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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

"UNS VÃO DE FÉRIAS, OUTROS... EXISTEM!"

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


 “Está aberta a época da Loucura Coletiva das Férias”, anunciou o jornalista de sorriso forçado, no canal português com mais ouvidos atentos. 
Mas a novidade, desta vez, não teve audiência. Porque tudo já começou muito antes, com o planeamento exaustivo, durante semanas a fio, desses dias cheios de um qualquer sol iluminado, para dar descanso às almas fatigadas. Os estratagemas camuflados e as negociações clandestinas com os Recursos Humanos, numa luta feita com unhas, dentes e várias aplicações de viagens sobre destinos paradisíacos, exigente e suada, só para conseguir aqueles sete dias do ano, inteirinhos, de férias em família. 
Finalmente, depois de adiados, na agenda profissional, dois estudos de mercado urgentes, e ajustadas entre três projetos que não admitem deslizes, as ansiadas férias estão definitivamente marcadas.
Merecidas, depois dos onze meses em modo burn out, a tentar sobreviver a um horário desconcertante, cruzado com tarefas múltiplas, entre casa, trabalho e corridas para as aulas de capoeira, fonética islandesa, programação intuitiva e dança pós-dramática, dos mais novos. É que esta coisa da logística da vida familiar é, sem dúvida, tão ou mais complicada do que a de um armazém de roupas em Xangai.
E quando o Gonçalo Vasconcelos pergunta ao Zé Reis se nas férias não vai a lado nenhum e este lhe reponde: “Vou. Para o meu quintal.”, o silêncio de assombro do primeiro soa ao segundo como suspeita de pobreza mental (mais do que financeira, pois que, afinal, até são colegas de trabalho na mesma empresa).
E enfim tem início a tão esperada odisseia dos turistas olímpicos. O plano a cumprir é bastante simples: uma escapadela para um resort com nome esquisito, mas fino, que lembra qualquer coisa entre um cocktail e um oásis zen, com paisagem de perder as vistas. Uma sessão de terapia com taças tibetanas, visita guiada a um laboratório de escrita criativa para crianças hiperativas e um campo de golfe, tudo incluído no pacote. 
Em casa começa a habitual guerra civil. Roupas que voam pelo ar, malas feitas aos trambolhões e impossíveis de fechar. 
O passaporte do Martim Afonso, desaparecido, após ter servido de base para o rato do computador. 
Depois de olhar pela centésima vez para os memorandos colados na porta do frigorífico, e à beira de uma síncope nervosa, a mãe confere a bagagem. Dá conta de mais meia dúzia de camisolas pretas junto das doze já guardadas, debaixo do comando PS. Berra que faltam as cuecas. O filho acrescenta que leva as que tem vestidas. 
O pai entra no quarto com uma bolsa só para os carregadores, porque todas as powerbanks estão descarregadas. 
Insiste, desesperado, que estão com duas horas de atraso.
No aeroporto cheio de gente a dormir em cima de mochilas, alguns bebés gritam em choro compulsivo nos braços pacientes das tias e das avós, enquanto um grupo de alemães e japoneses, unidos não pelo destino, mas pelo desalento coletivo do atraso de embarque confirmado, discutem em três línguas diferentes.
Na área de check-in, uma idosa de baixa estatura, calçada com umas socas enfeitadas de purpurina e uma maleta de mão onde espreita um secador de cabelo, empurra uma mala de tamanho XL.
Está em videochamada com a filha. Do outro lado do terminal, todos ficam a saber que se chama Palmira Antónia.  
Subitamente, a família apercebe-se que a mala dos fatos de banho ficou esquecida na cozinha. Mas não há tempo para cogitarem muito sobre o assunto. Entretêm o pensamento, convencidos de que talvez consigam comprar uns quantos, a preço de saldo, numa loja de conveniências. 
Entretanto, irritada, Constança discute com um segurança sobre a subida a bordo, prioritária, para passageiros com cães de colo. 
E Gonçalo começa a suar quando se dá conta de que perdeu o cartão de embarque. Para alívio, é abordado por um indivíduo de barba mal feita e olhos escuros, vestido com um poncho colorido, que lhe devolve a possibilidade da partida atempada. Parece que o bilhete para o Éden lhe caíra do bolso, lá atrás.
Gonçalo Vasconcelos agradece, com medo de ser retido no aeroporto após suspeita de ligações a uma rede de contrabando. O peruano afasta-se com ar de pessoa normal e sorriso verdadeiro, depois de murmurar um “buen viaje, señor”, mochila de lona às costas e 'O Estrangeiro', de Camus, debaixo do braço.
Carlota Beatriz, Kika para todos, morre de mega tédio existencial.
Distrai-se a observar um casal duvidoso que é descoberto a tentar passar pela fila de segurança, com cinco garrafas de licor no carrinho do bebé. 
Em seguida, tira uma selfie, a fazer boca de biquinho e com brilho extra no filtro, de cabeça encostada à montra de uma loja duty free com donuts cobertos de creme verde fluorescente, para publicar no TikTok, só para as “melhores amigas”. Sim, porque elas são muitas, mas só umas pouquíssimas merecem que partilhe com elas os momentos mais privados da sua vida. 
O irmão, encolhido na linha de espera interminável para os sanitários, joga Candy Crush no telemóvel. Considera se haverá wi-fi e tomadas USB no avião e pensa que, se morrer ali, talvez os pais sejam reembolsados pela agência de viagens.
Em classe turística, o passageiro sentado à frente dos Vasconcelos, ressona despreocupadamente durante duas horas seguidas.
Quando acorda, pede sopa de lentilhas acompanhada de kombucha fermentada em carvalho. Não compreende o ar de surpresa da assistente de bordo.
Longas horas depois, já na área de recolha de bagagens, Gonçalo e Constança, de cabeça e sapatos inchados, observam o tapete rolante, que se assemelha a uma roleta de objetos caóticos e retorcidos, enquanto um homem discute com a mulher sobre a mala desaparecida. A criança ao lado pergunta-lhes onde estão as férias. Não se escuta resposta nem se vislumbra bagagem.
A viver o receio de que a cena se repita com ele e o delírio possa instalar-se a qualquer momento, Gonçalo dá conta de uma mala com aspeto de Che Guevara, onde uma etiqueta colada com fita adesiva identifica o nome Sinchi Huanca. 
Logo depois, o peruano misterioso que o salvou no momento do embarque, aproxima-se, descontraído, com aquela expressão que o outro entende como a de alguém que conhece o segredo dos espíritos. 
O Vasconcelos acena-lhe com a cabeça, por mera cortesia aeroportuária, e fica a vê-lo afastar-se no meio da multidão. Com olhar jocoso e um tanto ignorante, questiona-se sobre a possibilidade da mala de Sinchi Huanca se encontrar cheia de amuletos, cerâmicas ancestrais e máscaras incas, destinados a fins discutíveis.
Nessa noite, já na cama do hotel, onde o corpo e a mente imploram por descanso, Gonçalo tem sonhos desconcertantes com chapéus de abas largas, colares de sementes a tilintar e rituais primitivos no deserto. Talvez resultado de instantes espiritualmente superiores, um prenúncio de demência ou efeitos do jet lag. 
Acorda, estremunhado, a soletrar a palavra 'huarachico', com Constança a abaná-lo, ao mesmo tempo que lhe fala sobre cenários multiculturais e manteiga artesanal para o pequeno-almoço. 
Esta lembra-lhe, sem piedade, que o spa e o jacuzzi só funcionam das 7h00 às 8h30 e, como tal, é preciso aproveitar porque as férias… são para desoprimir e relaxar!
Na sala do buffet, e já a engolirem umas fatias de pão rústico com sementes de chia e umas poucas rodelas de ananás, eis que chegam os italianos, inundados por um alvorecer mediterrânico. E a inundar o espaço gourmet. 
Abraçado à esposa de vestido amarelo com borboletas e tulipas azuis, água-de-colónia fresca e quilos de entusiasmo, o senhor de bigode à Salvador Dalí e timbre de tenor, anuncia: 
“Amore, guarda… Cappuccino! Frittelle con nutella, Dio mio!”. 
Por trás deles surgem os quatro filhos e filhas e os sete netos, cúmplices no olhar indisciplinado dos que se unem para uma contenda pela melhor mesa da sala, e prontos para uma maratona pelo brunch continental antes que os ovos mexidos “à inglesa”, o parmesão e os donuts de chocolate desapareçam nas bocas alheias.
Com as marcas da almofada ainda gravadas na cara, Martim Afonso foge para o elevador. A irmã e os pais seguem-no. Olham-se silenciosa e estupefactamente, porque se descobrem todos juntos e não sabem o que fazer uns com os outros.
O filho prefere não se encontrar face a face com a família. Afinal, tal parece-lhe uma aventura insólita caída em desuso. Tranca-se no quarto, a jogar com os amigos virtuais sul-coreanos a quem trata por “manos”, mesmo que eles não entendam nada do que ele diz e vice-versa.
O pai, Gonçalo, de polo Lacoste rosa salmão e óculos espelhados, segue para o campo de golfe onde um sueco reformado, chamado Lars, o ajuda a pegar no taco sem que pareça que está a segurar uma raquete de ténis, e a não acertar nas bolas do vizinho da frente. 
Nesse dia, o riso trocista dos outros turistas e os comentários ditos à socapa, ensinam-lhe o significado prático da palavra handicap. 
Mais tarde, Lars convida-o para almoçar e confessa-lhe, entre sorrisos culpados, que os colegas insinuaram que ele, a jogar, mais parecia um flamingo bêbado. Torna-se certo que, futuramente, Gonçalo deverá arranjar espaço na agenda para se tornar poliglota.
Kika desceu atrás da mãe, em direção à piscina, com maquilhagem ultranatural e envolta no seu beachwear todo branco, para parecer despida com estilo, à caça de seguidores com abdominais e bíceps salientes e a expetativa de receber algum convite para um sunset privado. 
Vista pelas onze da manhã junto ao bar da piscina, ao lado de um rapaz que dá pelo nome de “Legend_X”, no Snapchat, antes de desaparecer por várias horas.
Constança lamenta não ter encontrado um modelo à altura do momento e, obrigada a vestir o que considera uma espécie de fato de ginástica demodé, sente-se finalmente despida de constrangimentos e pronta para usufruir a liberdade no peito. 
Há que fazer render as sessões de fitness que pagou, mas não teve tempo de frequentar. Por isso, deitada na espreguiçadeira, munida de um livro de autoajuda que lhe garante um reencontro rápido com a sua essência, alinha com precisão as costuras do biquíni. 
As mulheres conhecem intuitivamente esse fascínio social provocado pelas marcas de UVA deixadas na pele, entre o meio dia e as quatro da tarde. Quando regressar do paraíso, as colegas vão sentir os ossos roídos de inveja daquele bronze que lhes falará sobre dignidade, determinação e a ousadia de quem acredita que a vida é feita de riscos.
Entretanto, nem sequer abre o livro. Por preguiça e porque entende mais proveitoso fazer uma checklist que prove que está viva, feliz e de boa saúde.
Começa com um agradecimento ao universo e uma flor entre os dedos dos pés: #GratidãoÉAmarASimplicidadeDaNatureza. 
Seguido de um vídeo sobre a ondulação da piscina, para lembrar que a água de fora é uma repercussão da serenidade interior: #ViverOAgoraComInsideLove. 
Depois vem a pausa para uma dedicação plena a toda aquela organização decorativa que é preciso cumprir. Um par de horas a lambuzar o corpo com bronzeador, outro para descobrir a luz e o ângulo perfeitos, e mais um tanto a ensaiar a melhor forma de pegar no copo de Martini. Pernas cor de cenoura e nova fotografia com a legenda encontrada em mais quinhentos e dez mil perfis: “Na melhor companhia”. Porque a solidão é sempre muito pouco poética.
Chegada a hora do almoço, Constança afunda-se debaixo do guarda-sol, a comer meia dezena de croissants, enquanto prepara a refeição detox que vai publicar nas redes sociais.
Um pratinho com framboesas, iogurte natural e uma folha de hortelã dentro de um copinho de vidro com formato minimalista. Um refresco de água aromatizada com rodelas de limão, para suavizar o calor durante a tarde. #SerenaNaSuperfícieAViverOAgora.
O hummus orgânico e o smoothie de papaia ficam para a publicação do jantar.
Martim Afonso encomenda a sua refeição através do room service, enquanto Kika come bem acompanhada no restaurante próximo, onde servem o melhor Pad Thai e Satay do mundo. Garantia de Thabo Mandla, o tal amigo anónimo do Snapchat, que é fã de Dudu Deep, carismático influencer de trinta anos que tem um caso de amor com a palavra “tipo”, e fala com uma mentalidade de dezasseis, sobre pilates para a alma, ex-namoradas e gastronomia tailandesa.
Já Gonçalo, em parceria com Lars, prova um excelente prato de ceviche de vieiras com espuma de gengibre, servido no restaurante do hotel. Nota que a mesa dos italianos tem, agora, cinco amigos britânicos a conviverem silenciosamente. No meio da conversa entre ambos, arraçada de inglês, sonha acordado com um café Delta e um pastel de nata como sobremesa. 
Da parte da tarde, com grunhidos mal dispostos perante todos os ruídos que incomodam, Martim Afonso vê-se obrigado a participar na agenda familiar. Visita ao museu, com um grupo de espirituosos turistas irlandeses que gostam de gritar "beoir" e  "yes". 
A atração principal do local é uma pedra onde, segundo dizem os entendidos, se terá sentado um primo em segundo grau de Napoleão Bonaparte.
Por fim, à noite, Constança substitui o hummus e o smoothie por um ligeiro snack vegano e, como todos têm os olhos postos no ecrã azul dos telemóveis, enredados numa indefinida linguagem morta, não lhe apetece tirar fotos nem publicar. 
Cansada e aborrecida, unta a cara com o seu precioso creme antirrugas e adormece como a pedra do museu. 
No outro lado do planeta, num lugar chamado de aldeia, com cheiro a terra seca, e não muito longe de casa dos Vasconcelos, o Zé Reis, vive no epicentro da tranquilidade. Ele, a mulher e a filha.
Os clandestinos que sentem o prazer autêntico de não ir de férias a lado nenhum. 
Curiosamente, vivem tudo. E pasme-se, praticamente de graça. 
Fazem um acampamento na sala e despertam com a música dos pardais nas árvores defronte de casa, dentro de uma tenda armada com lençóis velhos, onde adormeceram todos juntos, a rir das piadas do pai. Despertam, mas levantam-se só à hora que o corpo manda. 
Na varanda, comem torradas estaladiças e bebem limonada acabada de fazer. Depois, vão dar um passeio no mato. O Zé leva com ele uma tesoura de poda e dois pães no bolso. Apanha uns ramos de eucalipto e oferece-os à Paulina, para perfumar a casa. 
A mulher é uma poetisa autodidata que gosta de cuidar da família. Para ser feliz, basta-lhe o sorriso de Leonor, os braços do marido e o aroma do jasmim.
Ao almoço, comem carapaus grelhados na antiga tábua de passar a ferro da avó, transformada em fogareiro, e fruta apanhada no quintal. 
Cheira a campo e todos gostam. 
Depois de retocar a pintura do portão da garagem, o Zé adormece na cama de rede, a ouvir o som das cigarras, enquanto a mulher e a filha lavam o carro e acabam a tomar um banho de mangueira, entre desafios e gargalhadas. Muito melhor do que qualquer parque aquático. 
Acorda com salpicos de água na cara, gritarias e corridas, e o gato do vizinho em cima das pernas. 
A Paulina e a Leonor riem até às lágrimas quando veem o Zé a tentar dançar kuduro em cima da relva molhada. 
Depois, a Paulina traz gasosa, vinho tinto, queijo, mel e biscoitos de canela feitos pela Leonor, para lancharem. O melhor piquenique no jardim, sentados em cima da velha manta que era do avô. 
Enquanto comem, o pai lembra que, no dia seguinte, podem ir visitar a feira medieval a decorrer ali perto. 
Vão sentir o aroma do incenso que a Paulina adora e comer o pão com chouriço e beber a cerveja fresca de que o Zé não prescinde, mesmo se servida num copo de plástico. 
A Leonor esfrega as mãos de contente e recorda, deliciada, que também vai pelos crepes de frutos silvestres.
Agora, pelo amainar do calor, ainda há tempo para uma caminhada à beira mar. Naquela praia, de quando eu era pequena, afirma Leonor. E a Paulina tem saudades do susto da filha bebé quando sentiu os primeiros passos na areia rugosa.
Um pescador observa-os, desconfiado, enquanto apanham conchas e búzios para a coleção da família. Pergunta-lhes de onde são e quando lhe respondem “daqui”, olha-os como se ser dali soasse a falta de identidade. Eles riem-se e esperam sentados pelo pôr-do-sol. Paulina não perde esse espetáculo do horizonte a anoitecer. E tira a única fotografia destas férias, que vai guardar no computador. O resto fica-lhe na memória.
Por fim, após o jantar, assistem os três a uma comédia dos anos noventa, com o paladar de pipocas e marshmallows a adoçar-lhes a boca. Lambem os dedos e nem dão conta. 
Quando apagam as luzes, riem juntos às escuras durante dois minutos. Só porque sim, porque lhes apetece. Leonor boceja e adormece com a cabeça no colo do pai. 
Antes de se deitar, o casal deixa-se ficar algum tempo na varanda de casa. Ainda sentem areia húmida da praia colada aos pés. 
Sob a luz do luar, escutam o cantar dos grilos e olham para o céu estrelado. A Paulina pergunta ao Zé se a constelação por cima deles é O Cisne. Ele não sabe, mas olha para ela com olhos de ternura e responde que sim, só para a ver feliz. 
De seguida, oferece à mulher um poema inventado por ele, escrito num guardanapo de papel e passa-lhe a mão pelo rosto, numa carícia demorada. Diz que a ama. Ela abraça-o e sentem o coração um do outro. 
Sete dias passam depressa. Ou será que não? 
Juntos, mas sozinhos, ansiosos por chegarem a casa, os Vasconcelos regressam de viagem em estado de pré-coma. Tão esgotados como o esgotamento do cartão de crédito, a arrastar as malas de rodas quebradas, coração vazio e Instagram nutrido. Cada um para si, a desejar que as férias do próximo ano cheguem já amanhã para poderem descansar. Orgulho ferido porque souberam que os Lencastre foram para Punta Cana. E isso… sim, é que é ser exótico.
As férias dos Reis são financiadas por um fundo financeiro invisível. Pão quente sobre a toalha de linho da mesa. Tempo disponível. E muito amor. Não existe wi-fi. Só existe vida em cada canto. E eles.
De volta ao trabalho, Gonçalo Vasconcelos olha para o Zé Reis como se este tivesse cometido um pecado por não ter publicado no Facebook, sequer, umas simples fotografias de férias no Algarve. Deve haver algum segredo oculto. Não há possibilidade de ser feliz sem pagar alguma coisa por isso.
— Ficaste mesmo?
— Fiquei.
— Mas fizeste o quê?
— Estive.
O Zé é olhado com descrença. Como um suspeito de homicídio sem testemunhas que lhe sirvam de álibi, porque na hora em que o crime foi cometido, se encontrava no WC. 
Mas sorriu apenas, sem sentir necessidade de justificações. A única prova de que precisava era a paz que trazia consigo. 
Em síntese, é como dizia Bernardo Soares, o seu amigo Fernando Pessoa: “Para viajar basta existir. É em nós que as paisagens têm paisagem. Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China…, onde estaria eu senão em mim mesmo?”.
Ir de férias tem classe. É elegante e de bom gosto. É viajar, é resort, é praia, é pôr-do-sol, é muito Instagram. Ficar de boca cheia de histórias para contar até ao Natal. 
Já existir… bom, existir é apenas poder repetir a viagem sempre que se quiser e ficar de coração cheio para lembrar, sem precisar de fotografias, durante toda a vida. O supremo luxo que só uns poucos privilegiados conhecem. Esses que, nas férias, até podem dar-se ao luxo de ter tempo para escreverem umas quantas palavras sobre os absurdos dos que vão de férias.
Sim, são importantes as férias. Ir para fora... mesmo que seja cá dentro. Porque existir é para totós. E, nisso, felizmente, alguns ainda conseguem ir longe.



Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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