terça-feira, 12 de julho de 2022

AS COISAS [...] — QUANDO A RAPOSA ANDA AOS GRILOS

 O pobre Turdus philomelus Brehm, vulgo tordo, e seus parentes próximos são hoje as grandes vítimas da frustração dos caçadores. Aqui há vinte anos, qual era o caçador digno do nome que se rebaixava a atirar a um tordo, a não ser por desfastio ou por exercício de pontaria ou ainda por impulso predatório gratuito? Nada, o chumbo estava reservado para as espécies que o mereciam: as perdizes, as lebres, os coelhos. Na cartucheira iam também, pelo sim pelo não, dois cartuchos com zagalotes, não fossem por lá aparecer o senhor lobo, o senhor porco montês ou a comadre raposa a alcance de tiro. Os tordos deixavam-nos os caçadores para os garotos que, de carabina Flobert de nove milímetros em punho, iam fazendo a lenta aprendizagem da arte venatória.
 Hoje porém tudo mudou. A caça nobre, como tudo o que era bom à superfície do planeta, foi insensatamente dizimada e hoje é mais fácil ver um camelo passar pelo fundo duma agulha do que um caçador voltar para casa com meia dúzia de peças à cinta. O homem ainda não acordou para a evidência de que o uso imoderado das coisas leva ao seu esgotamento com uma rapidez estonteante. Os pesticidas e toda a química de que a agricultura se serve ajudam à missa: aumentam a produção, é certo, mas eliminam a vida silvestre e agravam a penúria. Hoje escasseia a caça, amanhã escasseará o próprio ar que respiramos. Segue-se que, terminado o período normal de caça à perdiz e insatisfeitos os caçadores com os magros resultados obtidos, se atiram com sanha aos pobres tordos, que vêm confiados para a safra da azeitona nesses olivais da Terra Quente e acabam sacrificados à pontaria das sofisticadas armas automáticas dos caçadores de Guimarães, de Fafe, do Porto, que sobem às nossas alturas a vingar-se da escassez de perdizes. Em anos de abundância, às vezes o tiroteio é tão nutrido e contínuo que parece a fim do mundo, como se diz vernaculamente nestas minhas berças.
 É a adaptação do caçador às novas circunstâncias. Na verdade, como dizia Sófocles, o homem é o maior de todos os prodígios, e — digo eu — um dos seus prodígios principais é a capacidade de adaptação. Se não possuísse essa capacidade em tão alto grau, o australopiteco ou o pitecantropo ou qualquer que fosse dos nossos venerandos avoengos não teria desembocado nesta bem sucedida espécie Homo sapiens. 
 Mas claro que, a este ritmo de matança, a relativa fartura actual de tordos não pode durar muito. Matam-se aos milhares todos os anos e a espécie, confrontada com esta chacina sistemática e decerto não programada no livro do deve e haver do ecossistema, pode não ter capacidade para repor as baixas. Entrar-se-á então num processo semelhante ao que aconteceu com as perdizes e as lebres, e os tordos acabarão por ser tão raros amanhã como estas são hoje.
 Bem sei que a tal capacidade de adaptação do caçador às circunstâncias arranjará solução para o caso. Em vez de atirar aos tordos, passará a atirar aos pardais, até que também estes escasseiem irremediavelmente, e sejam apenas objectos paleontológicos referidos nos manuais de ornitologia. Depois dos pardais, seguir-se-á o quê? Talvez as borboletas.
 E depois das borboletas?
 Há um provérbio bem trasmontano que parece servir como uma luva a esta situação: ‘Quando a raposa anda aos grilos, se mal da mãe, pior dos filhos’. A raposa, para cumprir o papel que a mãe natureza lhe distribuiu, deve entrar nas capoeiras ou caçar de salto pequenos roedores e aves. Se tem de se contentar com grilos, é sinal que foi atingida uma situação de ruptura. E toda a ruptura nos circuitos naturais é muito grave. Para a mãe, naturalmente; mas — o provérbio o diz — ainda mais para os filhos. Neste caso, mal comparado, os caçadores seriam a raposa. E os filhos seriam mesmo os nossos filhos, aqueles para os quais não tivemos o cuidado de preservar devidamente este planeta.

(Repórter do Marão, 28 de Dezembro de 1990)

A M Pires Cabral

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