Tão insólita quanto grotesca situação a ninguém passava despercebida. Miguel de Unamuno, nas suas deambulações por terras portuguesas, escrevia a partir de Salamanca, em 1907, dizendo que “mesmo sendo os dois países vizinhos isolados os dois, de certo modo, do resto da Europa, não sei que absurdo destino nos tem mantido separados no aspeto espiritual. Em Madrid, é mais fácil encontrar um livro inglês, alemão ou italiano que português, e em Portugal, na Faculdade de Medicina servem de texto de Histologia obras do nosso Ramón y Cajal, mas… em francês”.
O que estaria por detrás de tão estranho comportamento, de tão grande afastamento? É o próprio Unamuno quem avança com a resposta, explicando que tal se devia “à petulante soberba espanhola, por uma parte, e à suspicácia cheia de suscetibilidade dos portugueses, pela outra parte. O espanhol, sobretudo o castelhano, é desdenhoso e arrogante, e o português, tal como o galego, é receoso e suscetível. Aqui desdenha-se Portugal e tomam-no como alvo de chacotas e troças, sem o conhecer, e em Portugal até há quem imagine que aqui se sonha conquistá-los”.
Sejam quais forem as razões que se apresentem para tentar justificar tão aberrante situação, é bom ter presente que qualquer fronteira é simultaneamente limite e contacto, fecho mas também mediação, linha separadora e lugar de encontro, algo que distingue mas também aproxima. Daí não haver justificação para serem lugares de separação e muito menos provocarem o “viver de costas” entre as populações dos dois lados da fronteira. É que as fronteiras têm portas que podem ser ultrapassadas e mesmo afastadas, visto serem produto da conveniência humana.
Qual foi o comportamento dos cidadãos portugueses e espanhóis em relação à fronteira Bragança/Zamora?
Numa perspetiva regional e na perceção pessoal e coletiva das populações, a imagem da fronteira foi sempre negativa, associada à ideia de barreira, de afastamento, de contrabando e seu confisco, de formalidades burocráticas e contratempos, etc. Como afirma Carminda Cavaco, “fronteira implica descontinuidade política, administrativa, jurídica, ideológica e económica, forças disjuntivas, dificuldades de circulação, desequilíbrios e aberrações na ocupação e no ordenamento do espaço”. Nunca houve um entendimento que a associasse a lugar privilegiado de interação, de contacto com o Outro, de espelho, de transição, de circulação de homens, bens e ideias. Pelo contrário, sempre esteve associada à ideia de confrontação, de conflito, de separação. Mesmo a ideia de contiguidade foi quebrada pela existência de fronteira.
A fronteira Bragança/Zamora, ao longo de muitos séculos, delimitou o conteúdo dos dois Estados, separou totalmente o espaço geográfico, provocando na sua vizinhança uma enorme multiplicidade de fenómenos políticos, económicos, sociais e culturais. Aliás, a fronteira como linha limitadora foi sempre mais nítida para aqueles que estão dela mais afastados do que para aqueles que vivem na sua orla, habituados a explorar as possibilidades lucrativas que aí iam surgindo, ludibriando para tal os representantes da autoridade de ambos os países presentes nesses territórios (guarda-fiscal e carabineros)
Com a entrada conjunta de Portugal e Espanha na então Comunidade Económica Europeia (1986) e, posteriormente, com a abertura das fronteiras em 1992, algo mudou quanto à perceção que se tinha da fronteira Bragança/Zamora. No dizer de François Guichard, “embora não tenha aumentado muito a riqueza produzida, nem aparecido grande surto de dinamismo, nem se terem apagado as profundas desigualdades sociais, culturais e económicas que infelizmente continuam a caracterizar esta área raiana, mudou contudo qualquer coisa que tem grande importância: apareceu uma novidade que é o movimento. Poucas vezes saem daqui ou para aqui se destinam os produtos trocados, mas é por aqui que a maioria passa. A fronteira sempre é lugar estratégico, mas já não o é por ser o vazio absoluto – é-o cada vez mais por ser sítio de passagem”.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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