Amílcar Loio era um homem franzino, alto, de rosto chupado e muito irrequieto. Gabava-se perante todos  e com alguma insistência de que nunca tinha sido enganado. Tinha-se por finório e com muita psícola. Tinha a nomeada de “ Tanã “, por ser meio aluado e algo parecido com “ uma mulher do soalheiro”.
“ A mim ninguém m´ingana! Só m´inganou uma bez a mnha mulher, cando casei co ela. Pensaba eu qu´era uma cousa e saiu-m´oitra bem pior “. Na taberna e no sóto, conferia sempre o troco e repetia: “ a mim ninguém m´ingana. Ou, ou...isso é qu´era bô!”.
 Ti Amílcar tinha uma burrica a quem chamava com muita proa de “ Rainha” e cismava que a burra  já era velha e que já não estava à altura das necessidades. Precisava de uma mais nova para a sementeira da primavera. Ideia contrária tinha a mulher: “ Ó home! Esta serbe-te munto bem. Tamãe pró que fazes, esta tchega e sobra. Bais agora gastar dinheiro que nos fai falta, numa oitra ainda pior do qu´esta, por i…”.
Que nada. Ti Amílcar era um forte exemplo da casmurrice dos Transmontanos. Era telhudo como não havia outro igual no Larinho. Eis que uma bela manhã de sol primaveril lá monta na Rainha e vai até Moncorvo, tentar vendar a burra na feira dos oito. Foi quase todo o caminho a pé, para não a  cansar e ficar assim com um ar mais fresco. Pôs-lhe a melhor albarda e a manta mais bonita, feita no tear da Tia Cardanha, no concelho, ao lado do Ti António Sendas e do Ti Abilho Ismael.
Lá foi até à corredoura e expôs a jerica no fundo, perto da capela de S. Sebastião, cuja festa se realiza em 20 de Janeiro.
Passados quarenta, cinquenta minutos, aparecem dois ciganos interessados em comprá-la.
- Bôs dias, amigo. Atão ´stá  a bander a burrica?
- ´Stou sim senhores.
- E q´anto é que  pede por ela?
- Dezoito notas – disse secamente.
- Dezoito? – disse um enquanto examinavam o animal.
- Olarilas. Nem menos um centabo.
- Ó meu rico Senhor! ´Stá a pedir desmasiado prá burrica que se bê. Quer oito notas por ela?
- Não senhor.Por isso,  bolta prá loje donde beio.
- Olhe que num há ninguém que le deia mais de dez. Si as quiser, passo-las já prás mãos – disse mostrando um manhuço de notas enroladas num cordel.
Ti Amílcar ficou carregado de dúvidas. Ao ver todo aquele dinheiro, disse convictamente:
- Por menos de quinze num bai.
- É munto. S´apanhar alguém que le deia dez, banda-a, que bai munto bem bendida. Bom, bamos dar uma bolta a ber o que encontremos. Inté mais logo, patrão.
- Inté – respondeu o Amílcar já meio arrependido.
“ Se calhar inzagerei e ´stou a pedir demais. Mas tamãe por dez, atcho qué pouco. Se cá boltarem, inda la bendo por doze.” – pensou.
De facto, nem duas horas tinham passado, aproximaram-se os dois.
- Atão, patrãozinho! Inda no a bandeu? – perguntou um em tom sarcástico.
- É porqu´inda num quijo. Indá gorea mesmo ´stibo aqui um cabalheiro que me mandou doze notas - mentiu.
- E no a bandeu? Pois fizo munto mal. Num me leb´a mal, mas a burrica num nas bale. Tibéssi-a bandido e tinha feito um grande negócio.
- Demos-le onze notas e é pegar ou largar – disse o outro em remate final.
Ti Amílcar coçou o queixo, reflectiu um pouco e disse:
- Pronto. Atão, assim c´mássim, bai por doze.
Olharam um para o outro e um deles disse-lhe que não com a cabeça.
- Demos-le onze que foi o que já tínhamos mandado e é pra ser já, porque daqui a pouco já nem onze le mandemos.
Começaram a bichanar um com o outro, mas de modos a que Amílcar ouvisse , a pôr defeitos à burrica, que já era velha, fraca e com alguma doenças nos quartos, alertando para alguns visíveis e inventando outros.
Amílcar sentiu-se encurralado e decidiu:
- ´Stá bem. Bendida por onze notas.
Contaram o dinheiro e passaram-no para as mãos. Como hábito, Amílcar conferiu e contou uma a uma, cuspindo de vez em quando no indicador e no polegar. Meteu o dinheiro ao bolso e teve um sentimento misto de nostalgia e de alívio, ao ver os ciganos levarem a Rainha em direcção ao Prado. Afinal, a Rainha tinha sido a sua companhia dos últimos quinze anos!
Num cabanal para os lados do caminho que vai para a Foz, os ciganos trocaram-lhe a albarda, os atafais, o cabresto, a cilha e a manta por outros muito mais usados e gastos. Cortaram o pelo à burra e untaram-no com azeite e depois, com uma escova, escovaram-no bem até ficar luzidio. O pelo era cinzento prata e até brilhava. Limparam-lhe as romelas dos olhos, acertaram-lhe as pontas do rabo, das orelhas e da  crina e lavaram-lhe os dentes com um pano embebido em vinagre e cinza. Até ferraduras novas lhe puseram! Deram-lhe uns retaços de batatas com farelos e encheram-lhe a barriga de água. De facto, parecia outra burra, mais vistosa, mais nova e mais forte.
Entretanto o Ti Amílcar deu uma volta à feira; passou pelos rebanhos, pelos porcos, pelos bois e vacas e foi até ao sítios dos burros e dos machos. Não viu nenhuma burra que lhe agradasse. Decidiu ir petiscar uns peixinhos do rio ao escondidinho, a taberna do Senhor Lúcio e da Tia Adília, talvez o melhor sítio para se comerem bogas de escabeche. Amílcar carregou-lhe no palheto e foi dar mais uma volta à feita dos animais.
Na parte da tarde, outros dois ciganos, puseram- na a vender num local mais próximo da entrada da feira, distante do local onde a tinham comprado.  
Quando Amílcar passou por ali e se pôs a olhar para a burra, disseram-lhe:
- Atão, patrão. Gosta da jumenta? ´Stá aqui uma burra de truz, com tanta força c´mum matcho e inda bastante noba.
- Q´anto ´stão a pedir por ela? – perguntou meio desinteressado.
- Trinta notas, meu patrão. E olhe qu´as bale bem...
- Ora bô, bô!!Caratchos!!Mas é algum matcho, ou alguma égua?
- Não, meu Senhor. É uma burra que só q´ria qui a bisse a labrar ou a puxar um carro tcheio de lanha. Tem mais força do que nem sei o quê.
- Só de caso a quiser, podemos deixá-la ir por binti oito – disse o outro. Bomecê já biu esta lindeza qu´aqui ´stá?
“ Na berdade é bem guapa e parece bem ´stimada. Inté me fai lambrar a minha Rainha”, pensou o Ti Amílcar.
- S´o meu amigo quiser, pode dar uma boltinha co ela. Bai ber que bale bem o dinheiro.
- Pois ´stá bem, mas pedem um cibo bô a mais.
- Atão q´anté co patrão ´staba desposto a dar por ela?
- Nunca acima de quinze.
-  Ah...Nem pensar. Assim ´stá a caçoar da gente. Se ´stiber memsmo intressado, pode lubá-la por binti cinco e nem um tostão a menos.
- Atão ratchemos a meio e lebo-a por binte – disse resoluto.
- Tãe que tchigar pro menos ós binti três.
- Ó João. Bande-la lá por binte, já co home parece gostar tanto do animal- pediu o outro quase em clemência.
- Atão bá. Prontos. Deia-me cá atão as binte notas e lebe lá a burra, antes que m´arrependa. E olhe que bai bem serbido, palabra de cigano. 
Ti Amílcar ia todo entusiasmado com a compra e, ao chegar ao Coricatcho, quando se deixa a estrada e se vai pelo mato, junto à quinta do marmeleiro, a burra fez o desvio e seguiu caminho com a maior naturalidade. Ao entrar na estrada que dá para a aldeia, junto à estação do comboio, virou à esquerda e seguiu na direcção do Pinhal do Ribelho. Atravessou a aldeia e  dirigiu-se ao chafariz a beber água. Depois seguiu pela rua do meio e foi direitinha para a loja. 
Amílcar não queria acreditar.“ O dianho da burra inté parece bruxa!!”. 
Acomodou a burra, tirou-lhe a albarda e pôs feno na anjedoura, que comeu desalmadamente. Amílcar chamou a mulher: “ Ó ´Delaide! Anda ber a jerica. Inté bais ficar incantada co ela “.
Mal a Adelaide entrou na loja, logo a jerica arrebitou as orelhas, abanou o rabo de satisfação e zurrou. Tia Adelaide reconheceu aquele zurrar e observou atentamente a burra.
-  Atão qu´animal é este?!!
- Atão qu´animal é este!!Tamãe fazes cada prégunta?! É a burrica noba que merquei hoje na feira! Num é guapa? E esta debe ter munta força, qu´inda é noba.
- Ó home...Atão a burra é a mesma!!!Que raio de negócio é que fizestes?!
Atão...Bandi a Rainha e comprei esta, que tamãe se bai tchamar Rainha.
- Ó carbalho s´ta recontracosa, home do diabo. Atão tu num bês qu´a burra é a mesma.  Inté por o zornar!! Atão tu num bês qu´esta é a nossa Rainha??!
- Olha c´uma destas!!Parece que tães qu´ir pró Cão de Ferreira, mulher! Olha só pró pelo. Inté reluz...
- Ó home do diabo. Nem tudo que luz é oiro e nem tudo  que brilha é prata. 
- Oh...lá ´stás tu co as tuas palermices.
- Queres tirar a proba dos nobe? A noss Rainha tinha uma mantcha preta nas tetas, num tinha?
- Mas é claro que tinha. Disso alambro-meu bem.
- Atão anda cá – disse a mulher espreitando por baixo dela, desviando-lhe o rabo. - ´Stás a bê-la?
- Lá será quincidência, por i. Essa mantcha inté me parece mais grande.
- Qais mais grande, qais carapuça. Num és tu que te baboseias todo a decer qu´a ti ninguém t´ingana? Pois agora fostes inganado e bem inganado. Quuilharam-te bem. Bô, bô!! E logo quem! Os ciganos, quinté são capazes d´inganar o demónio.
Ti Amílcar ficou acabrunhado e, por compaixão para com o marido, a Tia Adelaide nunca contou a ninguém. Amílcar também ficou caladinho que nem um rato e nunca mais disse a sua auto-elogiosa frase: “ A mim ninguém m´ingana”. Isso é que era bom!Reconhecer e assumir os nossos próprios erros, não é para todos.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

Sem comentários:

Enviar um comentário