(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Quantas vezes ficámos horas sem fim no café Universidade falando de poetas, de questões filosóficas, da emancipação da mulher. Na altura só se falava de política em surdina. O Capital de Karl Marx era lido numa edição francesa, em segredo, com o sabor da clandestinidade.
Depois dizias, vamos passear, vamos ver o Porto e ficavas horas sem fim a olhar as gaivotas que riscavam o céu azul da zona da Ribeira, num voo planado. E os teus olhos eram asas.
Agora vamos ver as flores! Um dia quero ter uma casa e um jardim com roseiras que no tempo certo darão rosas de todas as cores! Dizias. E o teu perfume era de rosas. E repetias muitas vezes a frase não sei de que poeta: O milagre da flor é a água!
Passou tanto tempo desde a última vez que fomos ver as roseiras floridas e hoje eu sei, quase com um sentimento de culpa, o que tu não disseste. Sei que foste para Cascais e depois começou o teu calvário de Nossa Senhora das Dores… carregando uma cruz de lágrimas, medos e silêncios.
Tens um filho que casou. Saiu de casa para a sua vida. E tu ficaste no sufoco da tua vivenda cheia de salões enormes, onde moravas, quase sozinha, dolorosamente. E morrias. Menina assustada.
Uma noite ficaste doente, muito doente. O teu marido ainda não tinha chegado das infindas reuniões, de noites longas e bares. Muitos.
Estava nevoeiro… e sozinha partiste para o hospital distante. A estrada ficou longa demais e as luzes da cidade parecia que choravam contigo na escura noite. Os barcos navegavam sem rio e faltava-te o chão, dolorosamente.
O hospital era grande e cinzento, de infindos corredores, e a penumbra assustava. Ouviam-se gemidos nas enfermarias! Nossa Senhora da Conceição da Rocha! Eram preces de moribundos. As enfermeiras do turno da noite pediram-te que te sentasses. Pegaram nos teus dedos longos e disseram que a médica tinha pedido para repetir as análises. Exames. Não disseste nada e toda a noite choraste, dolorosamente.
Quer um chá? Disseram as enfermeiras. E tu choravas cada vez mais. Nos jardins havia rosas. Amanhecia! Depois as idas ao hospital tornaram-se frequentes, mais frequentes. E mais e mais. O teu marido começou a chegar tarde a casa. Os silêncios eram muitos. E a madrugada tardava. Uma noite, de profunda tristeza, perguntaste serenamente ao marido ausente que cheirava a perfume quente de mulher: - Porque vens tão tarde?! - Que tens a ver com isso? Estava bêbado. Queria fazer sexo. Aproximou-se. Não quiseste. Em fúria de macho ferido, saiu de casa. O tempo passava e o teu marido às vezes parecia que estava arrependido. Beijava-te. Mas tu já não estavas ali. As palavras eram doces. Que te amava! – És tão bonita! Tu já não acreditavas. E novamente saía, gritava e se calava… e não vinha. Morrias todos os dias. Uma tarde, era Inverno, não aguentaste mais! As gaivotas do Tejo passavam rentes à tua casa em serenos voos cada vez mais apertados. Fizeste a mala, fechaste a porta da casa e foste embora.
Os teus pais ficaram muito, muito tristes. Uma filha divorciada. A família, os vizinhos hão-de falar. E falaram. A tua mãe abraçou-te muito. Pegou-te ao colo. E choraram. As cortinas das janelas deixavam adivinhar uma luz melada e traços de pessoas que circulavam na rua de regresso a casa. O teu pai não disse nada. Escondeu os olhos nos óculos embaciados e apertou o casaco demoradamente. Mas não estava frio. E ali ficou silenciosamente pensando na vida. No tempo em que ia buscar-te ao jardim-de-infância. - Pai, já sei uma canção nova! Depois viu-te no Liceu. E crescias e eras tão bonita. Um dia, levou-te pela mão à faculdade. Teve medo que te perdesse no Porto. Também tiveste medo. Mas em breve a cidade te abraçou. E foste tão feliz. Ainda disseste aos teus pais que não sofressem que estava tudo bem. E foste embora.
Depois alugaste um pequeno apartamento. Só teu e recomeçaste tudo… sozinha… solitária, com noites longas e memórias. Muitas. Estudaste, traçaste objectivos a curto prazo, ainda tiveste tempo para fazer um doutoramento. Um sonho. E ficaste com medo dos homens e do amor. O vento norte fazia-se sentir. E morreste.
Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança.
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.
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