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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

PEDIDO DE NAMORO

 Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Custódio estava sentado nos bancos de pedra à sombra das faias, junto ao chafariz, à laracha com outros, quando viu passar a Deolinda com a bacia da roupa à cabeça para os lados do ribeiro dos moinhos. Acaçapadamente esgueirou-se e foi buscar o cavalo à loja e foi-lhe no encalce. Fisgou-a ainda antes de chegar ao Altinho do Prado, a menos de oitocentos metros de um dos locais onde as mulheres lavavam a roupa. Como não tinha a habilidade da palavra nem diplomacia, foi curto e grosso:
        - Ó Diolindia...Sabes que bibo sozinho e já ´stou entradote na idade e no é nada do meu agrado. Precuro uma rapariga séria e honesta que queira casar comigo.
        - Pois fazes tu munto bem, porque um home sozinho no é bô. Por isso é que Deus fizo o home e a mulher.
        - Inda bem qu ´stás conforme comigo. Pois eras mesmo tu que me calhaba.
        - Eu?! Hum...´Stás munto inganado. Por uma, inda sou munto noba e por outra, no t´escolheria a ti.
        - Ora, ora! Atão porquê? Tanho sarna, por acaso? Olha que milhor do qu´eu no arranjas tu.
        - Por i, mas no ateimes. Bais m´adesculpar, e no fiques melindrado comigo, mas no te quero.
        - Porquê? Julgas-te por i a fina flor da terra? Só se fores a fina flor do ´sterco.
        - Num sei. Sou c´mo sou. Num me faço passar por aquilo que no sou.
        - Ora bejam lá a delambida, a deslabada! Inté te debias sentir honrada. Fazia de ti uma senhora limpa, sem andares às jeiras e a biber bem.
        - Antes a pobreza honrada do qu´a riqueza embergonhada. Mas eu só quero lubar a bida que m´apetecer. E digo-te com toda a sinceridade: nem que m´ofrecesses o Paraíso. Ó desmais, raparigas solteiras e inté da tua idade no te faltam. É so le falares. 
        - No bêjo oitra que me sirva tirante tu.
        - Há muntas. É só precuraresi-as. 
        - Quem, por inzemplo? A tua irmã?
        - Por inzemplo. O qué qu´ela tãe? Tamãe no tãe sarna e nem peçonha.
        - A Lucinda? Deus m´a mim librara. Credo, abrenúncio! – Disse com ar de nojo, escarrando para o chão. - Nem carregada d´oiro a q´ria. Nem que no dia do casório fosse coa cara enfiada numa saca dos farelos.
        - O qu´é qu´ela tãe? Oitra milhor do qu´ela no arranjas tu, que to juro à fé de quem sou.
        - Ora bô, bô! Mal por mal, atão antes a filha do papagaio, apesar de que já ´stá mais furada do có tchapéu dum pobre! A Lucinda seria a última mulher com quem casaria.
        - Atão que seja. No digas que desta auga no bubrei. Be-te ó ´spelho e no me maces mais – disse encolhendo os ombros, continuando a andar com a bacia à cabeça, em cima da rodilha.
        - Hás-de biber sempre no surro – ripostou raivoso virando o cavalo em direcção à aldeia. - Sendes todas umas criqueiras. Inda m´hás-de bir c´mer à mão. 
      - Pois bem podes limpar as mãos à parede – respondeu-lhe com sarcasmo.
      Deolinda era uma flor radiosa que se abria à luz arrebatadora do amanhecer da vida.
        Estavam ali duas realidades opostas: a realidade vivida, sem fantasias, genuína e crua de uma moça simples e pura que ainda não sabia o que queria, mas que já sabia o que não queria e uma realidade fantasiosa, arrogante, baseada na soberba e no eterno e humano – embora inadmissível - sonho do poder sobre o seu semelhante. Deolinda era de baixa condição social mas de alta condição moral.
        Custódio foi todo o caminho até à aldeia a rogar-lhe pragas, diminuído e apoucado no seu orgulho pelo descaramento da simples rapariguita. A partir daí continuou a dar-lhe as boas-horas, mas a rosnar por dentro. Jurou vingar-se. Não teve a grandeza de superar a rejeição.
       Arquitectarmos assim a nossa felicidade no exclusivo alicerce do dinheiro ou dos bens materiais, é expormo-nos demasiado ao risco dos ventos da infelicidade e da derrota. Era precisamente essa a situação do Custódio.
        Sem muito entusiasmo, mas convicto da sua posição – mais material do que social – pediu namoro uma a uma, a quase todas as raparigas casadoiras da aldeia. Embora fosse um partido apetecível e prometedor sob o ponto de vista económico, todas elas declinaram o namoro, o que reforça a ideia da verticalidade e da pureza de carácter daquelas gentes. (Ainda não tinham sido viciadas – nem iniciadas - nos falsos jogos da sedução. As serras ainda eram uma barreira, tanto aos ventos – que condicionavam o tempo e a chuva – como aos maus costumes, vindos das grandes cidades e dos malfeitores que, por sua vez, tinham ido dessas aldeias para as cidades aprender a arte das falcatruas). Ao não das outras encolhia os ombros de forma natural, mas o não da Delinda magoou-o no seu orgulho e na sua fanfarrice interior. (Tinha apostado com o Cagado das Moscas e com o Tchitcha Crua, dois dos seus lacaios mais fiéis em como casaria com a Deolinda)! 
        Levado pela sua vaidade, pelo seu sub-mundo de sub-jugação e pelo enganador trivial “ posso, quero e mando”, e respaldado no provérbio” onde o ouro fala, o resto cala ”, certa noite, cerca de três meses depois, dirigiu-se a casa da Deolinda. Mesmo no fim da ceia, estava a aldeia prestes a recolher-se na paz das telhas e do colmo, Custódio deu duas pancadas leves na porta com o nó dos dedos.
       - Entre quem é – convidou o Ti Laureano. 
       - É de paz – sorriu Custódio abrindo o ferrolho da porta e entrando.
       Era o mês de Outubro. Concluía-se a preparação das terras para a sementeira do Outono e Inverno: cavar, lavrar e estrumar. Levavam - se as porcas à acobrição, plantavam-se os morangos e alhos, as couves, as beterrabas e semeava-se o trigo. " Por S. Francisco semeia o trigo; e a velha que o dizia, semeado o tinha ". Faziam-se as últimas vindimas e a garotada ia ao sarrabulho das uvas. Se não se fizeram em Setembro, acabava-se a colheita das batatas, do feijão e do milho. Quando chovia a terra exalava um aroma adocicado a terra fresca. As cotovias e as poupas não largavam a rabiça do arado comendo, muitas vezes, as sementes antes do arado ou charrua as encobrir e à caça das minhocas que a relha trazia à superfície. Cresciam as romãs e os diospiros e a azeitona ia tomando a cor própria de cada qualidade. As malaguetas e os pimentos coloriam de vermelho e verde as hortas e as laranjas já eram maiores do que os ovos das perdizes. As lareiras já se acendiam cedo e os dias eram breves, morrendo rápido. Já o equinócio de Setembro jogava a favor das noites. Aliás, há um ditado que diz: “ Em Outubro, o lume já é amigo “, ou então: “Em Outubro, fogo ao rubro” e ainda: “ Logo que Outubro venha, procura lenha “. As cores dos campos tinham cambiado para o vermelho acastanhado, cor de ferrugem, das vinhas e dos castanheiros. Só as oliveiras e os zimbros conservavam o verde das folhas. As figueiras e os pessegueiros já estavam nus, sem folhas. As castanhas, indomáveis na sua força genética, rebentavam os ouriços, forçando-os a abrir para se mostrarem sorridentes, jovens e alegres, prometendo tornar – se em suculentos e estaladiços bilhós nas brasas da lareira. Era tempo de preparar a terra para a sementeira do trigo, centeio, de plantar beterraba, de semear a cevada e de apanhar as nozes - quem as tivesse.
       - Boas e santas noutes nos deia Deus Nosso Senhor – cumprimentou - o o Ti Laureano.         – Santa-te – disse oferecendo-lhe um mocho feito pelo ti Domingos Carpinteiro. – E podes pôr o tchapéu, qu´aqui no há Santos.
        Custódio usava um chapéu de feltro, sempre com uma pena azul celeste de gaio na tira de seda do mesmo.
        O ti Laureano era pequeno, magrinho mas ossudo, de cabelo pelo de rato e de maçãs do rosto salientes. Já lhe faltavam a maior parte dos dentes de baixo. Uma barba rala vadiava-lhe pelo rosto enrugado de pergaminho. Tinha nas faces dois sulcos verticais – um de cada lado – que mais pareciam dois regos feitos pela relha do arado. Era um transmontano vernáculo: nada o derrubava e o punha de joelhos. Aliás, nada o fazia vergar a espinha. Tinha um génio temido por todos. Que o diga o Zé dos Fornos, que levou umas valentes estadulhadas, lá para o lado da Malhadinha. Quem o safou foi o filho do Tobias, que andava aos figos ali por perto. Era daqueles – embora cada vez menos – “ antes quebrar que torcer”. No entanto, tinha - como quase todos nós – o seu calcanhar de Aquiles: o amor à sua mulher. Só a Tia Germana o vergava e fazia dele um cachorrinho manso, inofensivo – vá lá saber-se porquê! Era respeitado e considerado por todos fora de portas. Portas adentro era um leãozinho amestrado, obedecendo religiosamente às ordens e aos caprichos da Tia Germana! Ao contrário de Custódio que era apenas mau e selvagem, Ti Laureano era bom, corajoso e de sentimentos humanos.
       - Bem-haja – agradeceu sentando-se no mocho entre a Lucinda e a tia Germana.
       Na lareira crepitava um envergonhado fogo, sem nenhuma cavaca digna, tendo uma caldeira com água pendurada nas lares e uma panela de ferro ao lume. A água da caldeira era para a ração de farelos com batatas miúdas e cabaças para o porco. Deolinda lavava num alguidar de barro as malgas do caldo e os pratos da ceia. Lucinda trabalhava, à luz da candeia de azeite, numa camisola de lã que fazia para o Pai. A tia Germana fazia uns miotes de algodão para o marido.
        Depois de umas breves palavras informais de ocasião, o ti Laureano, que estava sentado no escano, perguntou passando-lhe um caneco de vinho:
       - Atão o qu´é que te traz por cá? Ó Lucinda, bota aí um canhoto no lume, pra no ´smorecer – pediu olhando para o borralho em que o vermelho vivo das brasas se desfazia em insignificantes flocos cinzentos.
       - Atão é assim, Ti Laureano: eu no sou munto bô de conbersa, nem de salamaleques e bou dreitinho ó assunto em questã – disse meio atrapalhado, levando o caneco à boca e bebendo uns bons goles. Depois de estalar a língua, em sinal de ter gostado, continuou: - o assunto é a bossa Diolindia – disse olhando de viés para ela. 
       - Atão o qu´é qu´ela te fizo! – Perguntou matreiro o Pai, fazendo-se desentendido.
       - Por imentes, inda nada. Mas pode fazer munto bem a mim, a ela e a todos a bosmecês.
      Deolinda estremeceu de raiva, de repulsa e de asco. Ficou a odiá-lo ainda mais, depois desse truque baixo e covarde. Uma aversão e um desprezo quase incontroláveis invadiaram-lhe as entranhas. Cresceu nela uma revolta surda, amordaçada pelo medo.
       - No te ´stou intendendo...- continuou o Ti Laureano com toda a sua ronha.
       - A questã é munto simples. Só de caso ela m´aceitar c´mo namoro e despois pró casamento...
       Custódio rodava com falsa humildade o chapéu de feltro entre os dedos grossos, de olhos fixos no lume. Havia na sua expressão corporal a volúpia e a languidez da vitória. Os seus olhos de escárnio, entre a fingida humildade e a natural arrogância, fitavam Deolinda, como querendo encurralá-la na sua miséria material e social. Só o seu baixo carácter e a sede de se vingar e de humilhar Deolinda, o levou a incomodar a harmonia daquela família humilde.
      - Bom...- interveio a Mãe, que até ali se tinha mantido calada e, como receptáculo das emoções da filha (além de Mãe era também mulher) – S´ela te quiser, nós no temos nada a opôr. O casamento é p´rá bida inteira, por isso, é ela que debe decedir. O qu´é que tu respondes, Diolindia?- Perguntou sabendo bem em que águas se banhava.
       A tia Germana era também pequena e magra, de cabelo farto. Os olhos eram vivos, cintilantes e astutos. Deolinda herdara da Mãe a fulgurância do olhar. Deveria ter sido uma mulher muito deslumbrante, tal como a filha era agora. Mantinha ainda feições finas e graciosas.
      - Oh... Digo o mesmo que já disse ó Questódio há uns meses retrasados. Aqui atrasado já me tinha rogado namoro e eu dixe-le que não. Por qu´é que bem cá ateimar oitra bez e a desinquezir-me? A Mãe acabou de decer qu´o casamento é pra todá bida e é por mor disso mesmo qu´eu digo que não. Mais a mais eu já le tinha dezido que no sintia ninhum sentimento e ninhuma afeição por ele. No casamento tãe qu´aber amizade..., por o menos!
       - Mas o amor e ámizade bêm despois. – Interrompeu o Pai.    
       - Bêm despois do quê, meu Pai?  Despois das arrotchadas? Despois duma bida d´escrabidão? - Perguntou pousando o pano com que enxugava o prato. – Se no houber amizade nunca pode haber amor.
      - ´Stão a ber?! É uma pena qu´ela tanha est´entendimento. Eu `staba desposto a tirá-los a todos deste tchiqueiro. ´Stou a ofrecer-les, de mão beijada, uma bida limpa, sem precisões.
     - Mas o qu´intressa a bida com mais três tostões se for tcheia de mortificações e de martírios? – Perguntou Deolinda cheia de vigor, de olhos de tição em brasa. – Despois de casada, o qué que me sobra? Andar ós mandiletes dele e ó sabor das arrotchadas, cmo muntas...
      - O qu´é que tu sabes da bida?- perguntou o Pai com uma certa aspereza na voz. – No atchas có menos podias pensar um cibo? Pensar um catchinho entrementes?
      - Oh... Deixá rapariga pensar por a cabeça dela – pediu a Mãe.
      - Ela tem lá cabeça pra pensar e sabe lá ela o qué milhor. Só de caso tibesse, dezia já que sim ó Questódio.
      - Meu Pai! Com todo o respeito, eu sei o qué milhor pra mim e no é casar co Questódio. O meu Pai quer qu´eu seja infeliz a bida toda? – Questionou Deolinda mostrando coragem, ao enfrentar a autoridade absoluta do Pai. – Mas s´o meu Pai m´obrigar, eu caso co ele, mas é contra a minha bontade, digo-le já. – Acrescentou.
       - Tu no sabes nada da bida.
       - Atcho que debemos deixar a Diolindia ´scolher o qué milhor pra ela, meu Pai. – Pediu Lucinda, que até então se tinha mantido na expectativa.
       - Sabendes o qué milhor pra ela? – Perguntou levantando-se. - É isto. Isto é qué o milhor pra ela – disse dando-lhe uma grande bofetada em cheio na face direita.
      Um silêncio espesso e pesado desceu na penumbra mais profunda do coração de Deolinda e criou-se uma atmosfera de constrangimento. Lábios crispados, em articulações dolorosas, mastigou em sussurro queixas gemidas de cólera. No entanto, o seu coração compadecido, estava determinado a todos os perdões das ofensas recebidas. Assumiu uma atitude de olhos enxutos e de coração calado. Deolinda sentiu o ódio latejar-lhe nas frontes. Cerrou os maxilares de raiva com tanta força, que uma onda de dor lhe subiu aos ouvidos. Da candeia desprendia-se uma luz coada, inconsistente e trémula, o que tornava o ambiente mais lúgubre, mais cinzento e mais tétrico. Algo de sádico regozijou no íntimo do Custódio e uma grande tristeza na alma da Lucinda e da Mãe. No espírito de Deolinda cresceu desprezo, mágoa, náusea, repugnância por aquele ser vil, que ali veio com o propósito único de a comprar, como se compra um animal na feira. Talvez a necessidade machista e autoritária e de mostrar quem tinha o poder se tivesse sobreposto ao amor de Pai. Eram realidades antagónicas em conflito, embora reais, não inevitáveis.
    - Ó ti Laureano! Assim tamãe no na quero, caratchos. À força tamãe não, catantchos. - Interveio hipocritamente Custódio, que gozava um perverso sentimento interior de satisfação e de júbilo. – Agora qu´eu ´staba desposto a lubá-los a todos prá minha casa e a tirá-los deste pardieiro sujo, desta tchoça e lubarem uma bida mais limpa e com mais fartura..., lá isso ´staba. Mas a Diolindia assim no no intende. Paciência... Fazia dela a senhora mais assenhorada da poboação. – Disse levantando-se encolhendo os ombros. - E acrescentou com ironia - Mulas, mulheres e moletas, ´screbe-se tudo co as mesmas letras. 
     Voz amarga e olhar oblíquo, demonstrando todo o desprezo pelos outros.
     - Nós bibemos consoante podemos. Bibemos conforme as nossas posses. Se no podemos biber milhor, paciência... Somos pobrinhos e no o neguemos e é assim que temos que lubar a bida pra diente. A pobreza no é bergonha ninhuma. – Sentenciou a tia Germana.       – No somos à moda da bila: “ cesta grande e pouca comida” e nem c´má menina d´aldeia: “ Se tem sapato, já no tem meia “. Bibemos consoante as nossas posses e prontos. Se no houber trigo, comemos santeio.
      Tia Germana tinha a virtude da simplicidade.
      - Dá-le mais uns dias, ó Questódio – pediu o Pai quase numa súplica. – Tu bem sabes cmo é o entendimento das mulheres e pior ainda duma rapariga qu´inda no sabe o qué milhor pra ela, que no sabe inda nada da bida. Sabes cmo é: “ Moça louçã, cabeça bã”.
        No rosto magro, sempre de dentes cerrados, sobressaíam os maxilares irrequietos, que lhe davam um certo ar de dureza.
       - Mas tu queres bander a tua filha? Deixá rapariga ´scolher o destino dela.
         Ao ouvir tal blasfémia, os olhos de coruja do Custódio reviraram-se e fixaram-se como lanças e faíscaram lume no rosto velho e enrugado da tia Germana. Chisparam faúlhas de fogo em brasa naquela velha que teve a coragem de enfrentar todo o despotismo e tirania do Custódio.
      - Atão, prontos. Tantei auxiliá-los e morderam a mão que les daba de cumer. Inda são d´arrepender disso. Fiquem lá coas bossas misérias e co esta tcholdrice- disse levantando-se de maneira abrupta -. Mulas mulheres e muletas começam todas coas mesmas letras – repetiu num tom irritado. E acrescentou só para atingir o Ti Laureano: “ Triste da casa onde a galinha canta e o galo cala”. – Atirou saindo apressado e batendo a porta com força.
     Custódio queria ter sempre a última palavra e falava sem ouvir o outro. Quando fazia uma pergunta e o outro lhe respondia de determinada maneira, Custódio continuava como se a resposta tivesse sido de acordo com a sua pretensão. Tinha um feitio ácido. Quase ninguém o contrariava – uns por acharem que era pura perda de tempo, outros por desprezo, outros para lhe não espevitarem o mau génio, e outros ainda por conveniência. Custódio dava muitas jeiras a ganhar ao longo do ano a muita gente.
      - Deixó ir e mais ó raio que o palira. Patife! ´Scamungado! – Atirou a Mãe fazendo um gesto com a mão, encolhendo os ombros, quando Custódio já se encontrava na rua. - Andor, andor! As tuas besitas são c´mó carneiro: ó fim de três minutos já deitam tcheiro. Andor. Bai precurar forma pró teu pé – disse puxando o xaile para a cabeça. - Besta que no faiz ´strume, fora da ´strebaria. Rua, qu´é sala de cães - concluiu irritada.
        A tia Germana era miudinha de corpo mas dura de nervo e nunca deixou que ninguém lhe fizesse o ninho atrás da orelha. Era de tez escura, talvez mescla de cigano ou de mouro. Tinha a sensatez de uma pessoa simples e sabia que o amor precisa de paz. O ti Laureano conhecia-lhe o génio e admirava-a de uma maneira acaçapada. Não tinha grandes ambições pessoais e nem sonhava com grandes voos para as filhas. A dignidade do dia-a-dia era-lhe suficiente para se manter feliz. E foi esse estado de alma que tentou incutir na educação das filhas, embora lhe parecesse que a Lucinda não dava muito interesse ao que lhe dizia. Lucinda era mais do feitio oportunista do Pai e Deolinda tinha mais o feitio justo e doce da Mãe. 
       - Tinhas aqui o teu futuro garantido e deitás-te - sio fora! Quers biber todá bida na miséria? – Desabafou o Ti Laureano escondendo a cara com as mãos.
       - Futuro, meu Pai?! Qal futuro?! Cmé que posso ter matado o futuro se o num tanho? Num se pode matar uma cousa que num existe. Eu salbei foi o meu presente, quando munto! - Respondeu-lhe com voz dorida.
      - Oh... - Disse a tia Germana. - Dias de munto, bésperas de pouco.
      - Perfiro biber na miséria mas feliz, do que infeliz na fartura. Além do mais, se no posso ´scolher o modo cmo bou morrer, mas ó menos posso ´scolher o modo cmo quero biber.
     - Mas tu queres o dnheiro ou a flicidade? Olha qu´onde o oiro fala, tudo cala. Já bistes alguém a ser enforcado coa bolsa do dnheiro ó pescoço? – Perguntou o Pai numa voz raivosa. – O dnheiro faiz o Conde e o Brasão – acrescentou.
     - Ó meu Pai! Se bierem as duas juntas, inda milhor – comentou a Lucinda que estava abismada e boquiaberta. - Cá por mim, mal por mal, perfiro biber infeliz n´abastança do qu´infeliz na penúria. Dnheiro e santidade é sempre menos que métade. – Rematou.
     - Ó rapariga! Bale mais a honradez da gente do có dnheiro todo qu´há no mundo – argumentou a Mãe. – O dnheiro só traiz miséria, inimizades e mortes. E já diz o pobo: “ Por cobiça dum florim, no cases com coisa ruim “.
    - Ora bô, bô! Isso são balelas, nha Mãe. Isso são lérias qu´os ricos dizem, qu´é prá gente no ter imbeja deles. Beja lá s´eles nos se pelam todos por ele! – Alegou a Lucinda. - Arrebanham este mundo e o outro e inté matam. Só o no lebam prá coba porque no podem!   
     - Ora bês? Óspois tamãe se quilham; deixam-no cá c´mós oitros – proferiu a Mãe, cerrando os punhos.
     - Cá por mim, o milhor são as duas cousas juntas. – Ironizou a Lucinda. – Quem dnheiro tiber, fará o que quiser. É cmá saúde e o dnheiro. Qu´intressa termos saúde se num tibermos dnheiro prá gozar? E o qu´intressa termos dnheiro se num tibermos saúde pró gozar? – Disse com ar triunfal. 
     - Qais as duas cousas juntas?! O dnheiro e a flicidade nunca andam juntos. – Ripostou a Mãe. – Tu já bistes a auga misturada co azeite? Deixende a rapariga ´scolher o destino à bontade dela. O casamento e a mortalha no Céu se talha. Olha! – Disse de dedo em riste virada para o marido – Eu tamãe te ´scolhi a ti e no tinhas onde cair morto e no ´stou arrepesa. Mas gostaba de ti e se fosse hoje, boltaba a dar os mesmos passos. Ó pé de ti fui feliz, mesmo lubando uma bida de trabalhos e de penúria. – Disse a tia Germana, numa mistura de melancolia e de afecto.
     - E adiantou-te munto... Eu no tinha onde cair morto e tu só tinhas o tchão pra te sigurar! – Resmungou o ti Laureano de modo seco, sem qualquer sensibilidade. – Tchigastes a belha sem teres nada de teu! – Atirou com um risinho sádico, miudinho. 
     - Graças a Deus nunca passemos fome.
     - Ou, ou... Co a fartura podiamos nós bem – satirizou o marido.
     - Além do mais, no arranjabas oitra c´mo eu – atirou a mulher.
     - Ora bô, bô! Encontraba uma ó birar de cada pedra!
     - S´encontrasses era algum alacrau – ironizou.
      Ti Laureano espreitava uma vida mais cómoda através da aceitação de subjugação da filha. No rosto escuro e rugoso, o nariz afilado aumentava a expressão de miséria.
    - Poi ´stá feito. Grande desgraça que beio ó mundo! Mas tchiguei a belha de cara alebantada, sem m´ embergonhar de nada e tanho munta presunção na familha. Posso passar por os adjuntos de cara destapada e limpa. Graças a Deus, comigo tudo anda à luz do sol. No tanho que tapar nada.
     - Cala-te, mulher. Negro é o carboeiro e branco o seu dnheiro.
     - Mas tu queres bander a tua filha a um demónio daqueles, a um soberbão daqueles? Tu só bês dnheiro, home de Deus? O dnheiro no se come. E a honra? Onde fica a honra?- perguntou irritada, batendo no peito com a mão aberta.
      - Sei lá eu o qu´é isso da honra? Olha, fica prós pacóbios c´mo tu, qu´acreditam nessas cousas. Enquanto t´impingem essas lérias, eles vão-se gobernando à nossa custa e inda se riem e inda nos tchamam tchabascos e tchotchos! Dai-me dnheiro e no me dedens conselho. Dou rezão à nossa Lucinda.
     - Eu tamãe penso c´mó Pai. A honra tamãe no se come e às bezes é só pr´átrapalhar a gente – disse a Lucinda, sentindo-se apoiada pelo Pai. - A gente bem oube o padre a decer cousas do altar abaixo, mas óspois bem bai jantar a casa dos ricos e a combiber co eles. E alguns no têm honra ninhuma. Nuncá tiberam nem eles nem os seus antepassados – disse abanando afirmativamente a cabeça. – Palabras de mel e coração de fel – rematou indignada.
     - Pois não! Claro qu´a honra tamãe no se come, mas ajuda-nos munto a enfrentar os dias menos bôs – disse folosoficamente a Tia Germana
     - Oh... Dias maus são todos eles. É um pior do qu´ó oitro...
     - Mas agora a Mãe tamãe quer tirar o lugar ó Maltês? – Perguntou a Lucina em tom de sarcasmo.
      - Caralhitchos! Tu e ó teu Pai, sendes inguaizinhos, sem tirar nem pôr, carai! Olhende co milhor herdanço cos Pais podem deixar ós filhos é a honra do nome. Poderem andar de cara labada e alebantada, sem terem medo que ninuguém l´ aponte nada.
       - Bálhá Deus bálha, nha Mãe! Herdanço?! Qual herdanço?! Só se for o herdanço do suor e do surro – protestou a Lucinda. – Quem é que corre atrás de sapatos de defunto?
       - É...! E óspois, se tiberem fome, comem a honra – ironizou o Ti Laureano, fazendo dueto com a filha. – A honra num serbe pra nada. O dnheiro tudo pode – arrematou. – Olha pra nós! Trabalhemos a bida toda c´muns mouros e só temos miséria e porcaria, que nem squera temos tempo de ´stranhar a cama...
       -... E uma alma limpa e a cabeça assossegada – interrompeu-o a mulher.
       - Mas mesmo assim, tirante tudo isso, eu atcho qu´a Diolindia no fazia mal ninhum se casasse co Questódio. – Opinou a Lucinda em tom conciliador.
       - Deixende lá a rapariga. Ela sabo bem o que quer e o que num quer. E ela já dixo que no quer aquel fistor, aquel farçola. Só tem farronca. – Respondeu-lhe a Mãe querendo encerrar o assunto. – Mas aí no meto eu nem prego e nem ´stopa, qu´é próspois num birem deitar as culpas pra cima de mim.
        - Inté tem a mania qué fidalgo. Bem tanta acompanhar cos filhos do Senhor Armandinho, mas dão-le pra trás. Só é acompanhado por os corrécios, porque dependem dele prás jeiras – observou a Deolinda.
       - Fidalgo...! Fidalguia sem comedoria, é cmo gaita que no assobia – rematou a Mãe. – Beio aqui todo intchitcharrado, cmum fidalgo da corte da palha – disse em gesto cómico, abanando os ombros.
       Tia Germana era instintivamente inimiga de Custódio. Tinha o rosto encarquilhado como uma folha seca de castanheiro. No rosto áspero e cretado, podia ler-se, em letras rudes, as lutas que já travara com a vida. Os olhos brilhavam-lhe de raiva, por baixo do lenço preto que tinha na cabeça, amarrado por um nó, por baixo do queixo. Os olhos eram pequeninos, encafuados lá para o fundo e apenas uma pequena luz aurífera brilhava como uma faísca.   
       - Bem bistas as cousas, atcho caquel´ home bai fazer a bida negra a quem casar co ele – sentenciou a Lucinda. – E no são só dois a dezê - lo! É um merdilheiro rim cmá fome. Se meter a mão na conscência, bai - le sair mais negra do có carbão da forja do Ti Meireles mas, assim c´mássim...- disse enigmaticamente.
      - Assim eu tibesse tão certa a salbação – reforçou a Tia Germana.
      - O casamento e a mortalha no céu se talha – repetiu o Pai.
      - No há-d´haber ninhuma qui o queira. Salbaje. Criqueiro. – Disse a Deolinda cuspindo para o lume.
      - É capaze, mas olha que q´ando nasce uma arçã, nasce sempre um burro prá comer. – Disse a tia Germana com ar de conformada, com o lábio inferior sobre o de cima, numa simulação de dúvida. – Mas deixai-o ir e mais ó diabo qui o palira. Rua, qué o lugar dos cães.
      - Que raio de bida...Ó bida dum raio... A gente nasce e despois fiquemos p´ráqui, ò sabor desses ladrões. Misérias...às bezes nem a gente sabe das nossas misérias! – Reflectiu Lucinda encolhendo os ombros e o olhar no vazio.
       A vida daquelas pessoas confundia-se e interligava-de com a vidaquelas montanhas. (Mas as montanhas impunham-se sempre!). Eram seres abandonados à sua sorte, à mercê dos caprichos da Mãe Natureza, com os seus momentos mal-humorados, como toda a Mãe. Calçavam sócos de tromba alta para vencerem os montes de lama e trampa das ruas, dos cortelhos e das lojas. Era uma sociedade de explorados, de espoliados, de trapaceados, de saqueados, de assaltados, de usurpados... Mas não uma sociedade de vencidos, de derrotados, de fracos, de conformados... Porque esses só são vencidos pela Natureza e nunca por nenhum velhaco.
        Custódio saiu de casa humilhado, vergado e reduzido à sua insignificância e soberba. Mas um homem com o alter-ego dele, não podia e nem devia aceitar placidamente uma humilhação daquelas. Aquela negação era como punhais cravados no seu orgulho, na sua ambição e na sua avareza da alma. (Todo o homem se julga a seus próprios olhos). Não aceitava a constatação da superioridade dos outros. Sentia-se rejeitado, desconsolado, magoado, consternado e amargurado, mas nada o impedia de conjecturar sentimentos de vingança, de desprezo e de ódio. O pior que podemos tirar de algo mau que nos acontece na vida, é esse acontecimento servir de alimento ao animal cruel que todos temos dentro de nós. Aí se distingue o ser humano: ou retiramos o veneno que nos mata, ou a seiva que nos alimenta.
      - Atão dondé que beins, ó gabirum? – Perguntou-lhe o ti Francisco, mais conhecido pelo “ Tchico gralha”, que lhe apareceu de surpresa à entrada da loja, de espinha dobrada em arco de volta abatida, como o arco da fonte da Ferrada, com o corpo todo dobrado sobre os joelhos. Ficara assim depois de uma queda do burro sobre umas fragas nas Fontelas, onde bateu com as costas, partindo a “ espinha”.
      - E o qué que bomecê tãe a ber co isso?
      - Por i, lá fostes à pesca, mas ninhuma te mordeu o inzol – disse o ti Francisco num risinho trocista. – Quers um conselho dum tolo? Bira-te pra outras bandas. - Aconselhou-o a quem não passava o ver pelo ouvir.
       - Meta-se na sua bida. Marreco...- Atirou-lhe a deficiência à cara como se de uma doença venenosa se tratasse, querendo descarregar toda a sua frustração na infelicidade daquele frágil ser humano, desgraçado para toda a vida. – Custódio tinha a força a disfarçar a fraqueza.
        Custódio ouviu isso como um insulto, não dando importância, mas ficou-lhe qualquer coisa a moer...
        O ar era fino e frio e uma pequena e rala névoa pairava adormecida no ar. A torre da igreja, mergulhada na neblina, projectava-se no ar fresco, húmido e translúcido da noite. O galaró da torre tinha o bico virado a Sul, sinal de mau tempo. Toda a aldeia dormitava silenciosamente em quartos escuros e abafados, em casas toscas, protegidas pelas serras a Norte e a Nordeste.
       Custódio jurava retaliação bárbara e cruel.      
       Cerca de dois meses depois, vésperas de Consoada, com a mesma soberba, Custódio bateu à porta do Ti Laureno:
   - Ó Ti Laureno e Tia Germana. Hoje ´stou aqui co mesmo respeito a pedir namora à vossa Lucinda...

Texto extraído e adaptado do romance: “ Por entre a solidão das fragas”, a publicar.

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

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