Assim lhe chamavam porque, supostamente, teria tocado gaita de foles na sua juventude. O mesmo diziam do tio Rijo mas não me lembro de alguma vez ter visto esse instrumento nas mãos de qualquer deles. Não creio que tal referência fosse infundada: a alcunha de um e a ligação ao outro deveriam ter “algum fundo de verdade”, como versejava António Aleixo. Hoje, parece-me intrigante mas, enquanto foi tempo de esclarecer o assunto com um deles ou com alguém da sua geração, não era coisa que ocupasse o espírito de uma criança como eu.
Havia, como noutras terras vizinhas, quem tocasse viola, guitarra ou bandolim, até rabeca ou concertina e realejo, para animar os bailaricos e as rusgas da mocidade mas uma gaita de foles só mais tarde é que vim a saber o que era e a ouvi-la tocar. Mal comparando, como dizia o Trocas, parece coisa de dinossauros que se afirma terem existido em tempos muito recuados mas que se extinguiram há milhões de anos e de incontáveis espécies que desapareceram devido a alterações climáticas, epidemias, ocupação humana desordenada dos territórios que formaram o seu habitat, introdução de novas culturas e técnicas agrícolas que determinaram mudança de hábitos. Sabemo-lo a posteriori, não por experiência vivida.
Quanto à gaita de foles, o facto de ter deixado de ser usada em determinado lugar não significa, obviamente, que tenha deixado de existir. Sabemos que é elemento importante nos hábitos culturais de certos povos e de certas comunidades regionais. Tratar-se-á, porventura, de um traço da cultura celta que se expandiu no norte do País, sobretudo no Minho, na região de Miranda do Douro com ramificações em terras contíguas e é ainda relevante nas Ilhas Britânicas (Gales, Irlanda e Escócia) e em certas zonas da antiga Gália, hoje França. É natural que, em nossas terras, tenha feito parte dos hábitos lúdicos dos habitantes e se tivesse apagado na geração que nos precedeu. No entanto, jamais ouvi referências quer do meu pai, quer de outras pessoas do seu tempo acerca de episódios em que o referido instrumento fosse mencionado. Restou a alcunha dum homem e vagas informações sobre outro.
Seria matéria de estudo para arqueólogos, antropólogos ou etnólogos mas, em Portugal e nos tempos que vivemos, só parece haver preocupação com algumas ciências e muito especialmente sobre as ditas Novas Tecnologias.
Sabemos pouco dos nossos antepassados, dos povos que habitaram este rincão em épocas mais recuadas. Ensinaram-nos que o território foi ocupado por inúmeros povos desde a pré-história mas fazem parte de um molho de que não parece haver condições para separar e organizar. Fala-se de Iberos e de Celtas, da miscigenação entre eles que deu lugar aos Celtiberos, dos Fenícios, Gregos e Cartagineses, dos Romanos, Vândalos, Suevos e Alanos, dos Visigodos, dos Lusitanos que não sabemos muito bem onde se localizavam, dos Árabes, Moçárabes e Cristãos. De quando em vez, aparecem referências a Lígures, designação que poderá englobar povos com nomes variados, Tartéssios ou “Homens do Mar” que estiveram na parte sul do espaço que hoje é nosso. Quanto a estudos pormenorizados e continuados, os resultados não existem ou são pouco divulgados.
Pois o tio Gaiteiro ou tio Papim, de que já falei na crónica anterior, tinha muitas limitações físicas que lhe cerceavam a possibilidade de trabalhar na terra. Deslocava-se apoiado em muletas, as cajatas, com que tentava afugentar os garotos que atiravam pedradas à amoreira para lhe roubarem os frutos, e passava o seu tempo a fazer ligas para chapéus de palha. Conheci-o já numa idade avançada mas dizia-se que, quando era mais novo, saía para pedir esmola em terras distantes do concelho de Macedo de Cavaleiros nomeadamente em Chacim, onde os Pousa de Vila Boa possuíam um casal e o acolhiam. Era acompanhado pela mulher, a tia Edite, que guiava a burra e lhe aturava os maus modos. O Grilo e a Lhalha, os dois filhos do casal, ficavam com familiares ou amigos, o rapaz acompanhava os filhos mais novos do senhor Alípio Nunes, casa onde havia sempre muita gente de fora, a Lhalha talvez se acolhesse na casa dos primos Gomes. Demoravam sempre alguns dias e, passado breve intervalo, partiam de novo.
Durante a permanência na aldeia, a tia Edite ajudava em casa do senhor Alípio Nunes, ali comia e regressava a casa para cuidar do marido e dos filhos. É provável que trouxesse comida também para os seus. Era ela também que cultivava as poucas terras da família, uns chãos lá para Penas d’Alvos e a pequena cortinha junto da casa. Por isso, eram obrigados a manter-se na aldeia a espaços regulares e, às vezes, por tempo mais dilatado.
O tio Gaiteiro não tinha grande estima pela mulher e muito pouca pelo filho, um rapaz moreno e simpático. A menina dos seus olhos era a Lhalha (Maria do Rosário) ou Quinha, como preferia chamar-lhe, miúda bonita, mais parecida com a mãe, até na cor. Não consta que alguma vez tivessem levado os filhos nos peditórios mas o tio Manuel Gaiteiro chegou a colocar a hipótese de levar só a filha. Ficou na memória das pessoas um suposto diálogo entre os dois, acompanhado pelos gestos característicos do nosso homem:
- O preto não vai, a galarona também não. E tu, Quinha, queres ir?
E, face à recusa ou manifestação de desagrado da moça, concluía:
- Se tu não vais, também eu não vou.
O preto era o designativo desdenhoso dado ao filho pela cor acentuadamente escura que lhe valeu a alcunha de Grilo e o acompanhou pela vida fora. Para enfatizar o pouco apreço que tinha pela mulher dava-lhe o nome de galarona, sem que os estranhos descortinassem qualquer relação do nome com a pessoa.
O tio Manuel Gaiteiro tinha uma irmã que emigrou para o Rio de Janeiro muito nova, ali casou com um joalheiro rico e, quando este morreu, herdou uma fortuna considerável. Tendo perdido o único filho, julgar-se-ia que dedicaria aos dois sobrinhos alguma atenção e os viesse a constituir herdeiros dos seus bens. Concedeu-lhes a “carta de chamada” e escasso apoio até encontrarem ocupação e possibilidade de sobrevivência. Ao Grilo ofereceu-lhe pequena ajuda financeira para adquirir um terreno no subúrbio mais distante da Zona Norte do Rio, onde construiu uma casa modesta, adaptada a café e bar, que mal dava para a sua manutenção. Regressou à aldeia, comprou um altifalante, discos da moda e tornou-se figura popular nas redondezas cujas festas animava. Tem 96 anos e vive num Lar em Bragança. Quanto à Lhalha, empregou-se, casou e nunca mais veio à terra.
Por: Nuno Afonso
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