sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Uma viagem com mel, veados e navalhas por Montesinho

 Acontece todos os outonos, no silêncio do Montesinho, no estado puro dos lugares intocados, onde o céu ainda tem estrelas e as montanhas bramem. E já que é para acordar de madrugada, descubra-se um parque natural com gente real dentro. E histórias de reis e de contrabandistas e de artistas da arte de comer.

Montesinho, um parque natural com gente dentro. (Fotografia de Maria João Gala/GI)

Ainda é setembro, mas a altitude trasmontana não se compadece com ondas de calor fora de época. Nem a altitude nem o cedo que é, seis da manhã. Está frio em RIO DE ONOR, e escuro, quando arrancamos no todo-o-terreno de Nélio Fraga. Enquanto o esperávamos, deglutíamos um rápido iogurte com banda sonora neste paraíso do silêncio enfiado nos confins do Parque Natural de Montesinho. Bramidos, longínquos talvez, que este concerto cobre todas aquelas alturas sem olhar a fronteiras. Ou próximos, o breu nem permite descortinar o recorte dos montes no céu estrelado. É um grito de lamento que ecoa por todas as encostas, o lamento de amor que nos pôs aqui, neste pedaço da Reserva da Biosfera da Meseta Ibérica, nesta margem do rio Onor, nesta aldeia comunitária e transfronteiriça que é tão particular que até dialeto tem – e o único restaurante vegetariano da região, também, mas já lá iremos. É o chamamento da vida. É a brama dos veados.

Vamos encolhidos atrás de Nélio, da aventura norte, monte acima, até um lugar onde só há céu negro e uma ténue camada rosada no horizonte. Estamos entre Portugal e Espanha, no espanto daquilo que vemos com os ouvidos, a dança nupcial destes animais únicos, uma cantiga que não conseguiremos pôr em palavras. Um óculo de infravermelhos desvela a natureza. Há pontos de calor esparsos, alguns são nada, ou são os postes de alta tensão. Outros são contornos vermelhos de veados claríssimos, hastes erguidas, num ligeiro balançar à retaguarda a acompanhar os bramidos.

Os pés estão já em gelo, este chão de Trás-os-Montes a debicar-nos as veias enquanto pairamos no sonho de estar ali sem ser vistos, metidos numa oração indizível. A barra rosa passa a laranja, ou a rosa alaranjado, a noite esvai-se e o óculo revela dois contornos mais velozes, mais rasteiros. Lobos. Assistimos a este teatro de boca literalmente aberta enquanto a manhã se impõe, agora as hastes estão visíveis na sequência da linha dos montes, “aquele é Espanha”, isso é que interessa. Outro óculo dá-nos aproximação enquanto a canção sobe de tom. Vem dali, daqui, de acolá, ouves, vem de além. Podemos saltar a margem da estrada de terra? Saltamos. Descemos um monte agora já amarelo, já visíveis, nós, iluminados pela explosão do sol. Um bramido soa diferente. É um grito mesmo, um aviso, a culpa é nossa. E há outro lobo a rondar, e fêmeas também, pequenas ao pé dos 170 quilos dos belos machos.

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

A vida selvagem é isto, veados atrás de corças, a marcar territórios, lobos atrás de veados, a ignorar territórios, e uma canção ininterrupta, minimal repetitiva, todas as madrugadas do Montesinho, manhãs dentro, até que o calor impõe o silêncio, todos os meses de setembro e outubro desde que há vida.

Cremos que é de Portugal este penedo onde pousamos o cansaço para um saboroso mata-bicho, já os únicos bramidos que se ouvem são os dos nossos estômagos desregulados pelo sono. Porque nestas terras, já aqui o escrevemos, não há fronteiras.

A nação do contrabando

Como nunca houve umas dezenas quilómetros para oeste, a 1.04 horas por estradas castelhanas, 1.11 horas pelas portuguesas, é a vida. Falamos de MOIMENTA, a de Vinhais, que não divide casario com Espanha, mas divide outro dos bens maiores: a água.

Comecemos por ela. Porque constrói a história desta aldeia peculiar e colocou Moimenta no mapa. De Portugal e de Leão e da Galiza. Porque está no cruzamento de três reinos, como estão Castromil, de Hermisende, Zamora, hoje Castela e Leão, e Cádavos, de A Mezquita, Ourense, Galiza. Montes de mãos dadas com papel firmado em 1253, quando Dom Afonso III ali veio distribuir forais e se inteirou das “questões” que opunham pastores e seus rebanhos em roda de uma fonte que só podia ser de todos mas era reclamada por cada um. Apaziguador, o rei português terá convocado os comparsas para ali acordarem um entendimento simples: nos mil metros quadrados à volta da fonte, ninguém era dono e todos podiam matar a sede no bebedouro comum. Selaram a coisa com uma merenda na FRAGA DOS TRÊS REINOS, onde estão as respetivas iniciais. Estamos a 1025 metros de altitude, está um calor infernal, já esquecemos o gelo da brama e afundamo-nos na contagiante história desta terra onde apetece ficar.

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

Vamos à Praça do Comércio. “Tinha três comércios. Vendia de tudo”, inclusive bombazina, essa que era trazida do outro lado da fronteira em troca de café, aos lotes de cinco e dez quilos em serapilheira fechada a fio de vela, porque esta terra sempre foi de todos e o comércio não podia ficar de um só lado, porque eles tinham bombazina e Portugal tinha café, eles tinham colorau e Portugal tinha televisores, eles tinham tabaco e cacau, Portugal tinha alambiques… E trocavam-se animais.

“Amarravam-se as patas do cordeiro com fio. Deixava-se num certo sítio. Vinha o rebanho português e cruzava com o espanhol e desapertava-se e lá ia com os espanhóis. Na altura davam mais 100 escudos por animal do que aqui. Aqui eram três contos. Ficava a três contos e 100.” Conta Romeu Diegues, que nos abriu as portas do MUSEU DO CONTRABANDO. Não foi por calhar, foi por ser presidente da junta, mas isso é o menos. Romeu foi guarda-fiscal. Filho de pastores. Esta terra é de pais e filhos, contrabandistas e guardas, tudo numa família, como Filomena, contrabandista com fotografia no museu, mãe de José Manuel Pinto Alves, guarda, como Romeu, filho da mãe dele, que, claro, se podia levar o café, trazia uns centavos. “Para se ser um bom guarda-fiscal é preciso ser-se um bom contrabandista”, a história o dirá.

A verdade é que esta Moimenta viveu sempre assim, um pé aqui outro lá, “não havia estrada para Bragança há 30 anos. Eram 35 quilómetros em terra batida e por Vinhais são 55. A nossa vida era toda em Espanha”. Para sair. E para casar. O filho de um vive além, a outra casou lá, vive além, o outro, da camisola de equipa campeã, também… “Moimenta está mais perto do Mundo do que o resto de Portugal”, diz-nos Amaro Gonçalves, da taberna Ribeira d’Anta, que era a ribeira que se unia ali ao Tuela, porque Moimenta está “a 15 minutos do TGV, em Gudiña”, dali a Madrid é um tiro e depois Paris, o Porto tão longe, Lisboa nem se fala.

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

E, antes disso, Moimenta era o Mundo, aldeia comunitária com fornos e moinhos, criou uma central que lhe deu luz antes de ela chegar a Vinhais, rezou na velha IGREJA MATRIZ DE SÃO PEDRO, do século XIV, cujo altar nem sequer ombreia com o outro, de esguelha evidente, vindo da capela que já se foi e é hoje casa, na dita Praça do Comércio, e benzeu e benze animais no milhadoiro que, afinal, é Largo do Toural, que era miradouro. Enfim, perderíamos aqui muito tempo se nos deixassem, até porque aqui, terra de guardas e contrabandistas, havia até a Casa das Ponecas, claro, das meninas, porque o comércio é isso, é gente a cruzar-se. Romeu, a tua família contrabandeou? Pois que antanho a gente tinha de se amanhar como podia. Era como nos MOINHOS COMUNITÁRIOS, a turbina dava luz e as pessoas pagavam consoante as lâmpadas de casa. E tinham a sua hora de tal dia para usar a água da rega comunitária e, de repente, toca o telemóvel de Romeu, AC/DC, e a cerveja no Amaro tem de ficar para outro dia. Porque as cervejas, em Moimenta, trazem água no bico, que o digam os guardas de antanho.

A nação da navalhinha

É como o mata-bicho. Arre. “Aqui em Trás-os-Montes, desde que me lembro, é normal usar a navalhinha para tudo, em casa, nas lides, para a maçãzinha” e vai daí ela sai de todos os bolsos como saiu do bolso de Nélio depois dos veados. Não há volta a dar-lhe. Como sai sempre do bolso de GILBERTO FERREIRA, que decidiu fazer caso disso e desatou a moldá-las, às navalhas.

Estamos de novo em Bragança, na Aveleda da burra que é mais famosa do que a terra, fruto de um trocadilho dos negócios de antigamente (quem quiser deve ir à Aveleda descortinar tudo isto), em que gozar com uma vendedora de carvão é levar troco, rica terra esta de mulheres com pelo na venta, e foi Gilberto quem tornou a trazer esta aqui para o mapa.

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

Tem 41 anos. Aos 21 decidiu fazer a própria navalha. “Mas não funcionou muito bem.” Foi por tentativa e erro. Até arranjar uma forja a sério, onde derrete aço carbono em lume atiçado a carvão de cepa da urze e dali tira conjuntos de lâminas que viajam em primeira classe, nas malas de chefes conceituados. Gilberto Ferreira é daqueles seres teimosos e perspicazes. Na meninice foi estudar para Bragança e deixou-se estar até perceber, aos 31, que não há nada que pague o sossego de uma aldeia no Montesinho. Mormente se a tua vida for fazer facas, apanhar hastes de veado caídas após a desmoga, aturar estrelados Michelin e fornecer-lhes a oportunidade de brilhar com uma faca artesanal numa mesa de luxo. Para que conste: um conjunto de seis facas de chefe soma 1200 euros e duas semanas de labor a olhar a natureza e a sentir-lhe essa paz que faz os transmontanos falar lento, bonito, tanto quanto o bramido de um veado crescido, daqueles com hastes acrescentadas de pontas conforme os anos (ou mais ou menos, vá, que há anos férteis que dão duas pontas).

A nação do mel

Só não sabemos o som do urso pardo, porquanto há décadas que não é visto por estas bandas, ainda que os especialistas garantam que, a prazo, estará de volta. Sabemos, só, que é guloso. E deu conta de cinco colmeias de Luís Correia, o visionário que transformou Vilarinho, Espinhosela, num centro do mel.

Nascido em Angola, regressado para o mundo perdido da mãe, naquele recanto do Montesinho, ido para a vida farta das insígnias de comércio internacional e bafejado pela visão, Luís abandonou tudo e regressou a Vilarinho e criou a APIMONTE. “A minha avó já tinha colmeias. Fui comprando. Hoje temos quase 900 colmeias. E quatro casas de alojamento local”, conta Luís, fazendo questão de nos levar mato adentro, vestidos de apicultores, conhecer-lhe a arte. Faz contas assim: 60 mil abelhas por colmeia vezes 900 dá oito toneladas de ouro num ano bom.

O diamante de Luís é o mel de castanheiro, que para sê-lo tem de ter mais de 70% de flor de castanheiro. “Este tem 89%.” Com a garantia de que não há misturas. E o urso? “Foi uma sorte.” Os 50 quilos de mel que comeu foram um privilégio. Um urso pardo da Cantábria? Só há 357 em Espanha e já não era visto em Portugal desde 1843, quando o último foi morto no Gerês. “Devia ter fome e fez-nos o favor de comer o nosso mel!” Seria mesmo um urso? “Vimos patadas.” E o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas confirmou, com pelos e excrementos. “Foi a melhor publicidade.”

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

E disso percebe Luís, o homem que chamou Ricardo Dobrões para fazer a sua mágica arte de rua nos abrigos de autocarro da aldeia. Uma arte que vale o desvio. Ricardo assina Odra Trip e é o responsável, por exemplo, pela transfiguração de Podence, em Macedo de Cavaleiros.

A nação do bem comer

A paixão pelo chão, no Montesinho, é tão inexplicável quanto o amor bramido pelos veados em cio. Explica Luís, explica Gilberto, explica Romeu e explica Jörg e Gracinda. Ele suíço, trazido a Rio de Onor por amor a uma mulher que a vida entretanto levou, ela portuguesa de Bragança, regressada da Alemanha onde se construiu, instalada em França. Claro que tinha de fazer a pergunta. “Quanto tempo é daqui a França?” “É uma meia hora…”

O filho de Jörg Baldesberger foi a última criança de Rio de Onor e já está com 24 anos, os filhos de Gracinda Veiga andam por essas idades e na vida deles, resta aos pais fazer o que gostam: servir passa repastos caseiros com o que a terra dá, comida sem carne, no PALHEIRO. Um vegetariano em Rio de Onor. Porquê? Porque sim. Ele veio da Suíça a respeitar os animais, ela nasceu vegetariana. “Detestava carne, mas era obrigada a comer.” A lasanha com acelga encheu-nos a alma, as saladas em tríptico eram divinas, a sopa de pera com gengibre, então, nem se fala. E a sobremesa, iogurte, crumble, maçã, avelãs e raspa de lima, enfim… É estranho na nação da posta comer vegetariano. Mas é alarvemente bom. E põe-nos a pensar…

E enquanto pensamos damos por nós em frente a uma toalha alva com nada em cima, apenas a vista para o castelo de Bragança iluminado e uma faca ligeira com assinatura no canto. Gilberto F. e um naco de haste de veado. O casamento está feito, estamos perante os amantes da terra. “Se eu tivesse apostado fora daqui, o retorno era outro…” Óscar Geadas, 46 anos, engenheiro do ambiente e chef Michelin desde 2018, luta todos os dias para manter uma estrela do mundo dos outros nos seus Trás-os-Montes, ele e o irmão, António, economista e escanção. Vão à televisão, vão ao Mundo, viajam com facas – sim, as de Gilberto -, mas são de uma aldeia do Montesinho, são de Trás-os-Montes, que diabos, e decidiram investir ali.

(Fotografia de Maria João Gala/GI)

Pela mesa do G desfila espumante Montes Ermos a acompanhar azeite da terra com pão (haverá melhor do que azeite verdadeiro com pão a sério?) e manteiga, coscorão com carne da matança (ou com cogumelo Amanita caesaria para a Maria João que é vegetariana) e a estrela: bola de Berlim com queijo terrincho em vez de creme e azeite em pó em vez de açúcar, com presunto de porco bísaro, porque os Geadas estudaram no Algarve e as manhãs de mar com bolas eram de sonho com queijo e presunto, à verdadeiro transmontano. “Ser cozinheiro é mexer nos sentimentos.” Óscar é simples como tudo o que o diz. Lembra-se daquele puré de castanha que pôs um cliente a chorar porque era igual ao da avó. Lembra-se do nó na alma que a estrela lhe pôs, do medo de falhar. “Todos gostamos de ganhar, mas ninguém gosta de perder. Olho para a estrela como um filho. Será que vamos conseguir manter o nível?”

O vinho é do senhor Amílcar de Vidago, o corta sabores é a surpresa da noite, gaspacho de folhas verdes com algodão doce, o feijão é bragançano, o outro vinho é Valpaço-Lo-Velho e depois do longueirão vem o incrível Vale Pradinhos tinto e a seguir morangos preservados de São Pedro Velho e terminamos a dizer, Óscar e António, se tivessem apostado noutro sítio não seria isto, estes morangos e este vinho e este linguajar solto com que terminamos o repasto, um repasto que é o território, é a brama que ouvimos cedo, é a indefinição de fronteiras, é o gume perfeito da faca de Gilberto.

Ivete Carneiro

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