Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Tchtchices de Tra los Montes - (O médico da minha aldeia)

Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Na minha aldeia havia um médico que tinha quatro paixões: a medicina, as mulheres, a agricultura e a caça. Exercia-as a todas com o mesmo fervor e paixão! Era o Doutor Acácio Alberto Gomes, filho de pobres lavradores, mas afilhado de um rico e abastado agricultor que não tinha filhos. Esse dito agricultor dedicou-se de corpo e alma àquele menino desde a pia baptismal. Segundo o código do Imperador Justiniano, “ O Pai é aquele que se diz Pai no assento do baptismo”. Desde cedo se aperceberam que estavam perante um menino de superiores capacidades intelectuais. Destacou-se logo na escola primária, fazendo os quatro anos em três! O seu tutor - do qual, por escrúpulos não mencionamos o nome, até por que se dizia à boca pequena que era o Pai do prodígio -, vislumbrou naquela criança, o objecto para nele projectar toda a sua vaidade. ( É sempre assim! Projectamos nos nossos filhos os sonhos que não alcançámos e as nossas frustações. E se eles não os alcançam consoante o nosso desejo egoísta, aqui Del´ Rei que é um fallhado!).  Prontificou-se desde logo a pagar todas as despesas com a educação da criança: vestir, calçar, alimentar, estudos, médicos, enfim...todas as despesas. Mesmo todas! Como era homem de bem – palavra dada, palavra honrada – cumpriu escrupulosamente e até com alguma fanforrice, a sua promessa. A Ti´Albertina – Mãe do petiz -  matreira como uma raposa, tirava o proveito sem, no entanto, tirar a fama. Lá queria ela saber da fama.  O prazer do proveito só ela o quantificava. Aqui acontecia o oposto do adágio: “ Ganha fama e deita-te na cama”. Ti´Albertina continuava a deitar-se na cama sem ganhar fama, mas tirava o proveito quanto baste.
        A população depressa esqueceu(?) esse pequeno pormenor quando foi anunciada a sua formatura em medicina. Houve festança farta, com comes e bebes, tudo à custa daquele abastado proprietário, que manifestava mais felicidade e orgulho do que os Pais verdadeiros. ( Há Pais que são mais Pais do que os verdadeiros Pais, sem serem Pais). De facto, quando morreu, deixou tudo em testamento ao Doutor. Por alguma variável que rege o nosso destino, os Pais morreram primeiro, com uma diferença de vinte e oito dias. E o Doutor fez de tudo para lhes prolongar a vida, assim como igualmente se empenhou em salvar os Pais adoptivos, que morreram cerca de dois meses e meio depois, com um intervalo de três semanas.
        O Doutor Alberto tinha a alcunha do “ Doutor Coelho”, por andar sempre, mas sempre, a roer uma cenoura! Ele lá saberia já  das propriedades do caroteno dessa raiz tuberosa, conhecida dos gregos e dos Romanos. O seu termómetro e o estetoscópio eram a cenoura! Era um médico extraordinário: bastava olhar para o paciente e,  com uma pequena apalpação, ditava o diagnóstico e a receita para aviarem na Farmácia do Dr. Leite ou na Farmácia da Dona Carmen, em Moncorvo. ( Ou, na maior parte das vezes, receitas caseiras, para fazerem em casa!). Era um homem corpulento, de corpo bem atestado, com um bigode à Barão, devidamente frisado e retrocido. Usava umas lunetas na ponta do nariz, o que lhe dava um ar austero e nobre. No entanto,  era de trato suave, afável e sedutor. Tinha o carisma e as incongruências dos verdadeiraos génios.  Não era de sorriso fácil, mas tinha um sorriso meigo e luminoso. Era um humanista de mão-cheia. Impôs-se pelas suas qualidades humanas e científicas. 
      O Dr. Alberto era respeitado tanto como homem, como médico. Todos os respeitavam de chapéu na mão. Cortesia, benevolência e amabilidade, tudo isso recebia sem uma ponta de orgulho. A vaidade não era o seu principal defeito. Sabia distinguir e respeitar as reverências, os sorrisos verosímeis ou cínicos, as benevolentes vénias ou as insinuantes subalternizações. Apesar de dócil, não se deixava empalidecer com qualquer contrariedade e não deixava a verdade enterrada  pelo medo. Se não vejamos:
      Um dia combinou  uma caçada com o Lérias, o Augusto Pinto, o Julho do Marmeleiro e com o Catrineta que, apesar da amizade desde garotos, que até se tratavam por tu,  não lhe perdoava o boato de ter enganado a sobrinha – coisa que não passou disso mesmo, boato – podemos jurar a  “ pé juntos “. 
       Encontraram-se de manhã  bem cedo em frente à capela de Nossa Senhora, junto do chafariz. Quando estavam todos, abalaram em direcção à Malhadinha, com as caçadeiras em bandoleira. Faziam-lhes companhia um lebreiro, dois perdigueiros e um galgo, que chegava a atingir os setenta quilómetros por hora, propriedade única do Augusto Pinto e um furão (de uso proibido pela Venatória), pertencente ao Catrineta. Alimentava-o com os ratos que apanhava na loja, de ovos das galinhas que roubava à mulher, de peixes do Sabor e de vísceras. Mas impunha-lhe uma dieta rigorosa um ou dois dias antes da caçada, para ter apetite.
       Quando chegaram ao alto da Malhadinha foi cada uma para seu lado. Avançavam lentamente, sem fazer barulho, com os cães em pulgas , de orelhas em radar, prontos para avançar.
       - Biste-sio? – perguntou o Julho do Marmeleiro.
       - Bi, mas foi imbora. Num quis arriscar o tiro – justificou o Julho.
No entanto, os cães encurralaram-no num silveiral denso, onde ninguém conseguia entrar. Nem os cães! Catrineta pegou no furão que, de orelhas em riste e focinho espetado, avançou com alguma dificuldade. 
       - Bai...bai e apanh´ó. Trai-o cá.
       Passados seis a sete minutos, eis que sai o coelho a toda a velocidade. Augusto Pinto apontou e disparou.
       - Acertáste-le?
       - Penso que sim, que le dei.
       De facto, daí a pouco já vinha o lebreiro com ele nos dentes.
       Durante a manhã só o Augusto Pinto, o Catrineta e o Julho do Marmeleiro tinham sido bafejados pela sorte, ficando em branco o Dr. e o Lérias.  Almoçaram todos sentados nas fragas, cada qual do que levou na marmita. O garrafão circulou a boa velocidade por entre todos. Quem carregava mais no acelerador era o Lérias e o Catrineta. As larachas eram mais do que a caça. Isto faz-me lembrar uma pintura de um restaurante onde eu  almoçava com muita frequência. Era o “ Flor de Santo António “, do senhor Manel e da D. Lurdes, precisamente na Rua de Santo António à Estrela, a uns trinta metros da Basílica da Estrela, ao cimo da Av. Infante Santo. Tinha um reservado, no qual almoçava, com uma grande e bonita pintura com motivos de caça e de pesca  que dizia: “ Neste lugar convivem pescadores, caçadores e outro aldrabões”. ( Infelizmente fechou devido à idade dos seus proprietários).  E as tchotchices que disseram durante a merenda, também me faz vir à memória uma outra frase que ouvia enquanto criança: “ No tempo das perdizes, tanto mintes, quanto dizes”.
         A seguir ao almoço retomaram a empreitada.  Dividiram-se conforme quiseram, apenas seguiram juntos o Dr. Alberto e o Catrineta. Quando estavam num descampado eis que lhes surge uma lebre.  O Dr. Já tinha uma bela e moderna Beretta de dois canos justapostos de calibre dezassete e alma lisa! A coronha era feita de pau de nogueira.
          - Deixa-o comigo, que o tenho na mira – disse o Dr. Alberto.
          - Atão, bá! Tchega-le  com força.– aquiesceu o Catrineta.
          Pum...e a lebre fugiu! Outro Pum... também em vão!
          - Pois...Prás pedrizes e prós coelhos num há cá dótores. Num nos conhecem e num s´agatcham c´mo algumas – resmungou.
          - O que é que estás praí a dizer?! – disfarçou, compreendendo a indirecta…
          - Pois, pois...Sim,sim...Fai-te de nobas. Sabes bem o qu´eu quero decer. Num és burro ninhum... – disse num tom ríspido.
          O Doutor Alberto chegou-se junto dele de dedo espetado e disse-lhe com calma, mas com a voz segura:
           - Ó rapzinho...Olha que eu também cago atrás das paredes e limpo o cu às pedras!! Pensas o quê?
Receita Santa. O Catrineta meteu os pés ao caminho e abalou para a aldeia. O Dr. Alberto morreu aos 74 anos com uma enxada nas mãos, a cavar uma oliveira!

Fontes de Carvalho

Fontes de Carvalho
, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanato nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.

Sem comentários:

Enviar um comentário