domingo, 29 de novembro de 2020

Expiação

Por: Manuel Amaro Mendonça
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

A extensa nave da igreja encontrava-se em semipenumbra. Apenas a luz do luar se coava preguiçosamente através da claraboia setecentista, muitos metros acima. Todo o espaço estava repleto de sombras e as imagens dos santos e mártires, imobilizadas no seu mutismo eterno, eram testemunhas e guardiões do silêncio.

O padre Ramiro, rondando os sessenta anos, assomou à porta que conduzia à sacristia, antes de se mostrar completamente. Envergava um pijama e roupão e calçava uma chinelas de tecido, surradas. Estava já deitado e dormia a sono solto, quando uma urgência, que não sabia bem explicar, o fez levantar-se, deixar a cama e vir até à igreja.
Na segunda fila de assentos, divisou o vulto ajoelhado, rosto escondido entre mãos implorantes. O silêncio intimidante, impunha-se pesadamente.
Após um minuto de hesitação, o sacerdote soprou uma pequena coluna de vapor e apertou mais o roupão, para se defender do ar gelado que repousava no templo. Arrastou as chinelas até junto do vulto e, com um profundo suspiro, ajoelhou a seu lado, imitando a pose implorante, frente ao altar.
O estranho levantou a cabeça ao perceber o recém-chegado. Aparentava uns trinta anos e tinha o cabelo comprido e desgrenhado e a barba negra e crescida, quase tapando o rosto pálido e macilento, onde brilhavam dois olhos pequenos, cor de carvão.
— Também tem pecados a expiar, padre? — Grasnou o homem, ecoando na nave.
Surpreendido, o sacerdote fitou o inusitado companheiro.
— Todos somos pecadores, meu filho. — Esclareceu-o ele. — Todos cometemos pecados, uns mais graves que outros. O importante, é a forma como lidamos com eles. — O estranho olhou-o pensativamente, avaliando-o e sopesando as suas palavras, enquanto o padre continuava. — Temos de reconhecer que erramos e devemos pedir perdão a Deus por eles. Teremos de prometer que tudo faremos para não voltar a pecar.
— E se o pecado não tiver perdão? — O outro insistiu.
— Todos os pecados têm perdão! — O sacerdote foi perentório. — Há pecados mortais, é certo, mas a misericórdia de Deus é infinita e até o mais vil dos pecadores, terá uma oportunidade, se se arrepender do fundo do coração.
— O meu pecado não pode nunca ser perdoado. — O homem fez um esgar amargo.
— Já disse, Filipe, que Deus pode perdoar todos os pecados. — O padre Ramiro reafirmou.
— Como sabe o meu nome? — O estranho estremeceu, muito sério.
— Conheço-te há muitos anos… — Uma lágrima refulgiu nos olhos do sacerdote. — Não me reconheces mesmo?
O chamado Filipe pareceu incomodado com a pergunta e levantou-se, dando uma volta sobre si mesmo, hesitante. Passou a mão pelo cabelo e cofiou a barba fitando o interlocutor com intensidade. Por uns segundos, um pesado manto de silêncio pesou entre os dois; um, em pé, recurvado e o outro de joelhos no suporte do banco da igreja.
— Devia reconhecê-lo? — A voz do estranho tremia, como que acometido do frio, que há muito mordia o padre.
— Não só a mim, como todo este templo, onde estiveste tantas vezes… — Acusou o ministro da igreja.
— Sim, venho aqui de vez em quando… pedir perdão pelos meus pecados… — Filipe arrastava a voz, puxando pela memória.
— E sabes quais foram os teus pecados? — Ramiro sentou-se, observando-o. — Recordas o que tanto precisas que te seja perdoado, que te não deixa descansar e te traz aqui amiúde? Tiveste sequer a noção de quantas vezes me ajoelhei, como hoje, ao teu lado a rezar? Em todas essas vezes nunca me falaste, porém, talvez não estivesses preparado.
O estranho parecia cada vez mais perturbado e acenava negativamente com a cabeça enquanto balbuciava: “Não me lembro…”
— Há quase quarenta anos, entraste nesta igreja com uma mulher sem vida nos braços. — Lembrou o sacerdote. — A mulher que nós amávamos!
— Armanda! — Filipe apertou as mãos contra a boca, o rosto retorcido numa máscara de dor. — Fui eu! Oh, meu amor, fui eu quem a matou! — Depois, num súbito reconhecimento, fitou padre nos olhos. — Ramiro? És tu, Ramiro? Estás tão velho!
— Passaram-se muitos anos, querido irmão. — As lágrimas assomaram com força aos olhos do ancião.
— Perdoa-me, meu irmão! — Implorou o outro atirando-se ao chão, quase junto aos pés do sacerdote.
— Eu é que te peço perdão, por ter permitido que ela se aproximasse de mim, depois de estar casada contigo. Peço perdão a Deus todos os dias, por ser o causador de toda desgraça que nos atingiu. — O padre enclavinhou as mãos numa oração. — Amaldiçoo-me eternamente por me ter deixado possuir por aqueles belos olhos, durante as férias do seminário em tua casa.
— Eu não podia suportar! — Gemeu Filipe, caminhando até ao meio da igreja, no espaço entre os bancos e ajoelhando no tabuado, em pranto. — Foi aqui que a deitei, depois de a ter estrangulado no carro! Eu não queria matá-la, mas não podia suportar que a mulher que eu mais amava no mundo me trocasse por outro homem… ainda que fosse o meu próprio irmão!
Com visível esforço, Ramiro aproximou-se e ajoelhou no chão, junto do outro, os olhos cheios de lágrimas: “Perdoa-me!”, gemeu.
Os dois, ajoelhados no soalho, não passavam de sombras na vastidão da nave do templo.
— Achas que Deus me perdoa? — Ao fim de uns segundos, Filipe estendeu as mãos para o padre. — Achas que ela me pode alguma vez perdoar? E tu, meu irmão, perdoas-me?
— Alguma vez Lhe deste essa possibilidade? A qualquer um de nós? — O sacerdote rouquejou. — A tua solução foi atirares-te ao rio e desaparecer para sempre. O teu espírito vagueou sempre por aqui, incapaz de assumir o mal que fizeste, escondido do julgamento, assim como de qualquer forma de perdão.
Aparentando agora ter mais quarenta anos às costas, Filipe ergueu-se a custo, com os olhos rasos de lágrimas fitos no chão onde em tempos repousou a mulher ambos amaram. Soluçou audivelmente e pousou a mão direita sobre o coração.
Ramiro chorava com ele, mas engoliu em seco e o seu rosto tornou-se uma máscara cheia de majestade e levantou-se apoiando-se nas costas do banco mais próximo. Ergueu os dedos indicador e médio da mão direita, numa autoridade que o seu cargo lhe permitia, enquanto sentenciava “Ego te absolvo, in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen”.
Filipe, atordoado, cambaleou na direção da porta que levava ao exterior da igreja e que abriu de par em par. Uma onda de luz imensa ofuscou todo o espaço, rebrilhando no ouro dos altares, iluminando os rostos tristes das imagens neles contidas, ressaltando nos cristais dos candelabros e nos vitrais das janelas, como uma onda de esperança que Ramiro, tombando de joelhos no meio do templo, recebeu de braços abertos.
Foi de manhã bem cedo, que a equipa de limpeza encontrou o velho abade da freguesia, tombado no soalho frente ao altar. Aparentemente, sofrera um ataque fulminante que lhe levara a vida, antes mesmo de se aperceber do que estava a acontecer, pois o seu rosto exibia um sorriso, sinal de que partira em paz.

Manuel Amaro Mendonça
nasceu em Janeiro de 1965, na cidade de São Mamede de Infesta, concelho de Matosinhos, a "Terra de Horizonte e Mar".
É autor dos livros "Terras de Xisto e Outras Histórias" (Agosto 2015), "Lágrimas no Rio" (Abril 2016) e "Daqueles Além Marão" (Abril 2017), todos editados pela CreateSpace e distribuídos pela Amazon.
Ganhou um 1º e um 3º prémio em dois concursos de escrita e os seus textos já foram seleccionados para mais de uma dezena de antologias de contos, de diversas editoras.
Outros trabalhos estão em projeto e saírão em breve, mantenha-se atento às novidades AQUI.

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