Já houve quem tivesse que deixar o gado alimentar-se no terreno que devia germinar aveia para grão EVR ENRIC VIVES-RUBIO |
Os olhos de Pedro encolhem atrás dos óculos escuros quando olha para o sol que anda a banhar os campos desde Março do ano passado. “É sempre este céu azulão”, cor infernal, diz ao volante da carrinha que deixa para trás uma nuvem de poeira. Passa nas margens de um ribeiro estagnado há quase um ano, desde que não chove. Nunca em 45 anos vira giestas, silvas, até sobreiros (endógenos desta sub-região) secarem à beira da estrada. “E dizem o mesmo as pessoas com 80 e tais daqui até Mogadouro, até Mirandela, em toda esta zona demarcada do Douro”. Aqui reclama-se que “não, a seca extrema não acabou”.
É-lhe fácil ilustrar esta preocupação na cor amarela da flora, nos camiões cisterna estacionados nos campos, nas garupas das vacas mirandesas à vista da “vida a pele e osso” que alguns destes animais levam, dada a falta de pastos. A seca é crítica para as culturas anuais. A aveia que Pedro semeou entre Setembro e Outubro tem poucos centímetros, quando já lhe devia dar pelos joelhos. A continuar sem cair pinga do céu, não volta a adubar este campo: “Fica como está”. O que à terra deitou, para a terra perdeu.
A mesma situação, mas com um agricultor mais velho. Também membro da Associação de Agricultores do Nordeste Transmontano, que Pedro integra, - conta-nos o técnico agrícola José Mário Cruz –, o homem teve que deixar o gado alimentar-se no terreno que devia germinar aveia para grão. Matou uma das preocupações: conseguir dar de comer aos animais. Mas qual a alternativa? “Não há, é um campo vazio”, diz José Mário Cruz, com um riso de impotência. “As pessoas não semeiam, não sabem se em Abril e Maio vão conseguir pôr milho, porque é provável que não tenham água para o regar. Muitas acabam por desistir [dos cereais]. ‘Com esta seca? É fazer-lhes o enterro’, dizem-nos”.
A Pedro vale-lhe ser novo e ter “ali o coração” – residente na casa agrícola de família onde voltou há 14 anos depois de em Inglaterra se ter formado em engenharia aeronáutica e ter feito carreira no Brasil –, para não deitar já a toalha ao chão. “Mas aos mais velhos, quem os segura?”
“É como se fosse Junho”
Na semana do Carnaval, em Trás-os Montes, os olhos (com alguma esperança) viraram-se para o céu, que “parecia que vinha abaixo de tão escuro que estava”. “Mas não caiu nem uma gota”, descreve José Mário, que lembra ainda os ventos, que tem varrido as terras, secando o que já era seco. E as últimas análises que fez aos solos, há cerca de duas semanas, comprovaram-no: “Não há humidade nenhuma, nenhuma. É como se fosse Junho”.
Também as culturas permanentes “estão a ressacar”. Estão secos por dentro os ramos das vinhas acabadas de podar. O olival tem folhas verde acinzentadas, quando devia estar a brota de uma cor escura. “Quando rebentarem, o que vai acontecer mais cedo por causa do aumento das temperaturas, vai tudo parecer muito bonito, mas é uma falsa esperança. Se não chover continuarão a ficar fracas, débeis. Até que se vão esgotar”, descreve Pedro Lima.
Eloi Pereira, montalegrense da Associação de Agricultores das Terra do Barroso e Alto Tâmega, diz o mesmo: “Se chegarmos ao mês de Maio sem águas, vai ser um ano catastrófico para os centeios (já semeados), e para o milho e a batata. E não acho que ninguém lá em Lisboa está preocupado com isto”. Insistimos: qual a alternativa para os agricultores que se dedicam a estas culturas? “Não há”, a não ser uma compensação estatal, reclama.
Caminhar para o litoral
Um terreno pontilhado por charcos, novos furos e outras tentativas de aproveitamento das águas que de outra forma se perderiam. O investimento descrito por João Saramago, produtor de citrinos e vinha em Baião, já vinha a ser preparado nos anos recentes – o facto da produção se situar num declive fazia com que perdesse muita água - e tornou-se premente nos últimos meses. Ainda que ali “nunca a seca foi extrema”, antecipa uma queda na produção de 20 a 30%.
Como seria de esperar, ao caminhar para o litoral, a chuva desafogou algumas preocupações. Caso contrário andaria Eugénio Vítor a ouvir as queixas que agora são raras na Associação regional de agricultores de Alto-Minho, com sede em Viana do Castelo. “Como a chuva era macia infiltrou-se melhor e tem ajudado a recuperar o caudal das barragens, os lençóis freáticos e muitas culturas que estavam na corda-bamba”, ilustra. Ali, “são os insectos – a mosca do mediterrâneo, em particular – que estragam tudo”.
“Mas é necessário que cada vez, quando se faz a estratégia para uma exploração, as pessoas pensem na extracção, controlo e gestão de água para minorar efeitos de uma potencial situação de seca”, que se avizinham mais frequentes, acredita Saramago, também membro da Associação dos Produtores Agrícolas do Vale do Sousa e Tâmega. A própria intensificação das culturas assim o obriga.
De volta a Trás-os-Montes, Pedro Lima insiste em que se visite o território, para que se não se confunda o litoral do interior. Em situação de desvantagem neste jogo de sobrevivência às alterações climáticas, as suas cabras serranas já comem a rama e casca dos pinheiros. “A seca tornou-as verdadeiras sapadoras”, ironiza o dono, o que lhe lembra uma comparação. “Os incêndios foram uma catástrofe fulminante e isto tem a mesma dimensão, mas é uma morte silenciosa. E lenta. E, mais uma vez, ninguém a está a impedir”.
Margarida David Cardoso
Jornal Público
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