Depois da rescisão, o empreiteiro pediu à agência do Banco de Portugal de Bragança a reforma sem amortização de três letras no valor de 16,1 contos.
A agência exigiu o pagamento imediato de dois contos. Cruz pagou um e apresentou como fiador Simão Costa para a restante quantia. Algumas destas letras eram saques de Abílio Beça, que aceitava sucessivamente a reforma das mesmas sem amortização, até que, no final de 1906, o Banco de Portugal alertou a sua agência para não permitir mais ações desta natureza a não ser que sejam acompanhadas de amortização do capital em dívida. Se o valor da amortização não fosse suficiente, João da Cruz deveria “garantir a s/ responsabilidade com hypotheca de propriedade”.
Em Lisboa e no Porto os credores de Cruz não foram tão compreensivos: para reaver o seu dinheiro, o Crédito Predial Português e a Carris do Porto interpuseram processos de execução hipotecária contra o empreiteiro (havendo decerto mais), ficando com várias das suas propriedades.
De realçar que as verbas aqui indicadas dizem respeito apenas a alguns empréstimos tomados em Lisboa e Porto e a algumas letras descontadas na agência do Banco de Portugal de Bragança. O valor agregado não justifica o custo inteiro da obra incorrido por Cruz, ou seja o crédito mal parado da responsabilidade do empreiteiro era muito mais volumoso.
Na altura, o empreiteiro escreveu um pequeno livro onde narrou a sua versão da história, classificando o contrato de “immoral e leonino”, imposto por “homens de nenhuma consciencia”. Na resposta, a CNCF considerou “falsas, insidiosas e gratuitas as accusações que nos faz” e devolveu-lhe as censuras.
No seu livro, João da Cruz frequentemente se queixa do contrato. Por que o assinou, então? O próprio responde: “A explicação está apenas na minha boa fé; em ter eu sido sempre empreiteiro do Estado e portanto habituado a attenderem-me todas as justas reclamações”.
A justificação é razoável. Por norma, o Estado era um cliente mais permissivo do que uma companhia privada. A experiência de João da Cruz com o Ministério das Obras Públicas apontava nesse sentido.
O empreiteiro seria ainda um homem mais habituado a negociar à base de acordos verbais. Quando assinou o contrato em 1903, “manifestando eu hesitação em acceitar tão duras condições […], pelos srs. Directores da Companhia Nacional foi expontaneamente affirmado que […] que nunca seriam applicadas as condições de maior dureza afóra do usual desde que eu provasse estar disposto a bem cumprir”.
Além disso, Cruz negociava com influentes indivíduos da alta sociedade lisboeta. O seu percurso de vida munira-o decerto de uma enorme experiência negocial, contudo, é improvável que alguma vez tenha lidado com homens como Henry Burnay ou os diretores da CNCF. Acanhado perante a distinção dos seus parceiros, firmou o contrato de 6 de julho de 1903.
Por outro lado, o temperamento dos transmontanos, “cujo orgulho consistia em levar a cabo qualquer façanha, mesmo que arriscada”, pode também ser uma resposta. Tratava-se afinal de um caminho-de-ferro, que podia constituir o negócio da sua vida. O percurso de Cruz mostra que ele era um empreendedor habituado a arriscar. Na memória familiar dos seus descendentes ficou a imagem de “um homem que nunca teve medo do futuro”. Emigrara para o Brasil quando poucos dos seus conterrâneos o faziam e já em 1895 contraíra um empréstimo de vinte contos hipotecando “todos os seus bens em geral”. Com a ferrovia, só um quilómetro de via valer-lhe-ia dezassete contos e além disso o seu nome ficaria para sempre ligado ao maior melhoramento da história da província. Desta vez, a aposta foi demasiado alta e o jogo estava viciado à partida.
A CNCF sabia que João da Cruz tinha crédito suficiente para, pelo menos, iniciar a obra e foi permissiva até praticamente ao fim da mesma, o que era atípico, pois as concessionárias raramente eram compreensivas com os imprevistos. A companhia já podia ter denunciado o contrato muito antes, pois desde 1904 que havia salários em atraso. Todavia, nunca exigiu ao empreiteiro “a prova autenticada de que estavam em dia todos os pagamentos do pessoal empregado”. Era algo que não lhe interessava. A CNCF deixou o empreiteiro continuar a obra, concedendo-lhe apenas o mínimo indispensável, através dos adicionais, para levar o caminho-de-ferro até perto de Bragança. Quando isto aconteceu, já com um atraso substancial em relação ao acordo, e perante “a minha confissão de que tinha exgotado todos os recursos pecuniarios para conseguir o cumprimento do contracto”, avançou para a rescisão contratual.
A contra-argumentação da CNCF face às acusações do ex-empreiteiro parece também falaciosa. A companhia alegou premeditação de João da Cruz de parar as obras quando viu que da sua continuação não auferiria mais lucro. Se o fizesse, incorreria em todas as penalidades previstas no contrato. No negócio feito com António Manuel Teixeira, a CNCF viu um subterfúgio para Cruz proteger as suas propriedades dos credores, uma vez que Teixeira seria seu feitor. No entanto, o mesmo indivíduo moveu um processo de execução de dívida contra Cruz (através do Crédito Predial). Por fim, quem verdadeiramente lucrou com a empreitada foi a companhia e não o empreiteiro, como se pode ver no gráfico seguinte.
Entre 1892 e 1910, o rendimento líquido extra-tráfego estagnou. A exceção foi precisamente o período da construção da linha.
O papel de Abílio Beça neste processo não é totalmente conhecido. Pusemos a hipótese de ter empurrado João da Cruz para a assinatura do contrato, que decerto sabia draconiano, mas com o qual podia dizer, pelo menos temporariamente, que realizara a promessa de levar o caminho-de-ferro a Bragança (e com o qual lucraria através dos empréstimos que fez ao empreiteiro). Contudo, Cruz em nenhuma parte da sua justificação censura Beça. Aliás, nem os jornais seus adversários tiraram partido do desaire do empreiteiro e mesmo na memória da sua família ficou a ideia de que ambos eram bons amigos. De facto, nos anos a seguir à rescisão e pelo menos até 1909, os dois homens mantiveram relações negociais, com João da Cruz a aceitar diversas letras de Abílio Beça, descontadas em Bragança.
O valor da dívida e a frequência das letras dão a entender que se tratava de um adiamento constante do pagamento do débito. Além de Abílio Beça, João da Cruz aceitou letras de Henrique da Cunha Pimentel e Narciso Garcia. Sem mais dados, não podemos, porém, adiantar nada sobre o tipo de relação com estes credores. Certo é que Cruz hipotecou ao Banco de Portugal várias propriedades suas para garantir a sua responsabilidade por letras descontadas. A situação do empreiteiro teve impacto sobre as contas da agência, que em 1907 reconhecia que as operações com os diversos concelhos tinham que “contrabalançar a liquidação que se vai fazendo da responsabilidade directa e indirecta do ex-empreiteiro Lopes da Cruz”, embora não tivesse “receio de boa solvabilidade, visto que [a dívida] […] está na sua maior parte, em mãos de proprietarios”. Na pior das hipóteses, as propriedades destes devedores ressarciriam as suas dívidas.
Em 1913, o débito de Cruz ainda não estava completamente saldado, mas o empreiteiro perdera uma grande parte do seu património. Naquele ano, o empreiteiro continuava a residir no solar em Selores e detinha apenas algumas casas e duas quintas. Faleceu em julho daquele ano, sendo sepultado no cemitério de Selores. Do juízo de direito de Carrazeda de Ansiães seguia uma missiva para a Carris do Porto, convidando o seu administrador a assistir à arrematação no inventário orfanológico “a que se procedeu por obito de João Lopes da Cruz, que foi morador na quinta de Zimbro de Cima, freguesia de Ribalonga”. Um triste epitáfio para o homem que levou o caminho-de-ferro até às proximidades de Bragança e ficou arruinado no processo.
Conclusão
Os estudos realizados em Inglaterra sobre a figura do empreiteiro concluem que a sua persona tem características muito variadas, de modo que “it is almost impossible to give an overall picture of what it meant to be a railway contractor for there was so great a variation”.
Uns não se assumiam como figuras públicas enquanto outros não desprezavam as luzes da ribalta; havia-os sem formação superior, mas também havia os que conjugavam um curso de engenharia com a execução dos próprios projetos no terreno; alguns enriqueceram, mas a maioria arruinou-se com as empreitadas que aceitava; a imagem que produziam tanto era a de self-made men aventureiros que procuravam o lucro fácil e rápido, como a de homens íntegros e sérios, de temperamento calmo e bem intencionados tanto para com os seus clientes como para com os seus subordinados.
Algo em comum aos empreiteiros era o facto de terem uma considerável experiência no sector, fosse como surveyor, como empreiteiro de estradas, ou como executante de pequenas empreitadas ferroviárias. Genericamente, todos conheciam bem a maioria dos seus subordinados com quem contavam em diferentes obras. De entre eles, elegiam um agente para o representar no terreno. Geralmente estavam mal equipados para executar a obra em mãos, a qual por norma suborçamentavam ou calculavam de forma muito incipiente, e geriam o negócio do ponto de vista financeiro de uma forma precária e praticamente sem uma sede administrativa e sem procedimentos burocráticos (a negociação à base da palavra dada era comum, sobretudo nos contactos com os subempreiteiros). Acima de tudo, eram homens corajosos, pois mais do que capacidade técnica ou financeira, era necessária muita audácia para assumir uma tarefa extremamente arriscada, que tinha tudo para correr mal, desde logo porque os interesses da concessionária e do seu empreiteiro não eram coincidentes: a primeira pretendia um trabalho com a máxima qualidade; o segundo pretendia maximizar o seu lucro.
Na figura de João da Cruz, encontramos algumas destas características por um lado e por outro apercebemo-nos do completo afastamento de outras (embora sem mais estudos sobre empreiteiros seja difícil generalizar a ponto de definir a persona do empreiteiro português). Assim, Cruz se era um corajoso self-made man, não tinha experiência suficiente para tomar em ombros a construção de um caminho-de-ferro (mesmo enquanto empreiteiro de estradas, só realizara pequenas subempreitadas). Faltava-lhe claramente as boas relações com a finança que caracterizaram, por exemplo, o percurso de Thomas Brassey ou Samuel Peto. Na construção – para a qual estava muito mal equipado –, confiou a direção a um agente seu (o engenheiro Costa Serrão), que o auxiliava nas tarefas mais técnicas, acertando muitos detalhes de forma não-escrita. Popularmente, ficou conhecido como um transmontano de uma integridade férrea, muito embora tenha gerido as suas finanças de forma pouco ponderada, de modo que, tal como tantos outros empreiteiros, acabou arruinado.
O atual conhecimento historiográfico não permite dizer se Cruz era o típico empreiteiro que operou em Portugal ou não. Ao longo do século XIX, várias obras ferroviárias foram encetadas, até à década de 1880 sobretudo por estrangeiros e a partir desta data também por portugueses. Esperamos que este artigo posso contribuir e fomentar o debate sobre estas figuras no panorama nacional.
Em relação a João Lopes da Cruz, o certo é que o seu insucesso fez com que a sua memória só tardiamente fosse evocada e restaurada (ao contrário de Thomas Brassey, por exemplo, o extremamente bem sucedido contractor inglês, cuja memória foi celebrada logo após a sua morte), malgrado os seus esforços terem animado a vida económica de Bragança durante construção e terem dotado a cidade do mais espetacular instrumento de progresso: o caminho-de-ferro.
No próprio dia da inauguração (1.12.1906), a Cruz só foi enviada uma mensagem de saudação, “attendendo a que, tendo o mesmo perdido a sua propria fortuna pessoal na empreza a que se abalançara, não poderia no momento actual o seu estado de espirito permittir-lhe a comparencia em festejos como os que se projectavam”.
Só anos depois, em 1929, os brigantinos reconheceram verdadeiramente o sacrifício do empreiteiro, prestando-lhe duas homenagens com o descerramento de um baixo-relevo com o seu retrato e com a atribuição do seu nome à avenida que ligava a estação ao centro da cidade.
Hugo Silveira Pereira
Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia
(Faculdade de Ciências e Tecnologia – Universidade NOVA de Lisboa)
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