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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 5 de setembro de 2021

Memórias da escola - As brumas de Bruno

Por: Maria dos Reis Gomes
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)

Chamava-se Bruno.  Era um rapaz com 11 anos, franzino, ágil e prestativo sobretudo com os adultos, já que os colegas o olhavam de soslaio. Cobriam-lhe “os ossos” roupas enxovalhadas, sempre em desacordo com o tempo ou com o tamanho. Todo o seu ar abandonado pedia colo e um banho de água quente que lhe aconchegasse a alma.

Frequentava pela primeira vez o 5º ano de escolaridade depois de um percurso desalinhado de escola em escola e uma retenção. 

O assunto dos banhos e da roupa foi resolvido. Havia outros “Brunos” a precisarem de banho e roupa e, no ginásio, perto dos chuveiros, foram colocadas três grandes caixas com roupas e uma delas com calçado. Os alunos que assim entendessem tomavam banho para além dos dias em que tinham aulas de Educação Física e retiravam a roupa que mais lhe agradasse. Não se praticava “a caridadezinha” e ninguém tinha “pobres de estimação”. Havia tão só a responsabilidade de toda a comunidade educativa reabastecer esses caixotes.

Não foi difícil à Ana - professora de “Português” e diretora de turma - prestar atenção a este aluno. Desde o início do ano, chegava sempre atrasado à primeira aula da manhã, aparecia muitas vezes sem livros e sem outros materiais. Na sala de aula pouco ou nada participava. Isolava-se e ficava ensonado. No recreio a não aproximação aos companheiros era recíproca. Circulava junto da cantina à espera que a cozinheira lhe oferecesse um pão com manteiga. Ao almoço comia sofregamente e sozinho.

Era preocupante a postura do Bruno. Não incomodava ninguém mas alertava os mais sensíveis para refletirem sobre o seu “desapego”. Aproximava-se da Ana mas falava pouco, parecia temer que descobrissem o seu mundo. 

Depois de muitos contactos com mãe e alguma ameaça da referência do caso à  “CPCJ” conseguiu-se que esta fosse à escola. Apareceu com uma criança ao colo com cerca de 2 anos. Quando foi confrontada com as faltas do filho respondeu de forma displicente que estava a cumprir a sua obrigação pois mandava o seu filho para a escola, apesar de este aparecer em casa muito tarde à noite.

Referiu ainda que o filho fazia despesas sem a sua autorização, num talho perto de casa. As “chouriças” que aí comprava eram assadas numa fogueira que ele e outros “amigos” mais velhos faziam debaixo de uma ponte onde também se consumiam substâncias ilícitas. Esta revelação foi ainda mais preocupante. Tornou-se necessário confrontar mãe e filho. Bruno entrou no gabinete onde estava a mãe e esboçou um sorriso para a criança que estava ao colo.

Depois de a mãe repetir o que tinha dito, a reação foi tremenda com a troca de impropérios entre eles e o Bruno a verbalizar que a mãe também acompanhava “o grupo” durante todo o tempo que se mantinham acampados numa praia fluvial. Afinal, a mãe fazia parte do grupo que o filho frequentava.

A partir desse dia o Bruno abandonou a escola. Aparecia de vez em quando a rondar os recreios. Mais magro e mais andrajoso.

Os colegas ao avistá-lo, iam avisar a Ana e esta vinha ter com o miúdo, com uma atitude protetora. Levava-o até à cantina e, de forma discreta, alimentava-o. Foi assim que soube que a sua família tinha sido despejava por falta de pagamento da renda. Tinham-se mudado para outra freguesia. Foi também nestas visitas à escola que se entendeu que o Bruno esfregava as mãos e os dentes com folhas de eucalipto para disfarçar odores.

Foram reforçados os avisos feitos aos serviços sociais de proteção à criança. No relatório enviado pela escola foi colocado o número do telefone da diretora de turma, a pedido desta, para eventuais contactos e troca de informações.

 O Bruno desistiu também das visitas furtivas à escola. 

Decorreram dois anos e finalmente o telefone da Ana tocou. Era uma das técnicas que tinha sido contactada telefonicamente na altura do abandono escolar do aluno. Procuravam informações sobre o rapaz que agora teria 13 anos… A Ana já nem dava aulas nessa escola onde o caso tinha sido referenciado.

Coincidentemente as denúncias de maus tratos e negligência parental ecoavam nos media. 

Texto original editado em Setembro de 2021

Maria dos Reis Gomes
, nascida e criada em Bragança.
Estudou na Escola do Magistério Primário em Bragança, no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira em Lisboa e na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação no Porto, onde reside.
Sempre focada no ensino e na aprendizagem de crianças com NEE (Necessidades Educativas Específicas) leccionou no CEE (Centro de Educação Especial em Bragança). Já no Porto integrou o Departamento de Educação Especial da DREN trabalhando numa perspetiva de “ escola para todos, com todos na escola). Deu aulas na ESE Jean Piaget e ESE Paula Frassinetti no Porto.
A escola, a educação e a qualidade destas realidades, são os mundos que me fazem gravitar. Acredito que, tal como afirmou Epicteto “ Só a educação liberta”. Os meus escritos procuram reflectir esta ideia filosófica.

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