Por: Manuel Eduardo Pires
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
A última crónica deixou-me um sabor a pouco: quem gaste o seu rico tempo e se enfade a ler-nos merece satisfações sobre a razão de ser de algumas coisas que se vão dizendo. “Água mole”, o título da coluna, poderia sugerir que me comparo a esse líquido cujo bater paciente desfaz com o tempo as pedras mais duras, como diz o provérbio. Nessa leitura, eu seria uma espécie de voz racional (que a limpidez da água simboliza) a tentar encarreirar os desviados. Sem contar que tal postura me colocaria num patamar moral pedante e ridículo que não adoto de modo algum, nada haveria mais enganador, por várias razões.
Mesmo admitindo que uns quantos leiam e entendam os alvitres de quem escreve, a gente só se convence do que já está convencida. Tirando o caso dos mais jovens, mudar de ideias, assumir outros pontos de vista, adquirir novas visões do mundo é algo que se procura, nada que possa ser incutido por alguém. De modo geral, por conforto e segurança, buscamos a informação que possa confirmar aquilo que já pensamos, rejeitando a que arrisque pô-lo em causa. Não vemos a realidade, filtramos dela o que nos interessa. Quem algum dia foi facho ressabiado, comuna-bota-abaixo, beato-bolorento, incréu empedernido, coça-esquinas, gata-borralheira, cusca metediço, estou-me-nas-tintas, mãos-rotas, unhas-de-fome, burro-chapado, esperto como um rato, besta-quadrada, bom-serás, múmia-songamonga, arrota-postas, bicho-do-monte, maria-vai-com-as-outras, lampião grunho, andrade troglodita, lagarto malfeitor ou seja o que for, dificilmente virá a ser outra coisa.
Assim sendo, o parecer avulso debitado numa folha de jornal, como outro qualquer, é coisa inócua, o mesmo que dar cães de meias, para usar uma saborosa expressão popular. E percebê-lo até me descontrai, por isentar de encargos que deus me livre querer assumir. Por isso esta “água” refere algo que se evapora sem rasto e “mole”, pouca consistência e menos valor ainda. Por vezes, mas isso se calhar é paranoia minha, receio que a opinião aqui deixada possa mesmo ter efeitos adversos: após os reparos que há tempos expressei quanto aos jardins e zonas verdes (esse reino da arbitrariedade, como deve ser quase tudo o resto), neste inverno abateu-se sobre eles uma sanha destruidora digna de nota.
Daí resulta interrogar-me a toda a hora sobre o sentido que possa ter esta mania de pregar sermões que ninguém encomenda. Tomar a palavra em público quando não é pedida já implica alguma ousadia e embaraço quanto baste. Eu vejo-me ainda consumido pela contradição de ter o anonimato e a discrição como bênçãos e ao mesmo tempo pôr-me a nu, já para não dizer que não é certo que o mundo fosse um lugar melhor se todos pensassem como eu. Assim, a luta entre escrever ou estar mas é quieto é constante e as razões para uma ou outra opção bastante equilibradas. Então por que cargas de água acabo por ceder, apesar de tudo?
Bom, dizer-me alguém na rua que partilha comigo certo ponto de vista não deixa de tocar a corda da pequena vaidade: embora saiba que não me hão de faltar antipatias, se pretendesse ser alheio a algum desejo de reconhecimento, que todos temos, estaria a mentir. Não excluindo tal fraqueza, o impulso de escrever não passa só por aí. Em certos momentos gosto de pensar que é uma singela forma de ação cívica, ou melhor, descargo de consciência, já que em mim mora sempre uma difusa culpa por achar que pouco contribuo para o bem comum. Mas as reservas que referi da dificuldade em comunicar a sério contrariam e muito esse desejo.
Por estranho que pareça dizê-lo, escrevo sobretudo para mim, para arrumar melhor aquilo que penso. No fundo, em qualquer circunstância, falamos mais para nós próprios do que para os outros, é esse o principal papel da linguagem, o de, bem ou mal, nos ajudar a organizar as ideias. Mas ainda nem é bem isso. Talvez a maior utilidade deste gatafunhar consista no seu caráter infantil e lúdico: em recrear-me um pouco com aquilo que vou vendo à minha volta e desfrutar de forma estética dessas experiências radicalmente subjetivas (o meu desporto radical…), por meio das palavras. Simples exercícios de estilo, jogos de que, por me darem grande gozo, não gostaria de abdicar. E por fim, é mais que provável, uma compensação pelas frustrações da vida, sublimação do sofrimento nela acumulado.
Mesmo admitindo que uns quantos leiam e entendam os alvitres de quem escreve, a gente só se convence do que já está convencida. Tirando o caso dos mais jovens, mudar de ideias, assumir outros pontos de vista, adquirir novas visões do mundo é algo que se procura, nada que possa ser incutido por alguém. De modo geral, por conforto e segurança, buscamos a informação que possa confirmar aquilo que já pensamos, rejeitando a que arrisque pô-lo em causa. Não vemos a realidade, filtramos dela o que nos interessa. Quem algum dia foi facho ressabiado, comuna-bota-abaixo, beato-bolorento, incréu empedernido, coça-esquinas, gata-borralheira, cusca metediço, estou-me-nas-tintas, mãos-rotas, unhas-de-fome, burro-chapado, esperto como um rato, besta-quadrada, bom-serás, múmia-songamonga, arrota-postas, bicho-do-monte, maria-vai-com-as-outras, lampião grunho, andrade troglodita, lagarto malfeitor ou seja o que for, dificilmente virá a ser outra coisa.
Assim sendo, o parecer avulso debitado numa folha de jornal, como outro qualquer, é coisa inócua, o mesmo que dar cães de meias, para usar uma saborosa expressão popular. E percebê-lo até me descontrai, por isentar de encargos que deus me livre querer assumir. Por isso esta “água” refere algo que se evapora sem rasto e “mole”, pouca consistência e menos valor ainda. Por vezes, mas isso se calhar é paranoia minha, receio que a opinião aqui deixada possa mesmo ter efeitos adversos: após os reparos que há tempos expressei quanto aos jardins e zonas verdes (esse reino da arbitrariedade, como deve ser quase tudo o resto), neste inverno abateu-se sobre eles uma sanha destruidora digna de nota.
Daí resulta interrogar-me a toda a hora sobre o sentido que possa ter esta mania de pregar sermões que ninguém encomenda. Tomar a palavra em público quando não é pedida já implica alguma ousadia e embaraço quanto baste. Eu vejo-me ainda consumido pela contradição de ter o anonimato e a discrição como bênçãos e ao mesmo tempo pôr-me a nu, já para não dizer que não é certo que o mundo fosse um lugar melhor se todos pensassem como eu. Assim, a luta entre escrever ou estar mas é quieto é constante e as razões para uma ou outra opção bastante equilibradas. Então por que cargas de água acabo por ceder, apesar de tudo?
Bom, dizer-me alguém na rua que partilha comigo certo ponto de vista não deixa de tocar a corda da pequena vaidade: embora saiba que não me hão de faltar antipatias, se pretendesse ser alheio a algum desejo de reconhecimento, que todos temos, estaria a mentir. Não excluindo tal fraqueza, o impulso de escrever não passa só por aí. Em certos momentos gosto de pensar que é uma singela forma de ação cívica, ou melhor, descargo de consciência, já que em mim mora sempre uma difusa culpa por achar que pouco contribuo para o bem comum. Mas as reservas que referi da dificuldade em comunicar a sério contrariam e muito esse desejo.
Por estranho que pareça dizê-lo, escrevo sobretudo para mim, para arrumar melhor aquilo que penso. No fundo, em qualquer circunstância, falamos mais para nós próprios do que para os outros, é esse o principal papel da linguagem, o de, bem ou mal, nos ajudar a organizar as ideias. Mas ainda nem é bem isso. Talvez a maior utilidade deste gatafunhar consista no seu caráter infantil e lúdico: em recrear-me um pouco com aquilo que vou vendo à minha volta e desfrutar de forma estética dessas experiências radicalmente subjetivas (o meu desporto radical…), por meio das palavras. Simples exercícios de estilo, jogos de que, por me darem grande gozo, não gostaria de abdicar. E por fim, é mais que provável, uma compensação pelas frustrações da vida, sublimação do sofrimento nela acumulado.
(Nordeste - jun. 2018)
Manuel Eduardo Pires. Estes montes e esta cultura sempre foram o meu alimento espiritual, por onde quer que andasse. Os primeiros para já estão menos mal, enquanto a onda avassaladora do chamado progresso não decidir arrasá-los para construir sabe-se lá o quê, mas que nunca será tão bom. A cultura, essa está moribunda, e eu com ela. Daí talvez a nostalgia e o azedume naquilo que às vezes digo. De modo que peço paciência a quem tiver a paciência de me ir lendo.
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