(Colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Por vezes, confesso que fico na dúvida se escrevo em Português… Os factos que aqui trago, na sequência da publicação de ontem, correspondem a uma realidade do século XIX, ou seja, algo com mais de 150 anos! Para que claro fique, o que aqui será exposto não respeita às Consoadas de há 50 ou 60 anos (aquelas que entram no âmbito do «desde sempre me lembro»...). Antes o faz relativamente às Consoadas de há 150 ou 160 anos, um tal tempo a que designei por «dos nossos bisavós». Ora, suspeito que já não haverá ninguém que se recorde das Consoadas de há 150 anos… Ou estarei equivocado, “pur’i”…
E há 150 anos (repito, não é há 50!...), segundo os relatos que nos foram deixados, já se celebrava, condignamente, a Consoada. Nessa época, uma celebração eminente e quase exclusivamente de cariz familiar. Tempos outros nos quais a criançada se divertia a comer castanhas ao borralho, prenda maior desse dia! Enquanto os adultos, particularmente as mulheres e as suas criadas, quando as havia, se dedicavam às frituras de Natal, nessa época, mergulhadas em azeite, que ainda não havia óleos para ninguém. Aí incluídos os bolos de bacalhau, as rabanadas, sonhos de abóbora, de uma variedade particular à qual chamavam «gerimú», havendo ainda referências a um doce feito com chila, à qual chamavam o estranho nome de «zergalhota» ou «cirgalhota».
Frituras a que os «verdadeiramente pobres» não tinham acesso. A esses restava o natalício espírito caridoso, sentimento que vulgar era. E lá tinham direito ao seu bacalhau, a um pão, a um “cibinhu’e” de azeite, a outro “tantinhu’e” de vinagre, a “ua malga” de mel e, em algumas circunstâncias, a um “copetchu’e” de aguardente ou de água-pé. Rezam os relatos dessa época que, nas famílias mais carenciadas, na ausência de pratos, comiam todos do mesmo alguidar, à volta da lareira sentados, alimentada por lenha que, nessa época do ano, lhes era permitido recolher dos campos.
Os «remediados» não necessitavam da caridade. Ao longo do mês de Dezembro, mantinham a suficiente provisão de ovos, produto que também servia para equilibrar as caseiras finanças, nenhum sendo vendido nessa época. Pois haveriam de servir para os acepipes natalícios… Famílias «remediadas» que parece já tinham instalado o hábito do consumo de bacalhau e de polvo, adquirindo-os nas feiras. Para o segundo dos produtos, é curiosa a constatação de que era comprado seco, servindo depois para cozer e para um prato que parecia fazer parte da ementa da Consoada: arroz de polvo.
Arroz que, conjuntamente com o açúcar, na época escrito «assucar», eram igualmente adquiridos nas feiras, ou nos «vendeiros». Esta refeição que, nalguns casos, vem referenciada como tendo a companhia de «rabas», «olhos de couve» (deveriam ser os da tão célebre “coube-trontcha”) e, veja-se, cebolas! Que batatas, como já explanado, ainda raras eram no consumo humano. Tudo isto era, naturalmente, bem regado “c’ua boa pinga”. Vinho que, pelos vistos, também servia para, no final da refeição, ser bebido quente, misturado com mel, “pr’áquecere us pur drentus’e”.
Por fim, os «abastados», que já os havia (e não eram poucos), para lá dos comuns bacalhau e polvo, tinham direito a ementas outras, onde surgem referências a carnes, a arroz primavera ou a legumes diversos, destacando-se as ervilhas. Nas sobremesas vinham incluídos pudins, doce de leite ou arroz de leite. Para lá destas diferenças, o vinho quente com mel parecia ser substituído por bebidas mais refinadas, aqui entrando o vinho do Porto, o moscatel ou o anis.
E “prontus’e”… Era mais ou menos assim a Consoada, no tempo dos nossos bisavós, há 150 anos (!!!), desde os «menos afortunados» até aos «mais abastados».
Foto: Colecção SCA
Rui Rendeiro Sousa – Doutorado «em amor à terra», com mestrado «em essência», pós-graduações «em tcharro falar», e licenciatura «em genuinidade». É professor de «inusitada paixão» ao bragançano distrito, em particular, a Macedo de Cavaleiros, terra que o viu nascer e crescer.
Investigador das nossas terras, das suas história, linguística, etnografia, etnologia, genética, e de tudo mais o que houver, há mais de três décadas.
Colabora, há bastantes anos, com jornais e revistas, bem como com canais televisivos, nos quais já participou em diversos programas, sendo autor de alguns, sempre tendo como mote a região bragançana.
É autor de mais de quatro dezenas de livros sobre a história das freguesias do concelho de Macedo de Cavaleiros.
E mais “alguas cousas que num são pr’áqui tchamadas”.

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