Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

As estratégias das plantas: crescer entre o asfalto e o betão

 À primeira vista, as cidades parecem ter lugar para tudo, menos para as plantas. O betão, o alcatrão, os muros e as calçadas dominam o espaço. O solo é escasso ou ausente, o calor acumula-se no asfalto, a água desaparece rápido e a pressão humana é constante. Ainda assim, as plantas não desistem, crescem onde menos se espera, entre as pedras e as fissuras, encontrando formas engenhosas de sobreviver.

Alfavaca-de-cobra (Parietaria judaica). Foto: Krzysztof Ziarnek, Kenraiz/WikiCommons

Sobreviver à cidade, sem pedir licença

Crescer entre o betão e as pedras exige mais do que sorte — implica adaptação. A flora espontânea que coloniza fendas, muros e outros recantos urbanos não só tolera condições difíceis, como explora essas dificuldades para garantir o seu lugar. 

Chamamos-lhes “ervas”, muitas vezes com desprezo, mas são verdadeiras pioneiras, adaptadas à hostilidade do espaço urbano. Quando o solo é escasso e a água desaparece com facilidade, estas plantas engenhosas usam o que têm ao seu dispor. Aproveitam o calor dos muros para germinar mais cedo, desenvolvem raízes finas e flexíveis, capazes de se fixar e alimentar mesmo em poucos centímetros de solo. 

Muitas são anuais e completam o ciclo de vida em poucas semanas. Outras, perenes, criam redes subterrâneas persistentes, que regressam ano após ano, como um coração que não desiste de bater. 

Dou muitas vezes por mim a reparar nestas pequenas plantas que rompem o betão ou que se insinuam nas fendas dos passeios e dos muros.  Discretas, quase invisíveis, mas determinadas.

Há anos que vejo algumas regressarem, sempre aos mesmos lugares, uma companhia silenciosa no meu percurso habitual. Um bom exemplo é a alfavaca-de-cobra (Parietaria judaica), uma planta nativa que cresce em muros e consegue sobreviver em condições de pouca água e nutrientes.

A cimbalária (Cymbalaria muralis) também é uma presença constante. Apesar de não ser uma espécie nativa, tornou-se parte da paisagem. Resiste bem à seca e às mudanças bruscas de temperatura. Forma um tapete verde que cobre o muro e as suas pequenas flores, quase imperceptíveis, acrescentam cor aos recantos de pedra. 

Cimbalária (Cymbalaria muralis). Foto: Angelika Baumann/WikiCommons

Plantas da cidade

Pequenas plantas, muitas vezes anónimas, crescem onde não foram convidadas. Ninguém as semeou, ninguém as plantou, e muitas vezes, ninguém as quer ali. Mas surgem mesmo assim, aproveitando o vento, a chuva ou os animais para dispersar sementes e encontrar refúgio. 

Instalam-se em fendas de muros, entre pedras soltas, calçadas e passeios, locais onde quase nada mais vinga e aí prosperam, fazendo das dificuldades urbanas uma oportunidade.

Espécies como o umbigo-de-vénus (Umbilicus rupestris), que forma pequenas rosetas bem agarradas a superfícies húmidas, são-me familiares: aparece todos os anos no mesmo muro, na mesma escada por onde passo todos os dias.

Umbigo-de-vénus (Umbilicus rupestris). Foto: Krzysztof Ziarnek, Kenraiz/WikiCommons

A boca-de-lobo (Antirrhinum majus), com as suas flores coloridas, desponta de tempos a tempos nos muros perto de casa, trazendo cor ao cinzento das pedras. 

A papoila (Papaver rhoeas), de pétalas frágeis, escolhe os sítios mais improváveis: fissuras junto a passadeiras, bermas de caminhos, recantos esquecidos no meu trajeto a pé para o trabalho. 

O dente-de-leão (Taraxacum officinale), mais discreto, também resiste entre o empedrado, como se recusasse ser esquecido. 

A salsaparrilha (Smilax aspera), uma trepadeira robusta, cobre muros e outra vegetação, acrescenta diversidade a estes ambientes urbanos.

Nos telhados e zonas mais expostas, surge o arroz-dos-telhados (Sedum album), uma suculenta que se destaca pela sua capacidade de armazenar água e resistir a ambientes secos e quentes, comuns nas cidades, onde há forte exposição solar e pouca retenção de humidade.

É impossível não parar, nem que seja por um segundo, para observar esta persistência em crescer nos lugares mais inóspitos. 

Além das plantas com flor, musgos, fetos e líquenes colonizam pedras e paredes, integrando o ecossistema urbano. Discretos, estes seres vivos revelam uma incrível capacidade de adaptação.

Vantagens invisíveis

Mesmo que passem despercebidas, estas presenças — das plantas com flor, aos musgos, fetos e líquenes – são fundamentais para o equilíbrio ecológico das cidades. Além da sua notável resiliência, desempenham funções ecológicas que sustentam a vida nas cidades. Alimentam polinizadores e pequenos animais, contribuem para o equilíbrio do microclima e ajudam a estabilizar solos, mesmo nos espaços mais reduzidos e inóspitos.

Arroz-dos-telhados (Sedum album). Foto: Liv/WikiCommons

Destacando-se como bioindicadores da qualidade do ar, os líquenes e os musgos, também contribuem para criar microhabitats, prevenir a erosão e participam no ciclo dos nutrientes – funções importantes para a manutenção da biodiversidade urbana.

Estas comunidades, espalhadas pelas calçadas, muros, passeios e telhados, funcionam como verdadeiras pontes verdes, ligando fragmentos de natureza urbana. Facilitam a circulação de pequenos organismos, a dispersão de sementes e tecem redes vivas que sustentam processos naturais mesmo nas grandes cidades.

Além disso, contribuem para a melhoria da qualidade do ar ao reter partículas poluentes e, ao cobrirem superfícies duras, atenuam o ruído e ajudam a regular a temperatura local – funções cada vez mais importantes face às alterações climáticas. 

A sua presença suaviza os efeitos das ilhas de calor e torna a cidade mais resiliente a fenómenos extremos. Não será por acaso que sentimos mais frescura ao passar por certos muros cobertos de vegetação.

Por fim, há um valor simbólico e estético que não pode ser ignorado: estas espécies, muitas vezes consideradas indesejadas, rompem o betão com cor, vida e persistência, lembrando-nos que a natureza não desaparece. Adapta-se, resiste e insiste em regressar, mesmo nos lugares mais improváveis.

A lentidão que desafia

Mas a força destas plantas não está apenas na sua capacidade de resistir ao meio urbano — está também na paciência com que o fazem.

Enquanto a vida urbana corre a passos acelerados, elas seguem um ritmo completamente diferente: crescem devagar, ano após ano, construindo raízes profundas e estruturas discretas, que poucos notam, mas que fazem toda a diferença. 

Essa lentidão não é sinal de fraqueza, é uma estratégia de sobrevivência. Ao resistirem ao pisoteio, à seca e ao calor, acumulam lentamente reservas e preparam-se, com firmeza, para os desafios futuros.

Além disso, o seu crescimento lento ajuda a criar estabilidade nos espaços onde vivem. As suas raízes, por exemplo, estendem-se entre pedras e fissuras com delicadeza e firmeza, ajudando a manter o solo e as estruturas intactas.

Tornam-se arquitetas silenciosas da cidade, moldando microambientes e preparando o terreno para outras formas de vida.

Essa capacidade de persistir lentamente, quase invisível ao olhar apressado, é um lembrete importante: na natureza, o tempo não é um inimigo, mas um aliado. A lentidão destas plantas urbanas desafia a pressa e a imposição humana, mostrando que a verdadeira resistência muitas vezes se constrói no ritmo calmo e constante da vida.

Dente-de-leão (Taraxacum officinale). Foto: Thomas Wolf/WikiCommons

Num mundo cada vez mais apressado, impermeável e afastado da natureza, estas plantas que crescem entre pedras e muros oferecem-nos uma lição profunda. 

A forma discreta como se instalam com naturalidade, sem exigir nada, revela outra forma de habitar o espaço, mais atenta, mais paciente, mais resiliente.

Ao surgirem nas fendas do betão, estas espécies espontâneas mostram que a natureza não precisa de grandes territórios para se manifestar. Basta-lhe uma pequena fissura, um pouco de luz, uma gota de água. E assim, relembram-nos que o mundo natural permanece presente, mesmo quando tentamos esquecê-lo ou apagá-lo.

Reconhecer o valor destas plantas é mais do que um gesto ecológico, é um reencontro com a natureza que resiste, discreta nos cantos esquecidos das cidades. 

É lembrar que a beleza também surge nos locais mais inesperados e que cuidar começa por ver.

Aprendi a reconhecê-las quase sem querer. Primeiro com curiosidade, depois com respeito. Hoje, não passo sem as procurar.

Sem comentários:

Enviar um comentário