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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

in ilo tempore

Não resisti. Tenho mesmo de escrever contra o que me irrita na TV… quando eu era mais novo não havia aquecimento global e as tempestades não tinham essas mariquices de nomes masculinos e femininos. Não se falava de ecologia, nem de aquecimento global, buracos do ozono, degelo ou outras coisas que ora inventaram, mas parece quando se abre a TV que é a primeira vez que chove, que os rios transbordam, que as areias da praia desaparecem…

No meu tempo, era normal no outono, inverno e primavera, chover muito, nevar bastante nos locais habituais, e haver dias a fio sem se vislumbrar o astro-rei. Nos campos usavam-se chancas ou galochas, nas cidades botas e gabardinas (os velhos Macintosh, diriam os ingleses), a luz falhava frequentemente, havia trovoadas, árvores caíam, rios transbordavam, pessoas morriam afogadas… lembro-me de  imensas inundações no Porto, em Miragaia e na Ribeira do Douro. Também havia frio, por vezes, muito frio, havia um irradiador lá em casa mas os meus avós usavam as braseiras na aldeia, não havia energias limpas ou sujas, aliás, na aldeia nem água canalizada, nem esgotos nem eletricidade que isso eram modas depois de 1970.

Lembro-me bem das molhas na ida para o liceu que era bem demorada. Quando não apanhava um elétrico n.º 8 na Rua do Campo Lindo, ou um n.º 7 ou 7/ (ler sete com traço) na Rua de Vale Formoso, ia sozinho a pé até à Rua da Constituição (12 minutos) apanhando depois outro carro elétrico da linha 20 até à Praça do Marquês de Pombal (uns dez minutos mais) e aí tomava o n.º 15 até Silva Tapada ou 15/ Antas que me levava mesmo até ao Bonfim, só tendo de fazer uns 200 metros a pé até ao Liceu Alexandre Herculano na Avenida Camilo, sem abrigo de caleiras apanhando toda a chuva que caísse.. De elétrico a viagem demorava, em média, uma hora, se não houvesse atrasos e a coordenação de horários fosse esmerada, o que por vezes, era complicado.

As tempestades que mais me assustavam eram as trovoadas secas nas aldeias no verão.  Lembrava-me, e nunca me esqueceria, das trovoadas fortes em pleno verão durante as quais todos íamos para debaixo das camas, embrulhados em cobertores de papa, a rezar a Santa Bárbara a pedir que os trovões ribombantes passassem. Muitas eram trovoadas secas e essas eram as mais perigosas, tanto mais que a Casa do Alto no Sendim da Ribeira (Alfandega da Fé) era o ponto mais alto da aldeia e o ressoar dos trovões ecoava como um temível castigo divino por sobre a nossa cabeça de pecadores... por outro lado, quando a trovoada era mais longe lá para os lados de Espanha, à noite, valia a pena ver o espetáculo dos raios a caírem em toda a volta do fértil vale. Ali, naquela casa era um espanto ver as inúmeras trovoadas à noite, quando estavam mais longe. Indescritível lembrança que guardo com olhos adolescentes. Já na casa da Eucísia (Alfandega da Fé) ou no Azinhoso (Mogadouro), as trovoadas metiam menos medo e não eram tão vistosas.

Para quem não sabe, o Sendim da Ribeira fica num buraco, no fundo dum vale, e em volta havia, para sul: os Cerejais, Ferradosa, Parada; para leste Vilar Chão e a norte, Vale Pereiro, Saldonha, e para oeste Gouveia e Sendim da Serra. Ora todas estas terrinhas eram na altura servidas por estradas secundárias, municipais ou caminhos de terra batida, mas os montes circundantes tinham as estradas de acesso a Alfândega da Fé, a Macedo e a Mogadouro, pelo que era espantoso ver (de hora a hora na melhor das hipóteses, que o movimento era pouco na década de 60) pequenas luzes dos tremeluzentes faróis amarelados de viaturas a atravessarem os montes, por entre os relâmpagos que iluminavam todo o vale. Memorável. Essas imagens ficaram para sempre guardadas na memória. Há fotografias destas que não estando registados em negativo ou em papel, jamais esmorecem ou amarelecem na memória de cada um.

Foi nessa década de 1960 que se instalaram alguns postos de PBX nas aldeias, um sistema elaborado de cavilhas com doze extensões a ligarem essas pequenas centrais às pessoas mais importantes. Os meus tios-avós que viviam no Sendim da Ribeira com os primos (dois dos quais vim a reencontrar décadas mais tarde, aqui nos Açores onde se radicaram em 1960 e em 1975) tinham uma venda ou loja na qual estava instalado o Posto Telefónico da Anglo-Portuguesa de Telecomunicações ou ATP[1]. O Posto Telefónico ATP137 era o único contacto com a civilização. As aldeias, tantas das vezes isoladas durante os nevões de inverno, sempre avessas a qualquer mudança ou modernice não acolhiam bem o telefone e daí só haver meia dúzia de linhas ligadas, em toda a área do Sendim da Ribeira. Era importante para quem tinha um aparelho daqueles em casa, com a sua manivela a dar e a dar, não esperar muito por alguém no Posto para atender. O saudoso PBX era de cavilhas. Estas tinham que se colocar na ranhura. Quando uma chamada entrava na central, a tampinha caía e era só enfiar as cavilhas de dois fios nas ranhuras cujas tampas tinham caído. Depois, havia uns auscultadores de baquelite preta, bem pesados, com microfone através dos quais se perguntava a quem telefonava para onde queria ligar, qual o número, etc.

Entretanto trocavam-se dois dedos de conversa enquanto se discava a marcação individual do número pedido, para a Central Telefónica (Regional ou Nacional) a que o Posto pertencia. Quando, por fim, o interlocutor respondia trocavam-se as cavilhas e as pessoas podiam finalmente falar. O período da manhã era muito calmo e quase sem chamadas, depois aumentava ligeiramente até à hora de jantar, depois do qual raras vezes tocava a campainha. Para um jovem como eu, era um entretenimento delicioso controlar esta forma de comunicação e saber simultaneamente tudo o que se passava, quem falava com quem, ao mesmo tempo que me permitia ir conhecendo “virtualmente” a meia dúzia de pessoas que habitavam nas redondezas. Este sistema de telefone permitia transmitir mensagens, notícias e outros avisos numa era em que os rádios mais potentes captavam emissões espanholas e mal as portuguesas, a televisão ainda não chegara àquelas paragens, e a luz elétrica ainda era uma miragem. Aliás a TV espanhola chegou décadas antes da portuguesa. Os jornais chegavam atrasados pois apesar de usarem os comboios diários da Linha do Douro e suas ramificações, não havia depois carreiras de camionagem regulares para os sítios mais interiores e muito menos para aldeias sem estrada como eram então as aldeias da família: a Eucísia, o Azinhoso ou o Sendim da Ribeira.  No inverno, muitas vezes, ficavam isolados pois a estrada de terra batida ficava intransitável. O mundo podia acabar que só viriam a saber bastante mais tarde. Ainda hoje me apetece viver em sítios assim. 

Doutra coisa estava, porém, certo: jamais esqueceria o cheiro a carvão e as fagulhas que saltavam da locomotiva nas muitas viagens que fiz de comboio do Porto a Trás-os-Montes. Do Porto ao Tua e depois no ramal da Linha do Tua em direção a Bragança tínhamos de sair, creio que na base da Serra de Bornes em Grijó (terra do Professor Adriano Moreira), antes de chegar a Macedo de Cavaleiros. O troço entre Mirandela e Bragança foi encerrado definitivamente no dia 15 de dezembro de 1991.

É esse passado mítico que os modernos governantes me roubaram, violando as recordações da minha juventude, as memórias perdidas e isso jamais lhes perdoarei. Cambada de novos-ricos, ignorantes e alarves. Todos tentamos salvar a linha do Tua, que é minha e de todos os que amam esta região, única no mundo. É o nosso património que eles dilapidam e para quê? Para agora ser anunciada em dezembro 2019 a venda dessas barragens todas pela EDP aos franceses e outros… (de nada serviram os abaixo-assinados e petições, filmes, idas à Assembleia da República). A voragem capitalista da EDP e dos interesses das barragens tudo soterraram nesta venda premeditada do país a retalho…

E com ou sem barragens, as inundações vão continuar e serão piores, pois os patos bravos continuam a tapar as linhas de água e construir em cima delas…

(adaptado e atualizado, de ChrónicAçores uma circum-navegação vol. 1 2009) 
Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association] MEEA]. Para o Diário dos Açores (desde 2018) Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)

[1] [a que se seguira (1968) a TLP (Telefones de Lisboa e Porto) e em 1994 passaria de Telecomunicações de Lisboa e Porto a PT Comunicações]

Chrys Chrystello

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