A lista enviada pelo comissário Bartolomeu Cruz contava 18 nomes de homens que poderiam ser familiares da inquisição: 12 moradores em Bragança e 6 em aldeias do termo. Vejamos os nomes e alguma identificação: Bento de Varge – Não sendo homem da nobreza, foi o primeiro administrador de um morgadio instituído por dois tios paternos, que eram padres, com cabeça na capela da Sª da Penha de França, na aldeia de Rabal, em 1696. Para além disso, era “capitão de uma tropa de ordenanças” na cidade. (1) António Malheiro da Cunha – Igualmente capitão de ordenanças em Bragança. Dele falaremos em próxima ocasião. Brás de Sousa – Pintor, era filho do padre Alexandre de Sousa Capitão e sua mulher Mariana Ferreira, ambos de Bragança. (2) Francisco Correia - Escrivão do fisco, já falámos dele, no primeiro artigo desta série. António Gomes – Sapateiro. Pedro Sanches – Ferrador. Filipe Correia – Morador em Bragança. Bento de Morais Castro – Licenciado, cavaleiro-fidalgo, por alvará de 1690. Foi-lhe concedido o hábito de Cristo. No entanto, ele terá renunciado a honras e mordomias, fazendo-se frade no convento de S. Francisco, para onde entrou, tomando o nome de frei Eusébio de Castro e ali faleceu. (3) Manuel d´Antas – Morador em Bragança. Francisco Gomes – Morador em Bragança. Francisco Pires – Ferrador. António Mendes Madureira – Sapateiro. Gaspar Buíça de Morais – Natural e morador no Outeiro, em cuja igreja está uma lápide de granito com os dizeres:- Sepultura de Gaspar Morais Buíça para si e seus descendentes. (4) Manuel de Morais Buíça – Também do Outeiro, certamente da família do anterior, filho de Domingos Pires de Morais. António Pinto de Salselas. António Mendes – Capitão de ordenanças, morador em Samil, termo de Bragança. Sebastião Sobrinho – Alferes de ordenanças, morador na Mofreita. António Ferreira – Capitão de ordenanças da mesma companhia de Mofreita. Como de vê, nenhum pertencia à classe da nobreza tradicional de Bragança.
Bento de Morais Castro era fidalgo-cavaleiro, sim, mas de fresca data. E era também o único licenciado da lista, que incluía 5 militares, (5) 2 sapateiros, 2 ferradores, 1 pintor e 1 escrivão do fisco. Isto reforça a ideia de que havia em Bragança e na região muita falta de familiares para prender e levar os prisioneiros a Coimbra e que era necessário recrutar familiares “de segunda condição”, como dizia o comissário. Tanto quanto mostram as informações fornecidas pelos ANTT, apenas um deles conseguiu então ser aprovado e ascender ao cargo de familiar do santo ofício: o sapateiro António Mendes de Madureira. Outro, o capitão António Malheiro da Cunha só mais tarde o conseguiu, ocupando já o posto de sargento-mor em Chaves.
Vamos então olhar para o processo de candidatura de António Mendes Madureira a familiar. (6) Gonçalo Mendes se chamou seu pai. Era natural e morador em Ancede, Baião, “assistente em casa de Manuel Campelo da Cunha”. Assistente é forma suave de dizer: “criado de servir”. E seria um criado muito especial e para todo o serviço já que, a pedido do patrão, ele até matou um homem. E então, para não ser preso e julgado, fugiu para Bragança. Era o tempo da Guerra da Restauração e Bragança uma cidade completamente militarizada. Assim, foi fácil a Gonçalo alistar-se como soldado, na companhia do capitão António Figueiredo Sarmento. Na mesma companhia, militava também o soldado Domingos Pires, que tinha uma filha chamada Maria Pires Asifontes. Tudo gente pobre e humilde. A mulher de Domingos era lavadeira e a filha “vivia de fazer meias”. E foi com esta que Gonçalo Mendes veio a casar, em 5.2.1674. Para o casamento, Asifontes ia grávida e logo depois lhe nasceu um filho, que foi batizado com o nome de António Mendes de Madureira, sendo padrinho o capitão António Figueiredo Sarmento. António Mendes Madureira tinha 32 anos quando se candidatou ao cargo de familiar do santo ofício, em Fevereiro de 1707, “inculcado” pelo comissário Bartolomeu. E estava casado, há dois anos, com Joana Maria, filha de outro soldado da companhia do capitão Figueiredo Sarmento.
Passaram dois anos e… de Coimbra, não vinha resposta. Madureira resolveu então “meter uma cunha” a um José da Silveira, que era compadre do notário da inquisição, o licenciado, padre Manuel Soares de Carvalho, escrevendo-lhe uma carta. A missiva apenas interessa por mostrar que a letra e escrita gramatical do Madureira era rudimentar e patenteia o quanto ele se humilhava para conseguir o favor. Veja-se: - Meu senhor José da Silveira que V. Mercê por sua boa saúde sabereis estimar, da minha pode V. Mercê dispor o que for de mais seu gosto, em muitas ocasiões ao que não faltarei como devo. Meu senhor confiando em Deus me parece que o senhor seu compadre o licenciado Manuel Soares de Carvalho estava com melhora e que lhe peço a V. Mercê me faça favor de lhe encomendar as minhas diligências que não esqueçam pelo amor de Deus (…) E pondo-me V. Mercê aos pés do senhor meirinho da santa casa, que lhe não escrevo, por não lhe saber o nome e V. mercê me faça este favor de me aplicar este negócio… Não sabemos se a carta surtiu efeito. Caso é que foi anexada ao processo de habilitação e logo depois foram dadas ordens ao comissário da inquisição de Fontelas, concelho de S. Marta de Penaguião para investigar em Ancede as origens e limpeza de sangue de António Madureira; ao comissário António Gomes do Vale, abade de Mofreita, Vinhais, para investigar na região as raízes cristãs das Asifontes e ao comissário António Pais Teixeira, natural e morador em Pinhel, para averiguar da limpeza de sangue dos avós maternos de Joana Maria, naturais e moradores em Pena Verde, concelho de Aguiar da Beira. Não vamos seguir os interrogatórios das testemunhas, uma dezena em cada uma das seguintes localidades, onde viveram os ascendentes de Madureira e da mulher: Ancede, Nozedo, Mofreita, Bragança, Parada e Pena Verde. Também não sabemos que dinheiro pagaria o candidato, ou alguém por ele, que era pobre, pagaria por estas diligências.
Apenas como exemplo, veja-se a fatura do comissário Gomes do Vale: Ao comissário – 7 200 réis; ao escrivão – 4 811 réis; das notificações – 600 réis. Total – 12 611. (7) Vejamos as inquirições, começando por Ancede onde, as testemunhas confirmaram a identidade da família, informando que o avô paterno era serrador e faleceu vindo de uma serragem. Todos atestaram o assassínio e fuga do pai para Bragança. Em Nozedo/Vinhais, provou- -se que o avô materno era jornaleiro e foi solteiro para Bragança onde se fez soldado. Para além disso, ganhou a alcunha de “asiouco” quando casou. Sobre Maria Asifontes, provou-se que era “moça de servir” antes de casar e depois fazia serviço de “lavadeira”. Da naturalidade, nada se apurou, desconfiando nós que trouxe o sobrenome agarrado às origens: Asifontes uma localidade espanhola. Quanto à filha, Maria Pires Asifontes, mãe do pretendente “vivia de fazer meias”. Igualmente pobres e humildes eram os familiares de Joana Maria, mulher de António Mendes Madureira.
A avó paterna era “lavadeira” e havia fama de andar amancebada com um cristão-novo, antes de casar, dele tendo um filho. O mais “elevado” dos seus familiares seria o avô materno, com a profissão de carpinteiro, na aldeia de Parada. Como se vê, exigindo o Regimento um “viver à lei da nobreza”, nada, na ascendência de António Mendes de Madureira, favorecia a sua nomeação para familiar. Exigia também o Regimento que os familiares fossem “abonados de bens”. Neste caso, verifica- -se que apenas tinha uma pequena casa, que valeria 30 mil réis, uma ninharia! Importava, finalmente, a posição social do pretendente. Também aqui, nada de favorável: a profissão de António Madureira era a de sapateiro. Mas, se tudo apontava para uma recusada, a verdade é que António Mendes Madureira foi admitido como familiar do santo ofício. Vejamos o argumento usado pelos inquisidores, na apreciação final: - Não lhe prejudica ser de poucos cabedais e de segunda condição, por ser inculcado pelo comissário para servir ao santo ofício. (8) E menos prejudicava o facto de ser filho de um assassino.
Para o santo ofício era bem pior ter um quarto ou quinto avô, com ¼ ou 1/8 de judeu, do que ser filho de um assassino! Com a carta de familiar, António Madureira rapidamente ascendeu na escala social de Bragança, logo sendo nomeado tesoureiro do fisco real nesta cidade, confiando-se-lhe quantias inimagináveis, de contos de réis, para quem, pouco antes, não tinha mais uma miserável casa de 30 mil réis. Mas disso trataremos em próxima oportunidade, em trabalho que estamos ultimando, baseado no “Livro de Receita dos Depositários Gonçalo Pires, Miguel Rodrigues e António Mendes Madureira – Agentes em Bragança”. E também passou a “viver à lei da nobreza” e em nobreza viveram e casaram os seus descendentes. Seria o caso da filha, D. Francisca Doroteia de Madureira, mãe de Manuel António Madureira Cirne, abade de Carrazedo, licenciado em cânones, protonotário apostólico vigário capitular da diocese de Bragança, a quem foi concedido brasão de armas em 29.5.1782, registado no Cartório da Nobreza, livro 3º fl. 54. (9) Voltando à habilitação de Madureira, diremos que nela ficaram registadas as certidões de nascimento e casamento do habilitando e seus ascendentes. Exceto dos que nasceram ou casaram em Nozedo “porquanto os livros que havia na igreja do dito lugar se queimaram na entrada que o inimigo fez no dito lugar e o queimou no tempo das guerras passadas”, conforme certificou o comissário Vale.
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