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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 29 de outubro de 2023

(con)Tacto

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


Foi há muitas estações atrás que o meu caminho se cruzou com o de um amigo que me ficou, para sempre, no coração e no meu mundo. 
Coincidentemente, foi também por alturas desse mesmo encontro que perdi o meu único avô, com quem partilhei um percurso inteiro, até ao instante da sua morte, com a longa idade de noventa e seis anos. Uma relação nem sempre feliz, nem sempre justa, com umas quantas mágoas e amarguras à mistura, como é devido a todas as ligações daqueles que verdadeiramente se amam, mas nem sempre o conseguem expressar com a vontade desejada.
No entanto, recordo com nostalgia que, a poucas horas da sua partida, me foi oferecido um privilégio que, poucas vezes, a vida tem a gentileza de nos conceder. Enquanto deitado no leito do hospital, foi possível aproximar-me dele, olhar o seu rosto débil e cansado pousado, tranquilamente, na almofada. E, nesse momento, quase involuntariamente, a minha mão tocou, gentilmente, nos seus traços e expressões tão cheias de fragilidade. Senti-o estremecer nesse meu toque de despedida quando virou os olhos, silenciosos, na minha direção. Percebi, então, no preciso momento em que ele entregava o seu corpo à morte e eu, o meu espírito às mãos do perdão, que o toque é uma forma de amor que cura muitas feridas e permite que a paz nos invada, silenciosa e docemente, como um lenitivo e um ato de gratidão.
Há algumas semanas atrás, e após todo esse longe em que o tal meu amigo veio ao meu encontro, na mesma altura em que o meu avô partia, tive oportunidade de ouvir a sua voz ao telefone. Uma voz que, perdida no tempo, quase não reconheci. A verdade é que, ao longo de quase duas décadas, todo o nosso contacto se resumira a uma distância de meio metro, separados pela tela de um computador. Notícias e sentimentos partilhados num universo invisível, só assumido nas letras trocadas através de um teclado. 
É verdade que o som da sua voz, volvidos tantos anos, deixou o rasto de uma comoção única, que me fez recordar, subitamente, a citação de Clarisse Lispector, “e receber o telefonema de um amigo, e a comunicação de vozes e alma ser perfeita? Quando se desliga: que prazer de os outros existirem e de a gente se encontrar nos outros.”
Sim, creio que ouvir a voz de um amigo saudoso respirar no nosso interior, é como um florir de primavera no peito da saudade. Reencontramo-nos numa estranha, mas deliciosa música de afeição e bem-querer, que nos perdura infinitamente.
Mas o certo, porém, é que os afetos têm e precisam também, muito, de uma profundidade sensitiva.
E esta é a mensagem que, na memória, te quero deixar ficar hoje. A ti, meu amigo. E a todos os que devem perceber a urgência dos seus gestos simples, mas maiores, na solidão daquele que é o mais íntimo firmamento de cada ser humano.
Mostrar-te que, apesar da tua voz soar plena e imensa aos meus ouvidos, uns centímetros de separação não chegam ainda ao lá atrás onde, um dia, te descobri em sorrisos e alegrias. Emoções que hoje, já te não vislumbro, sejam essas sombras fruto de acanhamento, dúvidas, incertezas ou a necessidade de te recolheres nos teus silêncios.
Meu amigo, que nunca o teu sentir perca o olhar da sensibilidade. Que ele possa sempre alcançar a importância de um abraço que, quando toca com calor a mão do outro, lhe oferece uma parte de ti mesmo e de tudo aquilo que de melhor és.
Na dimensão de cada toque, que nos faz estremecer por dentro, o afeto perde a transparência e ganha todas as cores que nos iluminam com o rosto da ternura, no encontro de sintonia perfeito. E faz-nos crescer até ao infinito da nossa humanidade.
Habita um dom nas nossas mãos! 
Porque quem nos toca nos deseja com ele, porque o toque é um abrigo na nossa fragilidade, é tão bom, é tão essencial quando a pele se nos descobre a dizer as palavras que o coração quer falar, “estou aqui para ti; escuta-me: quero-te bem!” Ou ainda, “parte em paz”.
Afinal, é pelo contacto do tacto que sentimos, pela primeira vez em nós, o pulsar da vida…

Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021: Cultura sem Fronteiras (coletânea de literatura e artes) e Nunca é Tarde (poesia).
Prefaciadora do romance Amor Pecador, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021) e da obra poética Pedaços de Mim, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021).
Autora do livro de poesia Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."-Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza, sendo administradora da página de poesia e fotografia, Flor De Lyz.

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