quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Os primeiros tempos da república em Bragança – notícias e problemas

Para termos uma ideia mais nítida do que se teria passado nos derradeiros anos da Monarquia e nos primeiros momentos do novo regime, podemos continuar a “navegar” pela imprensa. Como fomos acentuando, deparamos com artigos, mais ou menos “catequéticos”, que publicitam ideias e doutrinas republicanas; com artigos de opinião e notícias que documentam ideias, aspirações – generosas intenções –, anseios e desígnios republicanos; com informações sobre alguns dos muitos problemas existentes e sobre projetos que, por vezes, não passam disso; com medidas pensadas e equacionadas que, em muitos casos, não chegaram a ser postas em prática. Problemas de âmbito local e de cariz nacional são tratados e discutidos nos órgãos próprios do governo local, debatidos na imprensa, mobilizando, porventura, importantes setores da população.



Como já fomos vendo, era ingente a preocupação de propagandear e mentalizar, de ensinar a justeza das 
grandes causas da República – por oposição à doutrina e à prática monárquicas – e de afastar medos em relação a princípios, decisões e reformas republicanas.
Em A Pátria Nova de 23 de novembro, tecem-se louvores às realizações e à “obra colossal” da República.
Procura-se tranquilizar os espíritos: “A República acha-se hoje mais consolidada que muitas que há anos figuram como tais no mapa das nações.” E esta idílica visão: “Foram-se os frades. As freiras, alegres umas, tristes outras, ora emigraram, como aves para sempre feridas, ou andam por cá, de xaile e lenço, chilreantes como cotovias que viram abertas as portas da gaiola”. Prepara-se a “separação da Igreja do Estado”.
O autor não sabe o que mais se deve admirar: “se a heroica revolução de outubro”, se a “obra administrativa, política e social que se seguiu ao ingente feito”. São enumeradas algumas importantes medidas: “aboliu-se a Câmara dos Pares, verdadeira cidadela do preconceito, constituída por imbecis que herdavam o lugar, pelos mitrados que eram membros natos e ainda pelas mediocridades que cercavam os Braganças”. Na ordem social, destaca-se a lei do divórcio, um “trabalho admirável.”
Com “Salvos pela República” prossegue a doutrinação. O artigo, de Augusto Moreno, enaltece as superiores virtudes deste regime, em especial no campo social. A “queda da Monarquia não significa apenas a substituição de D. Manuel pelo sr. Teófilo Braga. O novo regímen – tudo o anuncia – será sobretudo um outro, e muito diferente, modo de ser social”. A Pátria Nova de 4 de dezembro enumera as grandes medidas já tomadas – inquilinato e divórcio – e as que se esperam: “sufrágio universal, registo civil, separação da Igreja do Estado”.
A esperança desmesurada nas potencialidades miríficas da instrução, continua a ser reafirmada, como se pode ver nos números de 2 de novembro de 1910 e de 19 de janeiro de 1911. A instrução primária é considerada “a pedra angular sobre que a República há de assentar firmemente o novo edifício social”. É emitida uma circular do “subinspetor do círculo escolar de Bragança”, com diretrizes sobre o que os professores deviam pensar e ensinar. Também a República não persegue a religião, como o povo imagina, “só expulsa os jesuítas, já expulsos pelo Marquês de Pombal” e “suprime as comunidades monásticas e dissolve todas as ordens congreganistas de freiras ou frades”, já extintas por José António de Aguiar e Anselmo Braamcamp. Há sugestões para uma melhor gestão das escolas, entre, as quais se destacam a “coeducação dos sexos”. Continua a propor-se a transformação das quatro escolas primárias de Bragança em duas escolas centrais”.
Nestes combates em prol da reconversão ética e moral, procura-se pôr termo ao caciquismo e à “cunha” que fizeram “abandalhar” a vida pública. Com “Abaixo a empenhoca”, faz-se uma denúncia da “indecente” instituição nacional da “cunha”. “Empenhocas” para tudo – só assim as coisas andavam –, mesmo quando se tinha razão e se cumpriam todos os trâmites legais. Nada se fazia “sem recorrer ao cacique que apadrinhasse” a pretensão. Urge que tudo isto acabe. “Apesar de o regímen ser novo, há muita gente velha”.
Alves da Veiga nasceu no dia 28 de Setembro de 1849 em Izeda (Bragança)
Outra das questões debatidas, a concitar frequentes artigos de opinião, respeita ao mundo rural, que urgia promover e desenvolver. A agricultura, a silvicultura, a pecuária e os problemas humanos e sociais do universo campestre merecem intervenções, bem fundamentadas, feitas por estudiosos e especialistas de mérito. É, de facto, de qualidade, a “doutrina” produzida em todos estes domínios. São numerosos os textos sobre os incomensuráveis proveitos que resultariam da arborização do Distrito, como se pode ver pelos escritos de António de Moura Pegado, no Jornal de Bragança, em julho de 1910. O meio rural, ainda “medievo” (não tenhamos medo da palavra), era marcado pela miséria, por condições muito precárias de existência, por infindos problemas de higiene e salubridade, por doenças e elevada mortalidade, pelo êxodo e pela emigração.São essas condições que se denunciam, e que se tentam debelar. No Jornal de Bragança de 1 de junho de 1910, o fenómeno da emigração era visto com um olhar realista e certeiro, concluindo-se que o êxodo rural contribui para agravar ainda mais a difícil situação nos campos. Ter-se-ia verificado um verdadeiro êxodo “depois da devastação filoxérica” (1890) e das campanhas de “incitamento” “subvencionadas” pelos governos americanos.
“O amor da terra natal era sufocado pelas imposições de miséria… Ficam os inválidos, ficam os velhos e ficam as crianças que são hoje os operários rurais.”
Discutem-se as questões agrárias. A dos baldios é das mais debatidas. Especialistas e homens informados, ligados à agricultura, pugnam pela reconversão dos terrenos maninhos, incultos, e dos baldios. Depois do triunfo da revolução, continuam a ser feitas propostas e tentativas – numa lógica capitalista e de afirmação do individualismo –, de aproveitamento desses terrenos.
No domínio da saúde pública, chama-se atenção para os múltiplos “agravos higiénicos” que molestam as aldeias do Concelho. Os párocos e os professores deveriam ter um importante papel na alteração deste estado de coisas, mas é “o barbeiro que, pelo magro estipêndio de alguns alqueires de centeio”, exerce “cumulativamente o mister de Fígaro e de mezinheiro emérito”. O autor chama a atenção para a necessidade das vereações intervirem, em especial – o que seria de “primacial importância” – no que respeita à água que é responsável pela “transmissão de doenças: as febres tifoides, as enterites, as disenterias”.
Para melhor compreendermos o que se passava e para vermos como era muito o que aqui chegava e o que se discutia, são de registar alguns ecos de perplexidades e de receios que se faziam sentir perante as medidas que o Governo Provisório tomava e as que se preparava para tomar. Um articulista do Jornal de Bragança, em 30 de outubro de 1910, no artigo “A Separação da Igreja do Estado”, já manifestava a sua discordância face ao que poderiam ser medidas e decisões excessivas e desaconselháveis. Não se justifica – segundo ele – que o Governo, que não está legalmente confirmado pelo voto, vá fazer, “por uma providência ditatorial”, “tão profundas modificações em assunto de tal magnitude” no campo religioso. E ainda se acrescentava: é um Governo levantado por uma revolução “que, embora triunfante, não pode bem chamar-se vencedora”. Recomendava-se moderação, o que, aliás, era aconselhado pelas características da revolução portuguesa. “É certo que no momento revolucionário se conseguem muitas vezes reformas profundas nas tradições e nos hábitos que dificilmente se fazem em circunstâncias normais; mas temos de reparar que a nossa revolução não se firmou pelo terror dos vitoriosos, mas pela adesão de quase todo o povo.”
A receita era consolidar primeiro o regime republicano e fazer propaganda “não contra a Igreja, que essa pode ser prejudicial e contraproducente, mas contra os seus privilégios”, como se lê numa carta de Machado de Araújo, de 25 de outubro. Prosseguem as recomendações que preconizavam ponderação nas medidas que levariam à lei da separação. A separação não pode ser a “supressão da Igreja pelo Estado, de onde resultarão grandes perturbações em todas as províncias”.
Como é sabido, havia republicanos que pensavam do mesmo modo. Para além de recearem exageros provocados pela intervenção na esfera religiosa, temiam as resistências sociais que tais medidas podiam suscitar.
Queria-se uma solução que passasse por eleições e, consequentemente, pela escolha de um governo legitimado pelo sufrágio. A 30 de novembro de 1910, já se denunciam os males resultantes do exercício de um Governo provisório. “É isto um grande mal, porque a força está substituindo o direito e, pelo paradoxo das coisas, nessa força é que reside a maior fraqueza”. “Sente-se já o ruído… da onda popular”. “Só uma assembleia, representativa de todos os legítimos interesses nacionais… tem a força incontrastável do direito para submeter todas as rebeldias”.
A difícil situação laboral – com o intenso surto grevista (em especial no setor ferroviário) que afetava o País – também preocupava as forças da governação local e os republicanos brigantinos. A 13 de janeiro de 1911, em “pública assembleia”, nos Paços do Concelho, convocada pela Comissão Municipal para condenar o movimento grevista e manifestar apoio ao Governo Provisório, Alves de Morais, o “velho” republicano, ao agradecer ao povo de Bragança e à Comissão, “expressa o seu júbilo por ver que a ideia da República está encarnada no espírito de todos e principalmente das classes ilustradas”, e condena as greves pelo que “atualmente tinham de antipatrióticas e de inoportunas”.
A conflitualidade religiosa também está presente. Para auscultar problemas e contribuir para a aceitação do novo regime, o Governador Civil não se limita a visitar os quartéis, também inspeciona o Seminário – o que aconteceu a 29 de outubro. A melindrosa questão religiosa, que podia acentuar clivagens e provocar resistências, era de difícil gestão, tanto mais que o bispo de Bragança não era consensual.
No jornal de Raul Teixeira, escreve-se que o bispo de Bragança, “essa criatura turbulenta e inchada de ódios, acaba de demitir o dr. Manuel da Nóvoa de professor de preparatórios do Seminário”. Não se poupam qualificativos depreciativos: a inteligência “adiposa do Sr. Mariz”; “o despeito mesquinho, a vaidade balofa, o fátuo melindre”.
E acaba com um pedido veemente: “Encerre-se o Seminário e não haja só justiça para o bispo de Beja.” Pedia-se para tratar o bispo de Bragança com a mesma receita que fora aplicada àquele prelado.
João José de Freitas, político republicano com uma forte ligação a Bragança, chegando a ser seu Governador Civil
Relata-se uma insubordinação contra o vice-reitor e que o Governador Civil ordenará “certamente” uma sindicância para apurar a verdade, entendendo-se que tal é a consequência de se conservar à frente do Seminário um indivíduo imposto “pelos membros da Companhia de Jesus”, o que sobremaneira ofende o espírito liberal desta Cidade”.
Há notícias, relacionadas com a esfera religiosa, que documentam os novos tempos que se viviam. No texto “Vítimas da reação” relata-se o caso de dois irmãos que foram alvo da perseguição “monárquico-clerical” e o júbilo, agora sentido, pela sua libertação da Cadeia da Relação do Porto. Acusados de “atentado anarquista” e condenados pela explosão de uma bomba no Paço Episcopal, em 13 de dezembro de 1909, eram agora recebidos como heróis e esperados por centenas de pessoas na estação de caminho-de-ferro de Bragança, apesar do “impróprio da hora”, com vivas à República, ao Governo, à Liberdade.
E deparamos, ainda, com notícias que dão conta de algumas perturbações. Sinais, aparentemente menores, que indiciam um certo mal-estar e que traduzem descontentamento são visíveis na Cidade, nos fins de 1910 e inícios de 1911. A Pátria Nova relata acontecimentos preocupantes para os responsáveis republicanos, como, por exemplo, o facto de os alunos do Liceu resolverem retomar o trabalho escolar só depois do dia 6 de janeiro de 1911 (isto é, prolongando as férias de Natal), sem que o reitor e o Governador conseguissem demovê-los.
Acusações e ataques anónimos – ditos caluniosos e torpes – são relatados no artigo “Torpeza”.Os suspeitos eram, para o jornal republicano, os do costume. São espalhados, “por mão criminosa”, escritos “tendentes a indispor e malquistar com a população os republicanos mais em evidência”. “Virtuosas e honestíssimas senhoras casadas não têm escapado a esses nojentos caluniadores.” E em comentário: “os processos são puramente jesuíticos e desta maldita seita foram apenas expulsos do País os seus membros de roupeta”. “Os de batina, saia, casaca, farda e até de jaqueta… por aí se ficaram alapardados”.
Denunciam-se gestos reaccionários e provocatórios dos sequazes do “padre Cabral e de Couceiro”: “é muito curiosa a medalhinha que usam os partidários do senhor D. Manuel…, numa das faces a Imaculada Conceição, cercada com esta legenda: mostrai que sois nossa mãe; na outra os seguintes santos: S. José, S. Luís Gonzaga e Santo Inácio de Loiola, todos em cima de coroa real… É com esta gente que pensam restaurar a Monarquia…, sem se lembrarem de que foram estes mesmos que a perderam… Divertidíssimos imbecis, ide-vos fiando na Virgem, que o mais que conseguireis é enganar os tolos…”.
Porque há desconfianças, em relação à legalidade de atos administrativos das “câmaras monárquicas”, são decididas sindicâncias à administração municipal de todas as vereações monárquicas e de todos os secretários, desde o ano de 1902. Na reunião de 10 de novembro, o Presidente propõe recuar esta data para 1886, acabando por se fixar o ano de 1900.
A conflitualidade social que é documentada, num meio em que escasseava o operariado e ainda mais o proletariado, diz respeito, fundamentalmente, a algumas perturbações laborais causadas pelos tipógrafos – o que vai criar, por vezes, perturbações na publicação atempada das folhas locais. É assim que, por exemplo, no número de 3 de novembro de A Pátria Nova, se fala em “desobediência cometida pelo pessoal tipográfico” para com o chefe, o que impediu a publicação de um número do jornal. O Jornal de Bragança também é afetado, tendo saído com atraso.
Notícias breves do quotidiano, que podem passar despercebidas, assumem, se vistas à luz do contexto da época, uma relevância significativa.
Nos fins de novembro, ainda se realizam manifestações de fé republicana. O Governador Civil, que se havia ausentado para Lisboa, é recebido na gare pelos “rapazes do liceu”, com “a respetiva tuna”. João de Freitas, das janelas do hotel, “agradeceu a manifestação… numa alocução eloquente”, refere A Pátria Nova de 23 de novembro.
Também se concretizavam gestos de amor à Pátria republicana, que se traduziam, por exemplo, na entrega de donativos para melhorar a situação financeira do País. Um proprietário de Izeda, cujo nome não se revela, mas provavelmente um republicano crente e ativista, entrega ao doutor Domingos Frias, vice-Governador Civil, a quantia de 10$000 réis para a “subscrição aberta para o pagamento da dívida flutuante externa”.
Para além dos mais variados problemas que faziam parte da vida da Cidade, também se registavam episódios e casos relacionados com a perturbação da ordem pública, que caíam no âmbito da agitação social. O primeiro incidente sério é catalogado como “uma grave desordem”. A notícia pretende ser objetiva. Domingo, dia 15 de janeiro de 1911, pelas 9 da noite, registou-se na Rua Alexandre Herculano um “grave conflito com a polícia”. Um agente policial sofreu “um golpe na cabeça e uma facada no braço”, tendo sido “morto com um tiro o pedreiro Manuel Outeiro e ferido com outro tiro o trolha João dos Reis”. “Ao que nos contam” – como se relata – tudo teria começado com alguns jovens, de 15 a 18 anos, que, na Rua Direita, gritavam “Viva a Monarquia. Abaixo a República”. Não obedeceram a um cabo da polícia que os ameaçou de prisão. A “algazarra” prosseguiu… O cabo pede a colaboração de dois polícias. O encontro entre os desordeiros e as autoridades deu-se na “junção da calçada do rio com a Rua Alexandre Herculano”. Um dos jovens foi preso, enquanto os outros se evadiram. Juntam-se populares que querem “tirar o preso” à autoridade, acabando por “desarmá-la”, provocando-lhe “ferimentos”. “Vendo-se ferido, um dos guardas desfechou o revólver caindo morto o infeliz Manuel Outeiro, com o coração atravessado por uma bala”. Cresce a “indignação popular”, e o polícia atinge um outro cidadão, cujo “estado é grave”.
O alvoroço leva ao local João José Alves, elemento da redação do jornal e vereador. O povo não deixa remover o cadáver. O Governador Civil, informado do que se passa, dirige se com amigos “para o local do conflito, fazendo ver ao povo que seria punido quem tivesse originado a desordem, quer fosse a polícia, quer fossem os populares”.
O morto é levado e o Governador acompanha-o. Certo é que tudo começou com a prisão de um dos jovens que, nos primeiros dias de 1911, davam “morras” à República. Simples irreverência juvenil, ou mais do que isso? Acontecimento isolado, com pouco significado, ou episódio que indicia a existência de descontentamentos em relação ao novo poder, a que estes jovens dão voz?
A reação popular é difícil de avaliar: traduz apenas um gesto de solidariedade para com o preso, ou tem um significado social e político?

É incontestável que as ocorrências merecem a classificação de “desordem grave” – assim são percecionadas –, que há desobediência à autoridade, que há desacatos e que há vítimas. Tinha-se perturbado a ordem, mas, sobretudo, tinha-se invetivado a República.
As armas são de fogo, mas tudo o mais – cenário, ambiência, intervenientes e personagens, com as suas movimentações, comportamentos e interações – parece saído, em boa medida, de algumas páginas de Fernão Lopes. Há algumas coincidências e semelhanças: ajuntamentos, tumultos, solidariedades, cumplicidades; a presença da suprema autoridade, que rapidamente aparece, que dialoga com os populares e que tem uma ação pacificadora. Falta, porventura, o talento narrativo do cronista.
Por se recear a ocorrência de mais alterações da ordem, e com o intuito de prevenir males maiores, as autoridades adotam soluções que se querem persuasivas e dissuasoras: “durante a noite, a polícia da Cidade” passa a ser feita pela força militar de Infantaria n.º 10, “em patrulhas”. Como acentua o repórter, “o sossego tem sido completo”. Reina novamente a ordem…

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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