“Este livro andava ao vento sobre a campa fria do poeta, foi deixado como lembrança por um discípulo venerador. Para que ficasse inteiro e firme, como foi o Mestre, guardei-o para que outros o leiam e amem (...).”
É uma campa rasa, a do poeta, uma tampa estreita — simples, rústica, granítica. Passa despercebida no cemitério de São Martinho de Anta. Como Miguel Torga quis. Uma torga terá sido o único pedido, e lá está ela, com se fosse o símbolo, ou a porta, do paraíso. Um paraíso necessariamente incomum: a torga é uma urze, gosta de terrenos inóspitos e lanças raízes fundas, aquece (posta a arder, dura a noite inteira), é espontânea. Nesta terra de serranias, difícil e rochosa, abunda, amaciando de lilás o cenário agreste. Nesta terra de serranias, nasceu Adolfo Correia da Rocha, que se faria, improvavelmente, médico. As raízes fundas nunca se desprenderam, nem quando foi para o Brasil, nem nas tantas viagens que fez, nem em Coimbra, onde fez a vida. As raízes fundas foram feitas metonímia, as raízes fundas foram personificadas. Nesta terra de serranias, escolheu ser enterrado Miguel Torga (o Miguel vem dos seus dois heróis literários, os espanhóis Miguel Cervantes e Miguel Unamuno), o escritor para quem o paraíso foi um “reino mágico”, que é o mesmo que dizer Trás-os-Montes.
Não sabemos por quantas mãos passou o velho exemplar dos Novos Contos da Montanha até chegar ao armário do Espaço Miguel Torga (EMT), a poucos metros da casa onde o escritor nasceu. Sabemos que a 22 de Maio de 1998, Arménio Vasconcelos, de Leiria, deixou o seu testemunho na primeira página do livro, manchada e já dura como um pergaminho. Assinado e datado, conta a descoberta do livro na campa, no fim de uma viagem de homenagem a Torga, que morrera três anos antes, em 1995. Agora, quem chega à campa do escritor provavelmente não encontrará livros (não faltarão flores: nós deparamo-nos com rosas vermelhas a rodear um jarro) mas estará em pleno território torguiano, servido de roteiro apropriado (delineado pela filha, Clara Rocha), que se declina na serra e no Douro, os dois rostos de Trás-os-Montes que ele descreveu e que o descrevem.
Nós seguimos o roteiro improvisado pelo director do EMT (São Martinho de Anta), João Sequeira, em torno das próprias palavras de Torga.
“S. Domingos, S. Leonardo, a Senhora da Azinheira, o Poio... As páginas capitais de uma antologia panorâmica da minha geografia nativa (...)”.
Concentramo-nos no concelho de Sabrosa (a “terra de Fernão Magalhães”, como se anuncia) com um desvio apenas até ao vizinho Peso da Régua. Na verdade, não saímos de São Martinho de Anta — “S. Martinho é um marco de orientação e segurança que vejo em todas as horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo”.
“O que estamos a fazer era uma das actividades preferidas de Miguel Torga”, nota João Sequeira, também nosso guia informal por este território híbrido de biografia e literatura, a dada altura do nosso passeio. “Ele gostava de fazer de guia turístico.”
“Mostro-lhes o que nunca viram: panoramas que são autênticas obras-primas da ecúmena, onde a geografia física e a geografia humana se complementam. A ossatura telúrica e a epiderme elaborada. O natural e o cultural em conjunção perfeita. E fico desobrigado. O resto é por conta deles. Se prestam, vão mais ricos. Dilataram o espírito à proporção dos horizontes. Se não prestam, vão mais pobres. Mediram-se com a grandeza e perderam.”
Para trás ficou já a Senhora da Azinheira, um “sítio por excelência da geografia de Torga”, sublinha João Sequeira. Oficialmente até é Senhora da Assunção, mas a azinheira por detrás da capela impôs-se. No nome, apenas, porque o orago é celebrado a 15 de Agosto. E “ele gostava muito da romaria aqui”, algo que lhe ficou talvez “da infância”. É uma festa especial, esta, que prossegue no dia seguinte com merendas nos penedios — “cada família tem a sua fraga”, explica João Sequeira — feitas dos restos e de vista.
“Vejo a Senhora da Azinheira a branquejar no alto da serra, oiço o sino a badalar, sabe-me a boca tabafeira, cheira-me a rosmaninho.”
Não a vemos no alto, talvez nos falte treino, mas vemos do seu alto. O Marão e o Alvão, o cheiro a rosmaninho rodopia, estamos empoleirados num “mar de fragas”, onde se escavaram degraus toscos e improvisaram bancos. Voamos pelos vales, a âncora é a quase singela capela, branca, rematada a granito, interior que poderia ser espartano não fora o dourado — ocupa o retábulo, desenha pórticos e remates — e o colorido vivo do tecto em abóbada de madeira. É o barroco do século XVIII a aliviar a dureza da serra que aqui se salpica de castanheiros.
É pela sua crista que seguimos, contando as árvores que lhe resistem na luta contra o granito, que surge como uma erupção, e o vento, resiliente. Restos escurecidos de abrigos, aldeias de montanha, Garganta, a terra dos avós paternos de Torga, outrora com “forte sentido comunitário”, agora vazia, casas grandes fechadas. É na estrada que a liga a Vilar de Celas que fazemos o desvio. O carro fica na beira da estrada, percorremos umas poucas centenas de metros, para além do carvalhal, biombo involuntário da necrópole de Touças.
“Se um dia vier a talho de foice, hei-de escrever uma página sobre estas necrópoles transmontanas, de granito, aninhadas no cimo de uma serra, com ar de quem lava as mãos disto da vida e da morte.”
É uma paisagem que nos remete a paragens mais setentrionais, Escócia ou Irlanda — verde-esmeralda contra serras nuas de penedos amarelecidos, as pedras graníticas velhas, gastas, musgosas, que se empoleiram em pequenos muros, montam mosaicos. E nela queremos adivinhar um círculo sagrado de pedras — ilusão da primeira vista. As pedras, se já tiveram um alinhamento geométrico, perderam-no, afinal. Mantêm, porém, a aura ancestral, misteriosa, como se capaz de todas as magias e por isso, milénios depois, ainda ali se fizeram sepulturas antropomórficas, incluindo duplas. Torga, conta João Sequeira, quis escavar neste local, enquanto jovem, mas rapidamente desistiu. O fascínio, esse, permaneceu — “que silencioso alfabeto de pedras era aquele?”, escreveu.
A cultura megalítica é insidiosa por estes caminhos, os topónimos ecoam-no. Torga não lhe foi indiferente — refere, por exemplo, os monumentos megalíticos que nimbam a serra de mistério e que desde rapaz venera “como sacrários de uma ancestralidade” a que é “fiel”. Por isso não é surpreendente que quando soube da notícia de escavações na Mamoa de Madorras, “um sepulcro de gigantes construído por gigantes”, escreveu, tenha ido imediatamente para lá, conta João Sequeira, acompanhar os trabalhos.
“A grande mamoa da serra escavada. A câmara, o corredor e os contrafortes expostos à luz do dia e ao espanto de quem olha.”
Teve a impressão, registaria ainda, “de que estava a ser feita a autópsia do passado”. E o passado está de costas voltada para a estrada, a poucos metros dela, mas camuflado — vê-se sem se ver. Para quem passa é mais um monte de terra, a entrada abre-se do outro lado, o corredor já mal delineado, o portal em equilíbrio que pareceria precário não estivesse ali desde o neolítico, o espaço circular da câmara interior já vazio de sacralidade.
Sagrado foi sempre São Martinho da Anta: “Nenhuma hora da minha vida tem significação sem esta referência.”
“Aqui estou. Vim mostrar a mulher aos velhos, à senhora da azinheira e ao negrilho. Gostaram todos.”
São Martinho terá mudado muito desde esse ano de 1940, o das apresentações mútuas. Era aldeia, passou a vila. Há casas novas, avenida até à igreja, os pais partiram, o negrilho (ulmeiro) já não é um “gigante a sonhar, bosque suspenso/ Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!” — “secou quando o Torga morreu”, conta João Sequeira. É agora um resto macilento, tronco, quatro ramos amputados, pedaços de metal como ligaduras (e parte dele está nas traseiras do Espaço Miguel Torga, embrulhado em plásticos), certamente mantido como símbolo. O busto de escritor (“Aqui/ neste Lugar/ e nesta hora”) e o poema “A um negrilho”, este negrilho — ainda que, na verdade, na terra onde nasceu houvesse “só um poeta”, escreveu, o “mestre da inquietação/ serena”. Estamos no Largo do Eirô, que parece ser o principal, alinhado em rosto ecléctico, com “queda” clara para o granito, e cruzeiro central. Aqui, a farmácia, correio, minimercado, multibanco, clínica dentária, Residencial Central — onde Miguel Torga gostava de fazer refeições, diz João Sequeira, “era do senhor Mário, que foi presidente da junta por indicação do escritor” e que agora é só para dormidas —, junta de freguesia. No primeiro andar funcionou uma extensão do centro de saúde, diz João Sequeira, por teimosia do próprio escritor (e médico). Fechou e com ele fechou-se algum material médico-cirúrgicos que Miguel Torga, ou, no caso, o médico Adolfo Correia da Rocha, doou, incluindo batas suas que estão expostas numa vitrina no espaço que agora está vazio de função (e fechado).
Quando Miguel Torga, que vivia em Coimbra, estava em São Martinho de Anta (o que acontecia frequentemente, “vinha por temporadas”), não faltava quem lhe batesse à porta para consultas. A sua casa fica a poucos metros do largo, na rua que um ano depois da sua morte passou a ter o seu nome. É uma casa térrea, humilde, que herdou dos pais — a irmã vivia ao lado. Sofreu algumas obras quando a sua mulher, Andrée Crabbé, aqui viveu uns meses, “a casa nativa actualizada, com todas as sombras do passado pintadas (...)”.
Branca, com portadas pintadas de azul claro, cortinas de rendas a preencher os quadrados envidraçados da porta da cozinha; rododendros, as azáleas, noveleiro, carvalhos, o quintal. Tanto a casa como o terreno foram doados, em 2014, pela família à Direcção Regional de Cultura do Norte para ali se instalar uma casa-museu cuja abertura esteve anunciada para 2015 — por enquanto, permanece muda.
Muda está também a sineta da escola local, que continua lá, no pequeno frontão da fachada. Já não se ouve, portanto, o “Tem lêndeas... Tem lêndeas... Tem lêndeas”, de A Criação do Mundo, o romance semiautobiográfico, nem “há mimosas à roda” — conta João Sequeira que um dia de Natal, na década de 1970, Torga passou a tarde a replantar as mimosas da sua infância na escola. O EMT tinha a ideia de o fazer, em sua homenagem, mas, sendo proibido plantar mimosas, uma torga substituiu-a na escola ainda a funcionar.
“Foi ali que num remoto dia de mocidade me senti consciente do meu destino de artista (...). Ali ia retemperar a lira quando a sentia bamba.”
“Ali” é São Domingos de Monte Coxo e chegamos com o nevoeiro a tapar o “grandioso panorama circular” de que fala Torga nos seus Diários. O caminho é difícil até ao santuário, as pedras intrometem-se na terra sulcada pela chuva; o cenário é desolador, calcinado ainda. Lá em cima, as abertas deixam ver o apenas cenário aos retalhos — descemos seguindo o compasso de duas perdizes bamboleantes. Estivera Miguel Torga aqui, estas não poderiam estar tão relaxadas. Caçador ávido, muitos dos seus dias passava-os montes fora, boné na cabeça, espingarda a tiracolo. Dizia-se “geófago”: “Caminho que me desunho”.
É por esses montes, em estradas serpenteadas, que descemos para o Douro, ou melhor, o “Doiro, rio e região, certamente a realidade mais séria que temos”. É que não basta
“(...) descer de Sabrosa para o Pinhão, estacar em S. Cristovão, e abrir a boca de espanto. Não é ir a S. Leonardo de Galafura (...), olhar o caleidoscópio, e ficar maravilhado”.
Espaço Miguel Torga: a porta de entrada para o mundo do escritor
O Douro é um drama “feito de carne e sangue”. Se beleza não lhe falta, “a própria beleza deve ser entendida”. Adentramo-nos, então, pela beleza do drama. Entre florestas verdes, novamente o rosto pétreo que aflora em vertigem vertical no Poio, dramatismo acentuado pelo negro que o fogo deixou pintado no solo e nos troncos, e já vemos as vinhas a bordar os montes. Torga fazia quilómetros e quilómetros por aqui e um dia chegou a Ordonho. “Entre duas perdizes”, escreveu, desbloqueou S. Leonardo de Galafura, o poema, depois de 30 anos, “bem medidos”, a olhar o miradouro. Nós paramos numa das curvas à saída da aldeia e olhamo-lo, também, “alcandorado no seu trono de penedos e nuvens, com o Douro ajoelhado aos pés e o céu a servir-lhe de resplendor”. Havemos de lá chegar.
Por enquanto, continuamos a descer, enganando as pedras que resvalaram dos muros dos socalcos na tempestade do dia anterior — um final de Maio violento. As quintas vão-se sucedendo, Caleira, do Crasto, Marka, as placas “vende-se vinho” na beira da estrada — cenários de Vindima. A estação de Ferrão já foi essencial nestas paragens, para o abastecimento destas quintas e aldeias, e para entretenimento: “As pessoas vinham ao domingo só para ver os comboios passar, faziam festas aqui.” Agora, o comboio ignora a estação de Ferrão — os edifícios esventrados parecem indicá-lo —, embora nesta tarde pare para deixar entrar um grupo de turistas brasileiros. Fica o silêncio do abandono, um parque de merendas novo em folha do lado de lá da linha, rente ao Douro a correr entre o lamacento e o verde (a “cor barrenta muito falada por Torga”, nota João Sequeira) — no Cais do Ferrão, um barco solitário. “Corre, corre caudal sagrado”, escreveu Torga aqui.
Nos passos de Torga não mais deixaremos de ter o Douro a espreitar ou a exibir-se. No miradouro de S. Cristóvão, vêmo-lo a receber o rio Pinhão, e em São Leonardo de Galafura temos uma das suas mais belas vistas.
“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza.”
Miguel Torga nunca se cansou de aí perscrutar o cenário, medir as curvas do rio, aquilatar a geometria dos socalcos e a insolência dos campos e bosques. Voltou sempre, ao longo da sua vida. Ao rio e à serra, a Trás-os-Montes. Em cada regresso, nova reflexão, novo poema, os mesmos locais. Uma descoberta contínua (e compulsiva) que foi também uma espécie de auto-psicanálise.
“Estas paisagens já estão de tal modo explicitadas dentro de mim, que parecem escritas no meu entendimento. Quando cuido que estou a interpretá-las, estou a ler-me.”
Fotos: Nelson Garrido
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