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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Os fortes cheiros dos peixes do rio

 
Na terra mais forte e húmida debaixo da abebereira era cada sachada, sua minhoca. “Essa é grande demais!”, dizia o meu pai, olhando a que eu via mexer-se e esticar-se pela minha mão e pelos meus dedos, movimentos peristálticos que davam uma certa cócega, e devolvia ao solo, escolhendo uma mais fina e mais curta para meter dentro do cabaçote, em que já se enroscavam umas nas outras em novelo. Colocada a tampa de cortiça, estávamos munidos de isco para os anzóis, tínhamos só que manter a humidade lá dentro com umas gotas de água do poço, renovadas no dia seguinte. Havia um isco mais apurado e emocionante de se apanhar, implicava ter de se ir de automóvel até ao ribeiro de Castelãos ou, mesmo, parar, já à ida para a pesca, num dos lameiros que fazem margem ao Ribeiro de Limãos, na linha de água descobri-las e apanhá-las nos juncos e noutras plantas mergulhadas: as remisgas. Foi sempre para mim um mistério como é que uma larvazinha tão pequena construía um casulo tão bem feito, aglomerado de vegetais e minerais minúsculos a formar um tubinho que lhe servia de casa, de onde nós a desalojaríamos para ser acepipe às bogas e escalos, nos anzóis. E percebi perfeitamente, mais tarde, já espigadote, nas conversas dentro do carro, no grupo em que eu me sumia entre o Pai, o Senhor Obreia, o Zé Luís Polícia, o Dr. Simão e, às vezes, o António Pires Cabral, o Pescada, o Ramex e o Senhor Silva Electricista, a alusão certeira de que uma das várias mulheres de que falavam ocupando o tempo do trajecto, era uma remisga a sério, enfiada em casa, mas muito boa em atracção fatal! Era muito diferente, o cheiro a lodo que se soltava do cabaçote das minhocas, do da caixa de plástico das remisgas, em que boiavam nuns milímetros de água, parecendo um fugaz dia de chuva misturado num medeiro de palha.

Nos fundões do Rio Sabor em que a água corria, ainda que discretamente, mesmo no Verão, pescavam-se as bogas e escalos mais especiais. Iam-se enfiando pelo buraco da tampa do cesto de verga dos peixes e ficavam lá dentro em movimentos cada vez menos enérgicos, entremeados com mentrastos e hortelãs silvestres que íamos colhendo aqui e ali, produzindo um aroma característico e bom, mistura dos óleos das escamas e pele com as do mentol e outras essências das plantas de beira de água.

Depois dos dias de pescarias havia um outro cheiro modulado em várias intensidades. Se na nossa cozinha, janelas e portas abertas, se espairava, reduzindo-se à concentração certa para despertar o apetite, nas tabernas de Macedo ficava concentrado com a vozearia dos dias de feira e formava mesmo uma névoa londrina e enjoativa, muito forte. Não era preciso ler ou perguntar pela ementa: havia peixinhos do rio, fritos! A receita está toda no nome, praticamente. Mas a sabedoria de lhes deixar a pele no ponto, da gordura a escorrer para o pão ser já por si uma iguaria, de nem se notarem a maioria das espinhas ao trincar, isso era e é já outro nível de concepção e apuro.

Junto à Ponte do Sabor na velha estrada para Moncorvo havia, dum lado e doutro, tabernas, sobrevivências de velhos abrigos de portageiros medievais, cuja da margem esquerda eram quatro paredes grossas de pedras de xisto aprumadas a seco, telhado vão de que, pelas frinchas, se escapava o fumo dum grande lume a um canto, à volta do qual ferviam panelas, alinhavam grelhas e se estrugiam bogas em grandes e negras sertãs. As bogas da Ponte do Sabor. Não somos partidários da teoria de que “dantes é que era bom”, bem pelo contrário. Mas somos partidários das recordações do que de dantes nos poderia servir de paradigma para o hoje em matéria de conservação de usos e de recuperação de qualidade e autenticidade. Essa fumarada toda que nos envolvia e à taberna, nem sempre vinha no preço a pagar, dias havia em que apenas um borralho assinalava presença e em que o verdadeiro cheiro só se desprendia quando se levantava a tampa duma das terrinas de barro vidrado que estava no balcão – quase igual, mas em tamanho muito maior, à da nossa cozinha. Tenho quase a certeza de que ao provarmos, ao comermos aquelas bogas no pão rescendendo a escabeche, estávamos e estamos a executar o mesmíssimo gesto que os cidadãos romanos, com a suas matronas e família, faziam ao deambular nos seus itinerários.

Fazer um escabeche pode parecer, e é, fácil, mas exige uma atenção científica para que o resultado possa ser produzido com toda a qualidade mítica: as quantidades não podem ser nem mais nem menos e o que dita esse mais e esse menos é o apuro da tentativa e erro, não há outro. Bem limpas e bem temperadas com sal, as bogas têm de ser fritas no ponto, em azeite – mas, antes, há que ver se os seus olhos ainda estão brilhantes e o cheiro do opérculo aberto é agradável (duas condições que, se não se verificarem, levam à sua rejeição seja para o que for). Depois, escorrem-se do azeite a mais e dispõem-se na terrina, entremeando umas folhas de louro. Faz-se um estrugido com alho e cebola cortada fininha, até ficar transparente, acrescenta-se vinagre do melhor e vinho branco (não usar nenhum que seja doce, preferir um ácido e aromático). Despeja-se tudo sobre as bogas. Põe-se a tampa. Horas depois acerta-se o sal, pode acrescentar-se um fio de azeite, limão, o objectivo é manter o pH baixo, condição para maturação e conservação do preparado. Se se quiser arrefecer logo de início, colocar no frigorífico umas horas, mas, depois, pode e deve manter-se à temperatura ambiente.

Dura dias e dias, vai-se regulando a quantidade de vinagre, acrescentando salsa ou coentros, ou mais alho, criatividade! Sobretudo, pode-se ir comendo. O sabor vai evoluindo. Tal como o cheiro, o perfume do escabeche. Com uma grande característica: é um perfume que se come por si. No pão demolhado no prato ou, à sucapa, da própria terrina. Trincando. Com um copo de vinho. Um must. Um luxo fácil.

Manuel Cardoso
Consultor e Escritor

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