“O tempo mudou os símbolos da fé, deliu as inscrições sagradas, e relegou para a penumbra da arqueologia o que foi vivo e útil.”
Miguel Torga (Portugal, 1950)
Perspetiva das reservas do Museu do Abade de Baçal |
Existe em todas as coisas, em todos os sítios, um lado que não sendo invisível também não é visível. Um lado íntimo e enigmático onde o pensamento e a alma respiram em uníssono.
Nos museus, esse lugar, situa-se nas Reservas, fora das salas de exposição, longe do olhar do público e das atividades que enchem as redes sociais. É aqui que habitam as peças que zelosamente se cuidam e preservam, nesse esforço consciente de se lhe prolongar a vida, sabendo que tudo é perecível. Procura-se apreender o seu significado, o seu propósito, porque a matéria é apenas o suporte de algo muito mais vivo e complexo.
Quanto mais idade têm, maior o caminho, a neblina e o musgo que as esconde. Mais intenso o diálogo, mais estimulante o desafio, mais emocionante a aventura.
A Arqueologia é esse cadinho mágico, onde o tempo se perde de vista e essa alquimia acontece.
Vem a talhe de foice a tarefa que temos vindo a realizar nas Reservas do Museu do Abade de Baçal, centrada na higienização, reacondicionamento e consequente revisão do inventário da Coleção de Epigrafia Romana.
De contexto arqueológico local/regional, integra maioritariamente estelas funerárias e aras votivas talhadas em pedra de talco, mármore, xisto ou granito da região.
Na forma e na expressão destas pedras aponta-se o contexto histórico, as mudanças socias, politicas, económicas e culturais que vão ocorrendo com o domínio romano.
Estes monumentos, com epígrafes incisas ou gravadas pelos lapicidas há cerca de dois mil anos, mais ou menos férteis na informação que contêm, são registos espontâneos, autênticos de vida, colhidos na frugalidade do quotidiano de então.
Espelham, essa dupla e aparentemente contraditória manifestação de submissão e de autonomia das comunidades autóctones. O compromisso com o imperador, expresso segundo a observação das normas e formas oficiais (adoção do altar, uso do latim) e, simultaneamente, a intenção de manter a sua identidade (presença do nome e categoria).
Cultua-se Júpiter ao lado de Aerno.
Manda-se erigir uma estela no passamento de um ente querido, prolongam-se na pedra a força dos laços de família e dos afetos. Inscreve-se o ícone astral, nesse movimento eterno, recusando-se o limite. Na epígrafe “S. T. T. L.” (Que a terra te seja leve), hoje e milenarmente repetida, perpetua-se esse abraço intemporal que nos une.
Em dia dedicado à Arqueologia, lembramos em curta homenagem o patrono do Museu e todos os arqueólogos que as trouxeram até nós, as estudaram e no-las deram a conhecer, e todos os amantes destas pedras, que agora revisitamos.
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