sábado, 23 de maio de 2020

E já não havia rosas - 5

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)


Lembro-me sempre. Chovia e estavas muito triste. Não tinhas tempo e a viagem ficou ali… adiada:  - Agora, gostava de viajar pelo mundo, visitar de novo todas as vilas e cidades do nordeste… Mas já estavas muito longe!  Por ti… faremos todas as viagens… adiadas. Intemporais. Viagens à volta da nossa memória, como se fosse possível regressar a sítios e recantos onde estivemos num tempo antiquíssimo. E éramos felizes! 
Então de novo entramos no soto da nossa aldeia, um mundo fabuloso onde se misturavam cheiros mágicos e cores deslumbrantes. Aqui tudo era possível e as fazendas, os riscados e as popelinas estavam arrumadas nas prateleiras ao lado da massa, do pimento, do arroz, do açúcar, bem perto da “tarifa” do polvo e do “atado” do bacalhau vindo das terras longínquas da Noruega. Mais além estavam as miudezas, uma infinidade de linhas, agulhas, elásticos, colchetes e outras pertenças, necessárias ao quotidiano de quem se fazia ao comércio na urgência de comprar, a fiado, tudo aquilo que assegurava o seu viver, 
Contigo irei a Freixo de Espada à Cinta, mergulhar fundo no abismo do Penedo Durão e pressentir a dança dos abutres que cruzam os céus num voo largo e solene. Encontrar os teus olhos no rio de ouro da Congida. E tu serás a pureza da flor da amendoeira. Ao fim da tarde iremos beber vinho no milagre dos Montes Ermos e saciar a sede no sumo da laranja doce. 
Vamos revisitar Miranda do Douro e descortinar as memórias de bispos velhos, que oficiavam na imponente Sé Catedral, e adivinhar no horizonte o laço dos pauliteiros, na herança dos Celtas que dançam para amaciar a guerra. A tua boca será “ la léngua mirandesa”, "a língua do campo, do trabalho, do lar e do amor”. E vamos andar de barco. A posta de vitela é o segredo mítico de Sendim.  
Depois é necessário adoçar a vida com as amêndoas cobertas e as súplicas de Torre de Moncorvo. De novo sentir a flor da amendoeira num namoro perene com a abelha e o vento e descer ao coração da terra no Museu do Ferro. Talvez te encontre na Foz do Sabor onde o rio se espraia na cumplicidade com o barbo e a boga que fazem as delícias da mesa farta. 
E as cerejas de Alfândega da Fé serão doces e vermelhas como os teus lábios. De novo voltarás a ser menina com brincos de cerejas pendentes das tuas orelhas de princesa. O museu é livre e em cada recanto o milagre da mão se faz arte pelo querer do artista. Perto do céu estarei contigo no segredo da Serra de Bornes onde os olhos têm asas. E cheira a monte.   
No remanso da adega vamos beber o vinho fino de Carrazeda de Ansiães que guarda os segredos de gerações e do tempo. Néctar dos deuses antigos e imateriais. Na paciência do moleiro, nos moinhos de vento e na anta de Zedes vamos encontrar o sentido da humanidade. Contigo e nas maçãs mais doces estaremos perto do sonho, da tua leveza sem tempo. 
 Na feira do fumeiro de Vinhais os saberes e sabores antigos dirão que a perfeição ainda é possível no segredo do tempero. Os teus dedos são os castanheiros esguios. No Parque Biológico a diversidade da vida será o contraponto com os antiquíssimos rituais em que a Morte e os Diabos saem à rua pela Quaresma. No esplendor da Serra da Coroa nos iremos encontrar.
Temos que percorrer os caminhos dos comerciantes judeus de Vimioso. Acender uma candeia de azeite feita na nobreza do cobre. Encontrarmo-nos na paciência sublime duma colcha de Carção e nos saberes ancestrais dos curtumes de Argoselo que se fizeram mundo na paciência do macho. São Bartolomeu sempre atento. E tu estarás comigo, em casa.   
Gostavas tanto de Trindade Coelho e dizias que querias ir a Mogadouro encontra-te com “Os meus Amores”. Iremos como romeiros para que tudo fique justo e perfeito. Estará frio. A feira dos Gorazes é caminhada obrigatória para que a tradição se cumpra. No sabor ímpar dos cogumelos estaremos perto do paraíso. Senhora do Caminho! De todos os caminhos. Contigo. 
Vamos na sombra da rainha das rosas ouvir o rei poeta versejando os encantos de Vila Flor, junto ao Arco de Dom Dinis. E na pureza do ouro feito azeite assistimos ao baptizado da Póvoa de Além Sabor. E será Flor. E a água santa fará o milagre do melão no longo Vale da Vilariça. E o teu sorriso será de melancia madura. Nossa Senhora da Assunção. Estaremos perto do Céu.   
Os teus olhos são os remansos do rio Tua de Mirandela. O segredo dos judeus é o milagre da alheira. Manjar único. As roseiras abraçam as oliveiras e o poema é possível. Rosas vermelhas. Azeite virgem e em noite de São João a água será benta. Senhora do Amparo. Solares e casas brasonadas fazem a História. A noite. A lenda. Em Torre de Dona Chama te abraço. 
No São Pedro, na rota dos antigos segadores, iremos à feira de Macedo de Cavaleiros. Será Verão. Na praia fluvial do Azibo, de águas mansas, vamos repousar na tranquilidade do teu ser. As memórias e os rituais iniciáticos são a alma de um povo e os caretos de Podence exorcizam todo o mal. São o arco-íris. De novo na serra de Bornes sentimos o voo dos pássaros. 
Finalmente em Bragança, a Praça da Sé, a velha Domus dos homens bons e ficamos comovidos com a torre da princesa que eternizou amores proibidos, dando alma e emoção às velhas pedras do monumental castelo. Vamos revisitar o Abade de Baçal, todos os museus e a Praça da Sé. E no Teatro Municipal choramos e rimos na emoção do actor. De novo o Fervença. E não me esqueço das rosas. Só uma. Todos os dias iremos. Tu és a promessa da viagem. Os teus olhos, o caminho… 
Todos os dias regressamos. E eu fico. Aqui!









Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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