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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

AS MIGAS

 Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Era manhã cedo dos princípios de Junho, ainda o sol não tinha nascido. Zefa preparou as migas de bacalhau para levarem de merenda (fatias de pão centeio escaldadas com água a ferver, bacalhau esfiado, muito alho e ovo cozido cortado em fatias, generosamente temperadas com pimento moído.) Tudo isso bem embrulhado em azeite a rodos e deu delas ao irmão. Enquanto este as comia à pressa, com azeitonas e um púcaro de vinho tinto, amanhou para si uma malga de café de mistura feito na véspera, que tomou com um bom naco de centeio e queijo de ovelha do ano passado, curado em azeite.
          Avelino pôs a albarda ao ruço e deu umas côdeas ao Sabor, cão de bom porte, branco, com manchas avermelhadas ao longo do lombo e nos peitos. Ao burro deu uma mão cheia de “reção” de cevada e uma bacia de água, pois não havia tempo de o levar a beber ao chafariz, fazendo o mesmo ao saroto, ao qual tinha cortado parte do rabo com uma foice, num dos muitos ataques de ira.
          Avelino era um homem baixo e magro, de bigode à “ Hitler” , conhecido na aldeia por tratar muito mal os animais; suspeitando-se até que um lhe morrera devido aos maus- tratos. Enviuvara cedo, depois de sete anos de casado, com apenas trinta e dois anos. Nunca mais quis casar. Zefa era também baixa, de cara longa e a pele tisnada do sol. Nunca casara talvez por que nenhum rapaz lhe tivesse falado pelo seu mau feitio. Além disso, a beleza fugira dela; tinha mais bigode do que alguns homens da aldeia e lacrimejava constantemente do olho esquerdo, que trazia sempre inflamado. Uma palha centeia espetara-se-lhe no olho quando brincava na eira, com nove anitos. 
          Colocou as migas numa “m´rendeira d´ilumine” que pôs dentro de uma taleiga de pano.
          Avelino tirou o burro da “loje” e prendeu-o a uma ferradura cravada na parede, para esse efeito. Entrou no quinteiro e gritou:
           - Atão? Amaneia-te se não passemos aqui o dia e o calor no tard´ aí.
            - Caralhitchos pró home…- resmungou baixinho. – Já ´stou a caminho – disse elevando a voz.  
            Num dos bolsos do avental meteu uma mão cheia de figos secos e no outro uma grande fatia de centeio. Num bolso falso da combinação de flanela, com que dormia todo o Outono e Inverno, escondeu uma garrafinha com aguardente, que ia bebericando durante o dia às escondidas. Talvez o único consolo que tinha na vida.
            Desceu as escaleiras de xisto irregulares e já gastas. Ao passar pelo Sabor: “aboca” e o Sabor , numa pirueta artística, abocanhou no ar os pedaços de pão que a Zefa lhe atirara . Agradeceu-lhe abanando o rabo e arreganhando- lhe os dentes.
            Como habitualmente, Avelino ia na frente, a cavalo no ruço com a taleiga da merenda e a cabaça do vinho e  Zefa atrás, sempre a pé, com o sacho ao ombro, acompanhada pelo cão. 
         Desceram a rua e ao fundo viraram à direita para a rua da estação, em direcção a Santa Luzia. Quando chegaram à Cruz, viraram à esquerda por um caminho estreito que no Inverno era um ribeiro que metia medo.
         Numa casa ou noutra saía pela bueira fumo branco, pouco denso, sinal da queima de lenha seca de amendoeira, que logo se perdia no ar morno e puro da manhã; lume que as mulheres acendiam para fazer o caldo. O fumo saía a medo, ainda dorminhoco, hesitante, mas quando se encontrava em céu aberto espreguiçava-se, bocejava, abria os olhos e corria pelo céu acima, tentando chegar às estrelas. No céu lavado, ainda muitas estrelas tremelicavam e anunciavam com a sua presença já sumida, o fim da aurora e o começo de mais um dia de suor e de fadigas, como todos, até ao fim das suas vidas.
              Ao chegarem ao tapado do cego, cruzaram-se com o Joaquim Lombeiro, mais conhecido pelo “Larachas”, pois tinha sempre um provérbio ou um dito para cada ocasião. Havia já há algum tempo que o burro do Avelino tinha levantado as orelhas, como sinal da presença de alguém nas redondezas, pois os burros têm esta inteligência.
              - Hum…quers conbersa, quers conbersa! – Dizia o Avelino batendo-lhe com o cabo da foice no “catchaço”.
              - Num batas assim tanto no animal, ó ´B´lino! Olha que quem bate no seu burro, em si próprio dá murro – pediu-lhe o Joaquim.
              - Dá, dá. A mim no me dói nada.
              - Ora atão bôs dias.
              - Bem com Deus.
              - Atão p´rondé a ida?- perguntou por perguntar
              - Cabar um milhito no Campo Redondo. Atão e tu, bais p´ra donde?
              - A fazer o mesmo p´rá Malhadinha e a ber se ripo um punhado de folhas d´olmo p´rá bianda dos recos.
              - Inda onte ripei dois sacos dela no Sesmo prós meus- disse a Zefa.
              - O teu milho está bem medrado, ó ´B´lino, mas precisaba di o arralares um poucotchinho.
              - Ora bês?! Toma...- resmungou a Zefa para o irmão. – Eu já lo dixo muntas bezes, mas ele inda é mais turrão do có burro! 
              - `Stendes inganados. A terra tem munta sessão e aguenta co milho todo. É só interrar a foice um catchico, que logo se bê a sessão.
              - Bem…lá diz o dito:” No S. João, debe o milho cobrir o cão “.
              Entretanto o burro não parava quieto e o Avelino não parava de lhe dar pancadas.
              - Ó home do dianho! Inda matas o burro!Porqu´é que o no insarrilhas? Assim tomabas milhor conta dele. Os meus tamãe andam sempre insarrilhados. Às bezes inté na loje!
              - Mato, mato. Antes eu a ele do qu´ele a mim. É p´ra saber cumé que s´enxofra. Tem qu´aprender à minha moda.
              Josefa e Joaquim trocaram um breve e oculto olhar de reprovação e ambos encolheram os ombros, resignados.
              - Atão bá, inde com Deus – despediu-se o Lombeiro.
              - Ó J´aquim! No bás pró teu. Anda cabar o meu, qu´é mais perto – convidou-o o Avelino.
              - Oh…companhia de dois, companhia de bôs; companhia de três é má rês. – Respondeu.
              - Pois... E pouco fel azeda munto mel – atirou-lhe a Zefa com sarcasmo.
              - Lá essa tamãe é berdadeira. Antes com bôs a roubar do que com ruins a rezar.
              Quando já ia a picar o burro, ainda lhe perguntou a Zefa:
              - Ó J´aquim! Atão est´ano bamos ter munto binho, ó quê?
              - Hum…- disse torcendo o nariz. – Maio coubeiro nó é binhateiro. Debia era tchuber lá mais p´ra diente, porque “ tchuba no São João, beb´o binho e com´o pão “. – e  despediu-se o Joaquim, com “inté mais logo”,deixando os irmãos a sorrir, por que não havia tempo para mais larachas.
              - Hum…hum…Quers conbersa, quers conbersa! – Continuava a lenga-lenga, enquanto lhe batia entra as orelhas.
              Um dia para as bandas do Gandarado, quando se encontrou com a burra do Camilo, que andava “alebantada” cortou-lhe um pedaço da orelha esquerda. O burro não controlou os instintos sexuais e o dono não controlou os instintos irracionais. Apesar de não ter inimigos, Avelino quase não tinha vida social: apenas ele e a irmã – condenados a aturarem-se um ao outro. Depois de ficar viúvo, Avelino e a irmã entre-encostaram-se e iam demonstrando o carinho que sentiam um pelo outro com rezinguices.
              A serra do Reboredo estava já diante deles, altiva, imponente e temerária, parecendo um animal de perfil, estendido ao sol. Era uma serra pura, sem máscaras, que se mostrava na sua intimidade. Tinha o ventre cheio de hematite. De onde em onde, as escombreiras vermelhas, da cor da ferrugem, testemunhavam a labuta dos mineiros nos seus intestinos, fazendo-a sangrar, mas nunca a vencendo. Porque, se as árvores morrem de pé, as serras nunca morrem. Estendia-se de Sudeste para Noroeste, em mais de dez quilómetros, separando os termos Larinho e do Carvalhal do de Felgueiras. Do alto da fraga do facho, com a sua altitude acima dos novecentos metros, vislumbra-se uma paisagem de cortar a respiração. (Se alguém quer entrar em êxtase com aquela beleza estonteante, suba à Fraga do Facho). Viam-se os concelhos de Vila Flor, de Carrazeda de Ansiães, de Alfândega da Fé e até de Macedo de Cavaleiros! O Sabor lá ia correndo vagaroso, sem sobressaltos, como cobra preguiçosa, gozando os primeiros raios de sol. Os seus castanheiros bravos, as faias, os negrilhos, cedros, os famosos medronheiros e pinheiros e azevinhos, davam guarida, principalmente no Inverno, a ursos, javalis, veados, lobos, raposas e coelhos. Já os Romanos lhe conheciam as entranhas! Transmitia uma pureza divina e uma tamanha paz espiritual, que mais parecia o sono profundo e mágico de um bebé. Logo ao lado, à sua esquerda, quem vai para Carviçais, tinha a companhia do Cabeço da Mua, que se ergue repentinamente, igualmente rico em ferro e em “santchas”. Lá estava o cruzeiro tombado pelo violento tufão de Fevereiro de 1941.

(Foi no ano de quarenta e um
Que tudo isto aconteceu
Não ficou telhado algum
Onde o vento não mexeu.)
     
         Avelino desviou as silvas do portal da entrada com o cabo da foice e prendeu o burro aos olmos, por onde passava o ribeiro de Santa Luzia e onde havia um pouco de erva verde ficando assim resguardado do sol. Tinha também um freixo, que era o orgulho do Avelino; não havia no termo um freixo daquele porte. Dava para a trave mestra de qualquer casa. Além disso, quando o “´sgalhava”, dava lenha para meio inverno, lenha essa que dizem que “só não arde debaixo de água por vergonha “. Zefa foi guardar a taleiga da merenda junto às fragas, numa frincha, onde o sol não entraria.
              Naquela época do ano as estevas floresciam e cobriam as encostas, principalmente o “Pinhal da Franga” com as suas florzinhas brancas raiadas de sangue, a que o povo chama a flor das cinco chagas de Cristo. Reza a lenda que as cinco pintas avermelhadas são sangue que caía da cabeça de Cristo, quando subia o calvário com a cruz às costas. (Ou seriam manchas de amor, caídas da face em gotas de suor?). Perfumavam o ar com o seu aroma forte agridoce. Essas florzinhas imaculadas e inocentes com as suas pétalas alvas de neve e as folhas persistentes e lanceoladas, cobertas com uma goma brilhante e pegajosa, de verde- escuro na parte superior e mais claro na inferior, eram um hino de alegria à Natureza e um agradecimento a Deus por existirem. Era um quadro magnífico e enternecedor, olhar aquelas encostas cobertas daquela flor branca, com cinco pintas vermelhas e com o centro amarelo vivo. Tinham ainda a utilidade de servirem de lenha para aquecer o forno comunitário e de serem eficazes na desinfecção de feridas. A par das estevas, completavam a paleta multicolor as giestas piorneiras e as urzes, dando um colorido matizado aos montes, numa extraordinária e incrível profusão cromática, ocultando a sua aridez e incompetência agrícola. Ali, naquelas áridas terras xistosas, as flores ganham um cheiro suplementar e uma luminosidade sagrada e extra para “alumiar” as trevas das montanhas e dar alegria às almas negras, amedrontadas, subjugadas e oprimidas das gentes transmontanas. Pelo menos a generosidade da Natureza, com o seu vasto manto Universal, ainda não conseguiram tirar-lhes, à imagem da felicidade, assim como a vontade de ganharem o pão necessário para a sua sobrevivência em liberdade.
         Os dois irmãos trabalharam afincadamente sempre calados, como era hábito. Raramente conversavam; as poucas vezes que dirigiam a palavra era para resmungar ou retribuir as ofensas do outro. Eram duas almas solitárias que sabiam que não tinham mais ninguém no mundo. O Avelino tinha um filho no Brasil que vivia em Santos, no litoral, perto de S. Paulo. Escreveu apenas duas cartas no primeiro ano e nunca mais deu sinal.
              Lado a lado, cada um cavava determinada largura de terreno. Os sachos rasgavam a terra com precisão cirúrgica. Tinham que ter o cuidado em não tocar no caule e nas raízes do milho e arrancar apenas as ervas daninhas, apesar de haver outras que não há sacho algum que as destrua.
           Cansada, Josefa encostou o peito esquecido, doído e dorido, seco, descaído e inútil, que nunca soubera o prazer da turgidez ao cabo da enxada e limpou o olho esquerdo com a ponta do lenço preto que trazia eternamente na cabeça; nem para dormir o tirava. (A partir duma certa idade e depois de casadas, era condenável as mulheres andarem com o cabelo descoberto; só as novas se davam ao prazer de o mostrar. Era a perda da mocidade e a proibição de continuarem a ser alegres e jovens. Para elas o casamento era a transmissão da pertença dos pais para o marido. Na igreja não era admissível sem o lenço e sem o xaile preto e às raparigas solteiras sem um véu, de preferência também preto. Aos homens não se permitia assistirem à missa em “mangas de camisa”). 
              Zefa olhou pata trás como que a avaliar o que já tinha feito e o que ainda faltava fazer.
              - Bá, bamos lá! P´rá frente é qu´é o caminho. P´ra trás mijá burra. – Atirou-lhe logo o irmão.
              - É…P´ra trás mijá burra do João Brás- respondeu-lhe a irmã.
              - Hã, hã …anda lá, anda lá…quers conbersa, quers conbersa. Queira Deus queira qu´a burrinha no bá à feira…- disse-lhe o irmão em tom de ameaça.
              Josefa cerrou os dentes, amordaçou a raiva e pôs-se a olhar para o vazio, igual ao futuro. Aprendeu a calar-se com o silêncio dos campos. Cansada e triste, com olhar dividido entre o feito e o por fazer, olhou para os calos das mãos, que são o preço da honestidade. 
              - Bou mijar – disse repentinamente, largando a enxada. – Foi para trás de uma parede e mijou em pé, como era hábito das mulheres e aproveitou para dar uns golos na garrafinha. Não havia preliminares e tudo era “ao momento”.
              Calou os gritos e enterrava a raiva na ponta da enxada. Os dois sentiram o elo secular e inquebrável que os ligava à terra e os fazia lutar com toda a sua cólera e amor pela sua defesa. Ambos sabiam que o caminho seria menos insuportável e doloroso se houvesse uma presença amiga. Eram, por isso, duas criaturas cúmplices e inseparáveis, ambos aceitando a situação como um facto consumado, como se aquela fosse a vontade do Criador. Podiam resmungar e insultar-se mutuamente, mas sabiam que aquilo não era com eles; era com a madrasta da miséria de vida triste e sacrificada que lhes tinha calhado em sorte. Todos os carinhosos insultos morriam abrigados na doce asa amiga da fraternidade. Faziam parte dos abandonados pela sorte, pelo poder e pelos oportunistas que viviam à custa da bajulação e da exploração da miséria e da sua simplicidade. Eram espremidos pelos poderosos, exploradores e prepotentes aqueles que nada sabiam de honra, de solidariedade e justiça social. Eram como se fossem excrementos dos ricos, depois de lhes servirem de alimento. Serviam apenas para pagar a décima e engordar ainda mais os barriguistas, que nada sabiam do que era lavar as mágoas com mais mágoa e amordaçar a boca dos filhos para lhes não pedirem o pão que não tinham para lhes dar.
              Deveria haver alguém com engenho e arte para cantar e contar o profundo sofrimento destas gentes, o seu carácter sólido como as fragas, a sua solidariedade genuína e denunciasse esta vida miserável e de abandono a que estes seres humanos são votados de forma vil e ignóbil.
Mas há sempre uns “alcaforros” de bico e garras afiadas, prontos a surripiar tudo o que podem. 
              Eram homens sem sombra, encolhidos na sua pequena e envergonhada existência. Tinham até medo de fazer sombra, não fosse incomodar os “Senhores”.
              Logo ali ao lado passou o comboio das onze, com os bofes de fora, deitando fumo negro pelas ventas. Os dois acenaram-lhe e o Avelino gritou: 
              - Apita, Abilho. Apita.
              E o Abílio, que era de Carviçais e fora o último maquinista da linha do Sabor, apitou duas vezes e ficaram interiormente satisfeitos e felizes. E é isto a felicidade humana: um pormenor, mesmo insignificante serve para nos derrubar ou dar forças para continuarmos a luta.
              Olharam um para o outro e ambos para o sol. Pousaram os sachos e dirigiram-se em silêncio para a sombra do freixo.
              O Sabor, que dormitava à sombra, foi ter com eles a lamber o focinho e a abanar o rabo, em sinal de contentamento, como quem esfrega as mãos.
              - Ai, Pai do Céu, que desgraça esta! Aixe…Mãe Santíssima. 
              - Oh… `Stás maluca?! O qu`é que te deu?! Olha c´uma destas! Inté parece qu´és tchotcha!
              - Olha…bê. Bê as migas! – Disse Josefa com ar desconsolado, mostrando a merendeira pejada de formigas.
              Eram formigas aos milhares, de todos os tamanhos e de todas as cores: grandes, pequenas, pretas, castanhas…
              - E atão?! Nunca bistes formigas? Inté parece que bistes o fim do mundo em ciroilas! – Limitou-se o irmão a observar com a maior naturalidade, encolhendo os ombros.
              - Credo, abrenúncio. Eu é que no como as migas! Deus ma mim librara!
              - Bá, deixa-te de tchotchices. No nas queres? - Perguntou-lhe o irmão com um sorriso malicioso, com um pouco de malvadez, até.
              - Antes quero morrer à fome do que comer essa porcaria.
              - Atão bai às cereijas do Ferrador, que já debem `star maduras, ou atão bais ó lameiro do Luís Carbalho ou ó do Montenegro ós cús de galo, que lá debe haber muntos. Olha cos raparigos do Luís bem s´entchem lá deles! Ou atão ainda, bais ós figos do Ti Zefrino, àquela preta, que são do cedo.
              - Bô! E atão?! O figo lampo é do campo.
              - E o bindimo é do meu primo – caçoou o irmão, no seu genuíno jeito de troça.
               - Hum… lá ´stás tu a inbantar tchotchices.
               - Pegás lá…deixa-te mas é de salamaleques.
               - Já te disse que no nas como – rematou com convicção e raiva.
       (Abre-se aqui um parêntesis para referir uma pequena história que a Zefa conta, para arrelia do irmão: Uma noite,na década de sessenta, houve um sismo que fez abanar as paredes. Nessa altura o Avelino andava mal dos intestinos e estava no bacio. " Ó Zefa! Ó Zefa! Ou sou eu qu´stou maluco ou é o penico que dança! - Gritou para a irmã).
              Avelino pegou na merendeira e com a colher mexeu, mexeu e remexeu até envolver todas as formigas nas migas, que iam esticando o pernil presas naquela argamassa.
              - Atão, que le queres tu? No te precatastes?! Quem te mandou a ti deixares a m`rendeira mal fitchada?! No nas queres? – Voltou a perguntar, metendo a colher cheia à boca. – Inté me fazem cócecas por a ganhó abaixo. Anda cá Sabor. Anda cá; aboca, aboca. Se morrermos, ó menos morremos fartos. “Morra Marto, morra farto” – disse num risinho provocador. - E deitou umas colheres para o chão e logo o Sabor as devorou, como se fosse o melhor manjar.
              - No comas isso, home. Por amor de Deus, no comas essa porcaria, qu´inda morres, por i.
              - Ora bô, bô. Morro lá´gora. No conheces o dito? “ Barriga tcheia seja ele d`areia. “
              Zefa de olhos arregalados, punha as mãos na boca aberta de espanto e de terror e só dizia: 
              - Aixe…Ai Jasus, Santo nome de Jasus Cristo! Ó rais paliró home.Inda te fazem mal.
              - Fazem, fazem - respondeu-lhe o irmão com a boca cheia. – Como entram, tamãe há-dem sair. Só de caso no quiserem, que façam um formigueiro cá dentro. E olha: este é p`rás afogar – disse bebendo uns bons goles de vinho da cabaça, todo satisfeito, tendo estes homens a rara capacidade de fazer troça da própria desgraça.

“ A mágoa profunda tem menos poder para atingir o homem que dela faz troça e não a carrega como um fardo”  - Shakespeare.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
     Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
    Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
      No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
     Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
    Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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