Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)
Foi há muitas estações atrás que o meu caminho se cruzou com o de um amigo que me ficou, para sempre, no coração e no meu mundo.
Coincidentemente, foi também por alturas desse mesmo encontro que perdi o meu único avô, com quem partilhei um percurso inteiro, até ao instante da sua morte, com a longa idade de noventa e seis anos. Uma relação nem sempre feliz, nem sempre justa, com umas quantas mágoas e amarguras à mistura, como é devido a todas as ligações daqueles que verdadeiramente se amam, mas nem sempre o conseguem expressar com a vontade desejada.
No entanto, recordo com nostalgia que, a poucas horas da sua partida, me foi oferecido um privilégio que, poucas vezes, a vida tem a gentileza de nos conceder. Enquanto deitado no leito do hospital, foi possível aproximar-me dele, olhar o seu rosto débil e cansado pousado, tranquilamente, na almofada. E, nesse momento, quase involuntariamente, a minha mão tocou, gentilmente, nos seus traços e expressões tão cheias de fragilidade. Senti-o estremecer nesse meu toque de despedida quando virou os olhos, silenciosos, na minha direção. Percebi, então, no preciso momento em que ele entregava o seu corpo à morte e eu, o meu espírito às mãos do perdão, que o toque é uma forma de amor que cura muitas feridas e permite que a paz nos invada, silenciosa e docemente, como um lenitivo e um ato de gratidão.
Há algumas semanas atrás, e após todo esse longe em que o tal meu amigo veio ao meu encontro, na mesma altura em que o meu avô partia, tive oportunidade de ouvir a sua voz ao telefone. Uma voz que, perdida no tempo, quase não reconheci. A verdade é que, ao longo de quase duas décadas, todo o nosso contacto se resumira a uma distância de meio metro, separados pela tela de um computador. Notícias e sentimentos partilhados num universo invisível, só assumido nas letras trocadas através de um teclado.
É verdade que o som da sua voz, volvidos tantos anos, deixou o rasto de uma comoção única, que me fez recordar, subitamente, a citação de Clarisse Lispector, “e receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer de os outros existirem e de a gente se encontrar nos outros.”
Sim, creio que ouvir a voz de um amigo saudoso respirar no nosso interior, é como um florir de primavera no peito da saudade. Reencontramo-nos numa estranha, mas deliciosa música de afeição e bem-querer, que nos perdura infinitamente.
Mas o certo, porém, é que os afetos têm e precisam também, muito, de uma profundidade sensitiva.
E esta é a mensagem que, na memória, te quero deixar ficar hoje. A ti, meu amigo. E a todos os que devem perceber a urgência dos seus gestos simples, mas maiores, na solidão daquele que é o mais íntimo firmamento de cada ser humano.
Mostrar-te que, apesar da tua voz soar plena e imensa aos meus ouvidos, uns centímetros de separação não chegam ainda ao lá atrás onde, um dia, te descobri em sorrisos e alegrias. Emoções que hoje, já te não vislumbro, sejam essas sombras fruto de acanhamento, dúvidas, incertezas ou a necessidade de te recolheres nos teus silêncios.
Meu amigo, que nunca o teu sentir perca o olhar da sensibilidade. Que ele possa sempre alcançar a importância de um abraço que, quando toca com calor a mão do outro, lhe oferece uma parte de ti mesmo e de tudo aquilo que de melhor és.
Na dimensão de cada toque, que nos faz estremecer por dentro, o afeto perde a transparência e ganha todas as cores que nos iluminam com o rosto da ternura, no encontro de sintonia perfeito. E faz-nos crescer até ao infinito da nossa humanidade.
Habita um dom nas nossas mãos!
Porque quem nos toca nos deseja com ele, porque o toque é um abrigo na nossa fragilidade, é tão bom, é tão essencial quando a pele se nos descobre a dizer as palavras que o coração quer falar, “estou aqui para ti; escuta-me: quero-te bem!” Ou ainda, “parte em paz”.
Afinal, é pelo contacto do tacto que sentimos, pela primeira vez em nós, o pulsar da vida…
Paula Freire - Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021: Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) e Nunca é Tarde (poesia).
Prefaciadora do romance Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021) e da obra poética Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021).
Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.
Sublime!
ResponderEliminarObrigada, Henrique.
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